A Lei nº 12.736/12 deu nova redação ao art. 387 do Código de Processo Penal, acrescentando um §2º, com a seguinte redação: “O tempo de prisão provisória, de prisão administrativa ou de internação, no Brasil ou no estrangeiro, será computado para fins de determinação do regime inicial de pena privativa de liberdade.” (NR).
Com a modificação legislativa, que entrou em vigor no dia 03 de dezembro de 2012 (data da sua publicação), a competência para a aplicação da detração penal foi transferida ao juízo prolator de eventual sentença condenatória. Houve, portanto, uma ampliação da competência do juízo de conhecimento.
O processo sincrético antes somente observado na seara processual civil, agora está consagrado expressamente no processo penal. No sincretismo processual, há a junção das funções cognitiva e executiva, de modo que declare e que se satisfaça o direito em um único processo, contribuindo-se, assim, para a economia, celeridade e instrumentalidade processuais.
No processo penal, entretanto, o fenômeno na extensão existente no processo civil, pois a fase executiva autônoma da pena continua existindo com extenso âmbito de competência. Somente quanto à detração para fins de fixação de regime de pena é que o juiz do conhecimento acumulará competência cognitiva e executiva.
Ocorre que a mudança, apesar de estar em vigor há praticamente um ano, pouco tem sido observada. Isso se deve, em nosso entender, à redação obscura do dispositivo, que provoca dúvida quanto à sua interpretação e, consequentemente, à sua aplicação.
Nesse panorama, há vozes que sustentam, por exemplo, a inconstitucionalidade da alteração por suposta violação aos princípios da individualização da pena, do juiz natural e da isonomia.
Entendemos que razão não lhes assiste.
O argumento da violação do juiz natural se assenta na suposta competência do juízo da execução para análise do tema objeto da Lei nº 12.736/12. No entanto, a alteração em nada viola o princípio do juiz natural.
Com efeito, a Constituição Federal não diz em dispositivo algum que a pena somente poderá ser executada pelo juízo da execução. Trata-se de matéria afeta à lei, tanto que o art. 22, inciso I, da Constituição Federal, dispõe ser competência da União legislar sobre matéria processual.
Ora, se o tema “competência” possui natureza processual (e isso não se discute), nada obsta que a lei atribua ao juízo do conhecimento, total ou parcialmente, a competência para execução das penas. A existência do juízo da execução decorre de uma exigência de ordem pragmática, sem amparo constitucional.
Não há violação, de igual modo, ao princípio da individualização da pena. Com efeito, a progressão de regime não será automática como sugere uma leitura açodada do §2º, mas jungida aos requisitos da Lei de Execução Penal.
A alteração do art. 387 somente conferiu competência executiva parcial ao juiz do conhecimento para determinar o regime inicial de cumprimento de pena, não afastando a incidência da Lei nº 7.210/84.
Por último, não há qualquer violação da isonomia. Tal hipótese somente ocorrerá se a lei for interpretada de forma inadequada. Os que sustentam em sentido contrário dão o exemplo de uma pessoa condenada à pena privativa de liberdade e que tenha sido presa provisoriamente. Neste caso, terá abatido o período presa provisoriamente pelo próprio juiz do conhecimento para fins de progressão, podendo ser diretamente promovida de regime sem a observância do mérito, ao passo que um outro condenado, em idêntica situação, que não tenha cumprido prisão provisória, deverá obter a progressão com o preenchimento dos requisitos do artigo 112 da Lei das Execuções Penais a serem analisados pelo Juízo das Execuções Criminais. Haveria, portanto, duas situações processuais iguais, sendo tratadas de forma diferentes, sem justificativa suficiente e razoável.
Como já se disse, a lei somente atribuiu competência executiva ao juiz do conhecimento, não afastando os requisitos da progressão de regime. Referida conclusão resta cristalina quando a questão é analisada sob o prisma da interpretação sistemática, da interpretação conforme a Constituição e da busca da razão prática da aplicação da lei.
Na técnica de interpretação sistemática, o intérprete não pode desconsiderar que os dispositivos legais se interdependem e se interrelacionam. Desse modo, não se pode analisar o novel §2º do art. 387 ignorando-se a existência da Lei de Execuções Penais.
Por sua vez, na interpretação conforme a Constituição, o juiz deverá submeter o dispositivo legal ao “filtro” das normas constitucionais e, sem abandonar o texto literal da lex fundamentalis, deverá extrair o conteúdo e o alcance da norma que mais atenda à carga axiológica da Constituição.
