SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO. 2. DIREITOS SOCIAIS: CONCEITOS E CRITÉRIOS. 3. CONCLUSÃO. 4. REFERÊNCIAS.
Resumo: Os direitos sociais são aqueles que, como regra, demandam uma prestação por parte do Estado, e estão estreitamente ligados ao postulado da igualdade. A nota distintiva dos direitos sociais é sua dimensão positiva, uma vez que não mais se busca evitar a intervenção do Estado na esfera da liberdade individual. Ao Revés, com o reconhecimento dos direitos sociais, busca-se garantir a participação do indivíduo no bem-estar social. Mas, apesar da previsão no texto constitucional, para que possam ser materialmente eficazes, os direitos sociais demandam a intervenção ativa e continuada dos Poderes Públicos, através da realização de políticas públicas, cujas implementações dependem de recursos financeiros, cada vez mais limitados. Nesse contexto, essencial se afigura, após o reconhecimento da natureza fundamental dos direitos sociais, delimitar quais seriam tais direitos. Para tanto, é mister valer-se do princípio da dignidade da pessoa humana.
PALAVRAS-CHAVE: DIREITOS SOCIAIS. CONCEITO. CRITÉRIOS. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
Abstract: Social rights are those that, as a rule, require the provision by the state, and are closely linked to the postulate of equality. The distinguishing mark of social rights is a positive dimension, since no longer seeks to avoid state intervention in the sphere of individual freedom. In the other hand , with the recognition of social rights , it seeks to ensure the participation of the individual in social welfare . But, despite the provision in the constitutional text, so they can be materially effective social rights require active intervention and continued the Public Powers, by conducting public policies whose implementations depend on financial resources increasingly limited. In this context, it´s essential, after the recognition of the fundamental nature of social rights, define such rights. Therefore, it is necessary use the principle of human dignity.
KEY-WORDS: SOCIAL RIGHTS. CONCEPT. DIGNITY OF THE HUMAN BEING.
1. INTRODUÇÃO.
É conhecimento comezinho entre os operadores do direito a divisão dos direitos fundamentais em gerações ou dimensões, em que pese todas as críticas a tal forma de analisar a fenomenologia dos direitos. A primeira geração seria aquela relativa aos direitos de defesa, onde se espera um não fazer por parte do Estado; a segunda abarca os direitos econômicos, sociais e culturais e, por fim, a terceira geração diz respeito aos direitos da solidariedade, compreendendo os direitos difusos e coletivos.
Há ainda doutrinadores que já falam em quarta e quinta gerações, como é o caso do professor Paulo Bonavides. Para esse autor, o direito à paz não seria apenas direito de fraternidade de terceira geração, na clássica divisão feita originariamente por Karel Vasak[1], mas “um direito natural dos povos, direito que esteve em estado de natureza no contratualismo social de Rousseau ou que ficou implícito como um dogma na paz perpétua de Kant[2].” (BONAVIDES, 2008, p.04/05).
Norberto Bobbio, na obra A Era dos Direitos, levanta a questão dos novos direitos, partindo dos direitos humanos e considerando o avanço da eletrônica, da química, da física, da biologia, da cibernética e de outros ramos do conhecimento científico.
Assim, elenca quatro gerações/dimensões de direitos representativas dos avanços sociais: 1ª Geração: Direitos Individuais – pressupõem a igualdade formal perante a lei e consideram o sujeito abstratamente; 2ª Geração: Direitos Coletivos – os direitos sociais, nos quais o sujeito de direito é visto no contexto social, ou seja, analisado em uma situação concreta; 3ª Geração: Direitos dos Povos ou os Direitos de Solidariedade: os direitos transindividuais, também chamados direitos coletivos e difusos, e que basicamente compreendem os direitos do consumidor e os relacionados à questão ecológica; 4ª Geração: Direitos de Manipulação Genética – relacionados à biotecnologia e bioengenharia, tratam de questões sobre a vida e a morte e requerem uma discussão ética prévia (BOBBIO, 1992).
Este processo de proliferação de novos direitos, surgidas com a globalização e com os avanços tecnológicos faz surgir questionamentos sobre a adequação desses direitos ao termo “fundamental”, ou seja, indaga-se se todos esses novos direitos são realmente fundamentais, o que implica aplicar-lhes a teoria própria desses direitos. No presente estudo não se pretende analisar tampouco criticar a mencionada divisão dos direitos fundamentais em dimensões.
Dada a necessidade de um corte epistemológico, partir-se-á da ideia propugnada por Bobbio (1992, p.6) de que os direitos fundamentais do homem detêm caráter histórico, de modo que as gerações não se excluem, mas se vão acrescentando conteúdos de modo gradual ao longo da história.
Nesse contexto, os direitos sociais são aqueles que, como regra, demandam uma prestação por parte do Estado, e estão estreitamente ligados ao postulado da igualdade. Distinguem-se dos demais pela sua dimensão positiva, uma vez que não mais se busca evitar a intervenção do Estado na esfera da liberdade individual. Ao revés, o que se pretende, com o reconhecimento dos direitos sociais, é a garantia de participação do indivíduo no bem-estar social. “Não se cuida mais, portanto, de liberdade ‘do’ e ‘perante’ o Estado, e sim de liberdade ‘por intermédio’ do Estado”. (SARLET, 2012, p. 56-57).
Ressalva, ainda, Ingo Wolfgang Sarlet que:
Ainda na esfera dos direitos de segunda dimensão, há que se atentar para a circunstância de que estes não englobam apenas direitos de cunho positivo, mas também as denominadas ‘liberdades sociais’. [...] A segunda dimensão dos direitos fundamentais abrange, portanto, bem mais do que os direitos de cunho prestacional, de acordo com o que ainda propugna parte da doutrina, inobstante o cunho ‘positivo’ possa ser considerado como o marco distintivo desta nova fase da evolução dos direitos fundamentais. (SARLET, 2012, p. 57).
Em que pese alguns posicionamentos contrários, hoje já não há dúvida do caráter fundamental dos direitos sociais, no Ordenamento Pátrio. Isso porque encontram-se positivados na CF/88, no capítulo II, do Título II, que se refere aos direitos e garantias fundamentais. No art. 6º[3] estão enumerados alguns dos direitos sociais hoje reconhecidos, tais como educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, e outros. De outro lado, o art. 7º do texto constitucional reconhece diversos direitos sociais aos trabalhadores.
Dada sua natureza de fundamentalidade, aplica-se aos direitos sociais o disposto no art. 5º, 2º, da CF/88.[4] Ou seja, a enumeração dos direitos sociais constantes dos arts. 6º e 7º, da CF/88 é meramente exemplificativa, existindo outros direitos fora do catálogo e até mesmo fora da constituição. Tal assertiva é de fundamental importância no estudo dos direitos sociais, principalmente em face de novos direitos que surgem constantemente, de modo a acompanhar as mudanças sociais.
Quanto à definição do conteúdo dos direitos sociais, há quem sustente serem direitos desprovidos de eficácia, constituindo normas apenas programáticas, dirigidas ao legislador como um programa a ser concretizado a posteriori. Não gerariam, portanto, direito subjetivos. Outros defendem sua eficácia plena, o que ensejaria ao Estado o dever de implementá-los e, em contrapartida, faria surgir o direito subjetivo de exigir essa implementação.
O presente estudo objetiva verificar a aplicabilidade do disposto no § 1º, do art. 5º [5], da CF/88, aos direitos sociais. Ou seja, se todos os direitos tidos por sociais teriam aplicação imediata, podendo ser exigíveis por seu titular, tal qual preconizado pelo texto constitucional.
Exatamente nesse cenário é que surge o maior problema dos direitos sociais: sua efetivação. Com efeito, apesar da previsão no texto constitucional, para que possam ser materialmente eficazes, os direitos sociais demandam a intervenção ativa e continuada dos Poderes Públicos, através da realização de políticas públicas, cujas implementações dependem de recursos financeiros, cada vez mais limitados. Os direitos sociais são de interpretação e aplicação complexos, já que há de se definir seu conteúdo. São, portanto, direitos de complexa polivalência semântica (QUEIROZ, 2006, p.6)
Desde já, relevante consignar que a maior parte da doutrina entende que nem todos os direitos previstos no catálogo tem aplicabilidade imediata, de modo que há de se analisar o conteúdo do direito, bem assim sua fundamentalidade formal e material.
2. DIREITOS SOCIAIS: CONCEITOS E CRITÉRIOS.
As Constituições Mexicanas de 1917[6] e de Weimar de 1919 foram as primeiras a positivarem os direitos sociais. Posteriormente, os direitos sociais foram objeto de Declarações de Diretos, tais como a Declaração Americana (1776), a Declaração Francesa (1789) e a Declaração da ONU (1948), que influenciaram o surgimento das proteções jurídicas dos direitos fundamentais em diversos países.
No Brasil, a primeira Constituição a disciplinar os direitos sociais, inscrevendo-os num título sobre a ordem econômica e social, foi a de 1934.