O intérprete, ao se deparar com normas polissêmicas ou plurissignificativas no processo interpretativo, deverá optar pela interpretação que mais possua compatibilidade com a Constituição:
A decisão pela “interpretação de leis conforme a Constituição” (verfassungskonforme Auslegung) persegue o escopo de poupar a decisão legislativa, evitando a declaração de sua inconstitucionalidade ou até de nulidade da regra fixada pelo legislador, na medida em que, em havendo mais de uma interpretação possível, há de se dar prevalência àquela que for mais correspondente às normas constitucionais.[1]
Assim, na essência, o princípio da interpretação incide diante da existência de normas que não possuem sentido e alcance inequívocos, devendo hermeneuta conferir primazia ao resultado que mais esteja em conformidade com a lex mater. Segundo Canotilho, esse conteúdo do princípio da interpretação conforme comporta várias dimensões:
(1) o princípio da prevalência da constituição impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se a interpretação que não seja contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais; (2) o princípio da conservação de normas afirma que uma norma não deve ser declarada inconstitucional quando, observados os fins da norma, ela pode ser interpretada em conformidade com a constituição; (3) o princípio da exclusão da interpretação conforme a constituição, mas ‘contra legem’, impõe que o aplicador de uma norma não pode contraria a letra e o sentido dessa norma através de uma interpretação conforme a constituição, mesmo que através desta interpretação consiga uma concordância entre a norma infraconstitucional e as normas constitucionais.[2]
Bem anota Paulo Bonavides que, em verdade, não estamos diante de um princípio de interpretação da Constituição, mas de um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição.[3]
É necessário enfatizar que este princípio não é desprovido de limites. A clareza do texto legal, ou seja, o caráter unívoco da norma, bem como os fins pretendidos pelo legislador, funcionam como barreiras ao intérprete. Nesse sentido Zeno Veloso:
esta técnica de controle da constitucionalidade deve ser utilizada sem expansões e excessos, não podendo o Judiciário, com o propósito de salvar a lei, transbordar dos limites do razoável, oferecendo uma interpretação exótica, fingida, que signifique uma inovação, uma alteração ou reforma da lei, dando-se, afinal, um sentido contrário ao determinado na expressão literal do preceito, falseando ou contrariando os inequívocos objetivos do legislador.[4]
Assim, trata-se princípio da interpretação constitucional que possui por objetivo, não o de conformar uma norma subconstitucional ao texto da constituição, mas afastar a interpretação desconforme, ou encontrar a conclusão interpretativa que com ela mantenha relação de conformidade.
Nesta hipótese, não interpretar a reforma processual penal em consonância com a Lei de Execuções seria violar a isonomia preconizada pela Lei Fundamental.
Ademais, a operacionalização do ordenamento jurídico não deve restringir-se à lei e sua aplicação por mera subsunção, havendo conveniência de se buscar uma razão prática, conformada pela busca de uma decisão justa. Corroborando este entendimento, vejamos o que diz Karl Larenz:
Ao interpretar as leis (com vista à solução de casos jurídicos), não pode descurar-se que nelas não se trata de um qualquer tipo de enunciados, mas de preceitos que hajam de ser seguidos, de bitolas de julgamento prescritas, em suma: de normas. O legislador que estatui uma norma, ou, mais precisamente, que intenta regular um determinado setor da vida por meio de normas, deixa-se nesse plano guiar por certas intenções de regulação e por considerações de justiça ou de oportunidade, às quais subjazem em última instância determinadas valorações. [...] Nesses termos, “compreender” uma norma jurídica requer o desvendar da valoração nela imposta e o seu alcance [...].[5]
Assim, o magistrado, após obedecer o critério trifásico previsto no art. 68 do Código Penal, deverá se preocupar com um novo capítulo de sentença, em que analisará, para fins de progressão de regime, o tempo de prisão provisória cumprido. Avaliará se o réu cumpriu o requisito objetivo, ou seja, lapso temporal necessário à progressão de acordo com o caso.
Quanto à comprovação do requisito subjetivo, o magistrado, ao receber a inicial acusatória e designar data para audiência de instrução, debates e julgamento, visualizando a possibilidade, pela análise da data da prisão até o dia da solenidade processual, de o acusado ter cumprido o requisito objetivo, poderá solicitar a vinda do atestado de comportamento para fins de verificação do mérito ou, eventualmente, a depender do caso, a realização do exame criminológico como incidente processual. O Promotor de Justiça e o defensor, ao tomarem ciência da decisão em comento, poderão peticionar requerendo o que entenderem necessário para os fins do art. 387, §2º, do CPP.
Nos crimes contra a administração pública há inclusive exigência suplementar: “§ 4o O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais. (Incluído pela Lei nº 10.763, de 12.11.2003)”.
Não comprovados durante o processo o cumprimento dos requisitos necessários à progressão, o magistrado, no capítulo de sentença destinado à apreciação da matéria, de forma fundamentada, deverá indeferir o cômputo da pena já cumprida para fins de fixação do regime inicial, determinando que a questão seja apreciada em sede de execução penal.
O estudo dos capítulos da sentença é de suma importância em matéria processual. Vejamos a explicação do mestre Dinamarco sobre o tema:
Cada capítulo do decisório, quer todos de mérito, quer heterogêneos, é uma unidade elementar autônoma, no sentido de que cada um deles expressa uma deliberação específica; cada uma dessas deliberações é distinta das contidas nos demais capítulos e resulta da verificação de pressupostos próprios, que não que não se confundem com os pressupostos das outras. Nesse plano, a autonomia dos diversos capítulos de sentença revela apenas uma distinção funcional entre eles, sem que necessariamente todos sejam portadores de aptidão a constituir objeto de julgamentos separados, em processos distintos e mediante mais de uma sentença: a autonomia absoluta só se dá entre os capítulos de mérito, não porém em relação ao que contém julgamento da pretensão ao julgamento deste. [6]
Com a reforma, o legislador impôs ao magistrado a elaboração de um capítulo próprio destinado à apreciação da matéria. Neste ponto, aliás, não houve suficiência técnica ao se mencionar no § 2º do artigo 387 do Código de Processo Penal a expressão “regime inicial de pena”, pois o regime inicial de cumprimento de pena a ser fixado é aquele determinado pelo artigo 110 da Lei de Execução Penal, que diz que o juiz prolator da decisão, após determinar a pena final aplicada ao réu, deverá estabelecer, com base na quantidade de pena, o regime inicial de cumprimento segundo as diretrizes do artigo 33 do Código Penal.
Assim, a lei não afasta o dever do juiz de, na sentença condenatória, continuar estabelecendo o regime inicial de cumprimento da pena com base na pena. Não deve o juiz reduzir a pena definitiva pela detração como se fosse uma última fase de fixação da quantidade da reprimenda. O §2º do art. 387 exige um novo capítulo de sentença, não constituindo, portanto, uma fase da dosimetria (quarta fase).
A novidade legislativa atende ao que já vinha sendo admitido pelo Supremo Tribunal Federal através da Súmula 716, que possui a seguinte redação: “Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado na sentença condenatória”.
Por fim, vale ressaltar que a detração somente deverá ser levada em consideração fins de progressão de regime de pena. Avaliá-la para quaisquer outros benefícios, como, por exemplo, para fins de livramento condicional, seria invadir, indevidamente, a competência do Juízo da Execução, fixada em lei, nos moldes como preconizados pela Constituição (art. 22, I).
Conclui-se, pelo exposto, que a fixação do regime se pautar pelo todo da pena e somente depois deve-se proceder ao desconto referente à detração, somente para verificação de progressão de regime. A interpretação ora sugerida respeita a individualização da pena e o regime contemplado pelo legislador em abstrato, pelos próprios patamares do art.33 do Código Pena. Se assim não for, ou seja, não sendo observada a fixação com base no texto legal, estaria o Magistrado legislando e ferindo a separação de poderes e a individualização das penas e regime de cumprimento pela gravidade em abstrato do(s) crime(s).
A intenção do legislador é salutar, no entanto, mais uma vez, pecou-se na parte técnica. Cabe ao intérprete, dessa forma, sem extravasar os limites do dispositivo, dar-lhe a melhor aplicação, em consonância com o sistema, o que deve ocorrer de forma rápida, pois a lei está invisível aos olhos dos operadores do direito.
BIBLIOGRAFIA
BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional. 27ª Ed. São Paulo, Malheiros Editores, 2012.
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. 5ª Ed. Coimbra: Almedina, 1991.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença. 3ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008.
LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de: José Lamego. 3ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19ª Ed. São Paulo, Editora Atlas, 2006.
SCHWABE, Jürgen. Cinquenta anos da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Tradução: Beatriz Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e Viviane Geraldes Ferreira. Montevidéu: Fundação Konrad-Adenauer, 2005.
VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.
[1] SCHWABE, Jürgen. Cinquenta anos da jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão. Tradução: Beatriz Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e Vivianne Geraldes Ferreira. Montevidéu: Fundação Konrad-Adenauer, 2005, p. 113.
[2] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1991, p. 235-236.
[3] BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional. 27ª Ed. São Paulo, Malheiros Editores, 2012, p. 534.
[4] VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 173.
[5] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de: José Lamego. 3ª Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, p. 297-298.
[6] DINAMARCO, Cândido Rangel. Capítulos de sentença, 3ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008 p.34.
Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestrando em Direito Penal pela PUC/SP.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICENTE, Juliano Augusto Dessimoni. Lei nº 12.736/12: A detração penal, sincretismo (parcial) no processo penal e um novo capítulo de sentença Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 nov 2013, 07:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37305/lei-no-12-736-12-a-detracao-penal-sincretismo-parcial-no-processo-penal-e-um-novo-capitulo-de-sentenca. Acesso em: 23 dez 2024.
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