A Constituição de 1988 consagrou os direitos sociais como direitos fundamentais, uma vez que os coloca em capítulo próprio inserido no título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Essa classificação trazida pela Constituição de 1988 representou um avanço em relação às Constituições anteriores, que abrigavam tais direitos no título da ordem econômica e social.
Os direitos sociais enquadram-se no âmbito dos assim denominados direitos de segunda geração, correspondendo à evolução do Estado liberal burguês, para o Estado democrático de Direito, consagrando após a Segunda Guerra Mundial.
José Afonso da Silva assinala que os direitos sociais:
São prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igualdade. (SILVA, 2009. p. 286/287)
Há, entretanto, direitos sociais que não demandam prestações por parte do Estado. É o caso do direito de greve, da liberdade de associação sindical e as proibições contra discriminações nas relações trabalhistas consagradas no art. 7º, XXXI e XXXII, da Constituição.
Eis porque Ingo Wolfgang Sarlet entende que os direitos sociais não se restringem a direitos a prestações, mas também podem ser considerados como direitos de defesa. A análise da eficácia dos direitos sociais deve levar em conta as peculiaridades de cada categoria de direitos. Defende ele a utilização da “teoria do status” de Jellinek, utilizada por Robert Alexy[7] para justificar as diversas funções dos direitos fundamentais na ordem jurídica.
Assim, os direitos a prestações em sentido amplo podem ser divididos em: direitos à proteção, direitos a organização e procedimento e direitos a prestação em sentido estrito. (Alexy, 2012, p.444-445). Sobre a fundamentalidade dos direitos sociais, afirma Alexy:
Saber se e em qual medida se deve atribuir aos dispositivos de direitos fundamentais normas que garantam direitos a prestação em sentido amplo é uma das questões mais polêmicas da atual dogmática dos direitos fundamentais. Especialmente intensa é a discussão sobre os assim chamados direitos fundamentais sociais, como, por exemplo, direitos à assistência social, ao trabalho, à moradia e à educação. Como será demonstrado, esses direitos constituem, de fato, uma importante parte daquilo que é denominado “direito a prestações”, mas o âmbito desses direitos a prestações é mais amplo.(ALEXY, 2012, p 431).
Assim, os direitos fundamentais sociais previstos na Constituição Federal podem assumir a estrutura de direitos de defesa e de direitos a prestações, sendo que, um mesmo direito fundamental poderá investir seu titular nas duas categorias de posições jurídicas.[8] Os direitos fundamentais sociais constituem obrigações de prestação positivas cuja satisfação consiste num facere, uma “acção positiva” a cargo dos poderes públicos. (QUEIROZ, 2006.p. 25).
Quanto à aplicabilidade imediata dos direitos sociais, na forma preconizada pelo o art. 5º, § 1º da CF/88, questão intimamente ligada à sua efetividade, Sarlet afirma que, no que tange aos direitos sociais de cunho defensivo, por, não dependerem de prestações fáticas ou normativas, mas apenas de uma conduta omissiva por parte do destinatário, não costumam gerar controvérsias quanto à eficácia plena e aplicabilidade imediata. (SARLET, 2012: p 275.)
Já quanto aos direitos sociais prestacionais, o autor afirma que a maior parte da doutrina defende não haver norma constitucional despida de eficácia, ainda que sejam normas das programáticas. Entende que as normas de direitos sociais, inclusive de cunho prestacional devem, em princípio, ser consideradas como dotadas de plena eficácia e, portanto, de direta aplicabilidade. Isso não significa, entretanto que não significa que sua eficácia e efetividade serão as mesmas ou iguais. ( SARLET. 2012: p.281).
O art. 5º, § 1º, apresenta duas características: 1) trata-se de norma de natureza principiológica, pelo que deve ser entendido como “mandado de otimização”, ou seja, estabelece para os órgãos estatais a tarefa de reconhecerem, à luz do caso concreto, a maior eficácia possível às normas de direitos fundamentais; e 2) tem como efeito a presunção de aplicabilidade imediata e plena eficácia e efetividade das normas de direitos fundamentais, de modo que eventual recusa de total eficácia deve ser necessariamente fundamentada. (SARLET, 2012: p.270 )
Diversos critérios são apontados para se caracterizar um direito como fundamental. A importância de tal classificação no campo dos direitos sociais é de crucial importância para se aferir sua aplicabilidade, já que muitos dos direitos previstos como sociais, não o são, se considerado o conceito de direito material de direito fundamental. Vejamos.
Segundo o critério formal, fundamentais são apenas os direitos elencados como tal no texto constitucional. Seriam os direitos previstos no Capítulo II e no Título VIII da CF/88. Ou seja, seriam apenas aqueles erigidos como tal pelo legislador constituinte. Já os direitos fundamentais em sentido material são aqueles que, por seu conteúdo e importância, apesar de se encontrarem fora do catálogo, por seu conteúdo e por sua importância podem ser equiparados aos direitos formalmente fundamentais (SARLET, 2012: p. 74/75).
Paulo Bonavides afirma que Carl Schmitt estabeleceu dois critérios para a identificação dos direitos fundamentais: (a) são direitos fundamentais todos aqueles assim especificamente nomeados no texto da Constituição; (b) são direitos fundamentais os direitos dotados de maior proteção pelo constituinte, seja em virtude de sua imutabilidade sob a ótica da reforma constitucional (cláusulas pétreas), seja em virtude da criação de procedimentos mais complexos de modificação.( BONAVIDES, 2004: p. 561.)
Ocorre que a complexidade e diversidade dos direitos sociais requer o exame de sua fundamentalidade, tanto sob do critério formal, quanto sob o crivo de concepções materiais (Alexy, 2012, p. 449). Isso porque há diversos direitos fundamentais fora do catálogo do art. 5º e 6º, mas presentes de forma esparsa nos artigos da CF/88. Há, ainda, a possiblidade de direitos fundamentais decorrentes de tratados internacionais, como prevê o art. 5º, § 2º da Constituição.
Conforme escolio do professor Ingo Sarlet, um conceito satisfatório de direitos fundamentais (e, portanto, de direitos sociais fundamentais) somente pode ser obtido com relação a uma ordem constitucional concreta. ( SARLET, 2012: p.77)
A concepção material dos direitos fundamentais decorre dos próprios valores protegidos pelo texto constitucional, a teor do principio da dignidade da pessoa humana, eleito como fundamento da Ordem Constitucional[9]·. Tal postulado há de ser utilizado como instrumento de verificação dos direitos sociais, com a proteção de um mínimo[10] de direitos que possam garantir uma existência digna, sem se submeter a regras orçamentárias.
Ingo Wolfgang Sarlet afirma ser difícil uma definição clara e precisa para a dignidade da pessoa humana, já que se trata de conceito de contornos vagos e imprecisos. Propõe, então, uma conceituação jurídica:
Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos. ( SARLET, 2012: p.100/101).
O critério material que melhor atende amplamente todos os direitos é o postulado da dignidade da pessoa humana, de modo que deve ser assegurado o mínimo de direitos para que se viva com dignidade. Assim, o Poder Público deve garantir aos indivíduos o mínimo de prestações materiais necessários a uma existência digna. Questão que se põe é saber qual é esse mínimo, chamado pela doutrina como “mínimo existencial”, bem assim a quem incumbe dizer-lhe o significado.
Para Ana Paula de Barcellos, o mínimo existencial, configurado como núcleo irredutível da dignidade da pessoa humana, é composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde básica, a assistência aos desamparados e o acesso à Justiça. (BARCELLOS, 2002: p. 258)
O “mínimo existencial” é um parâmetro de proteção à dignidade humana, quando contraposta à cláusula da reserva do possível[11], frequentemente utilizada pelo Poder Público como justificativa para ausência/deficiência na adoção das politicas publica, em razão da insuficiência de recursos. Assim, quando diante de um aparente conflito, há de se utilizar do “mínimo existencial” no sopesamento, entre os direitos tutelados. No dizer de SARLET:
A reserva do possível constitui, em verdade (considerada toda a sua complexidade), espécie de limite jurídico e fático dos direitos fundamentais, mas também poderá atuar, em determinadas circunstâncias, como garantia dos direitos fundamentais, por exemplo, na hipótese de conflito de direitos, quando se cuidar da invocação – desde que observados os critérios da proporcionalidade e da garantia do mínimo existencial em relação a todos os direitos fundamentais – da indisponibilidade de recursos com o intuito de salvaguardar o núcleo essencial de outro direito fundamental (2012: p. 364).
Em que pese tal debate não ser o objeto deste breve artigo, faz-se necessário, ainda que brevemente, demonstrar o que sido entendido como o “mínimo existencial” na doutrina e já jurisprudência. Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal vem utilizando a intangibilidade do “mínimo existencial “ como critério para garantir a efetividade de direitos sociais. Eis alguns excertos do julgamento do Agravo Regimental nº 639337 [12]Relator (a): Min. CELSO DE MELLO, verbis:
“... Embora inquestionável que resida, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo, a prerrogativa de formular e executar políticas públicas, revela-se possível, no entanto, ao Poder Judiciário, ainda que em bases excepcionais, determinar, especialmente nas hipóteses de políticas públicas definidas pela própria Constituição, sejam estas implementadas, sempre que os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político- -jurídicos que sobre eles incidem em caráter impositivo, vierem a comprometer, com a sua omissão, a eficácia e a integridade de direitos sociais e culturais impregnados de estatura constitucional. DESCUMPRIMENTO DE POLÍTICAS PÚBLICAS DEFINIDAS EM SEDE CONSTITUCIONAL: HIPÓTESE LEGITIMADORA DE INTERVENÇÃO JURISDICIONAL. - O Poder Público - quando se abstém de cumprir, total ou parcialmente, o dever de implementar políticas públicas definidas no próprio texto constitucional - transgride, com esse comportamento negativo, a própria integridade da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado, o preocupante fenômeno da erosão da consciência constitucional. Precedentes: ADI 1.484/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.. – (...)
A CONTROVÉRSIA PERTINENTE À “RESERVA DO POSSÍVEL” E A INTANGIBILIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL: A QUESTÃO DAS “ESCOLHAS TRÁGICAS”. - A destinação de recursos públicos, sempre tão dramaticamente escassos, faz instaurar situações de conflito, quer com a execução de políticas públicas definidas no texto constitucional, quer, também, com a própria implementação de direitos sociais assegurados pela Constituição da República, daí resultando contextos de antagonismo que impõem, ao Estado, o encargo de superá-los mediante opções por determinados valores, em detrimento de outros igualmente relevantes, compelindo, o Poder Público, em face dessa relação dilemática, causada pela insuficiência de disponibilidade financeira e orçamentária, a proceder a verdadeiras “escolhas trágicas”, em decisão governamental cujo parâmetro, fundado na dignidade da pessoa humana, deverá ter em perspectiva a intangibilidade do mínimo existencial, em ordem a conferir real efetividade às normas programáticas positivadas na própria Lei Fundamental. Magistério da doutrina. - A cláusula da reserva do possível - que não pode ser invocada, pelo Poder Público, com o propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar a implementação de políticas públicas definidas na própria Constituição - encontra insuperável limitação na garantia constitucional do mínimo existencial, que representa, no contexto de nosso ordenamento positivo, emanação direta do postulado da essencial dignidade da pessoa humana. Doutrina. Precedentes. - A noção de “mínimo existencial”, que resulta, por implicitude, de determinados preceitos constitucionais (CF, art. 1º, III, e art. 3º, III), compreende um complexo de prerrogativas cuja concretização revela-se capaz de garantir condições adequadas de existência digna, em ordem a assegurar, à pessoa, acesso efetivo ao direito geral de liberdade e, também, a prestações positivas originárias do Estado, viabilizadoras da plena fruição de direitos sociais básicos, tais como o direito à educação, o direito à proteção integral da criança e do adolescente, o direito à saúde, o direito à assistência social, o direito à moradia, o direito à alimentação e o direito à segurança. Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana, de 1948 (Artigo XXV).
(...) “(grifei)
Diante do que foi exposto, resta concluir pela necessidade de utilização da dignidade da pessoa humana para verificar o mínimo de direitos sociais(mínimo existencial )que deve ser reconhecido pelo Estado.
Por fim, vale dizer que o mínimo existencial não se confunde com o núcleo essencial do direito. Com efeito, o mínimo existencial deve ser verificado no caso concreto, por meio de ponderação entre os direitos em jogo. Há de se levar em conta todas as particularidade do caso concreto, como os aspectos, cultuais, econômicos e geográficos do individuo.
Já o núcleo essencial é o conteúdo mínimo e inviolável do direito fundamental, sem o qual ele perde sua mínima eficácia, deixando de ser reconhecido como um direito fundamental (SALET, 2012: p. 411).
3. CONCLUSÃO.
Os direitos sociais constantes do art. 6 º da CF/88, quais sejam, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, são todos meios para a concretização do principio da dignidade da pessoa humana.
Já o título VIII, ao tratar da Ordem Social, estabelece as diretrizes básicas para concretização desses direitos. Da simples leitura do texto constitucional percebe-se que o Constituinte reconheceu, sob o nome de direitos sociais, um conjunto bastante heterogêneo e abrangente de direitos.
O fruir dos direitos sociais pressupõe a existência dos direitos de liberdade e vice-versa. De nada adianta garantir-se as liberdades, se não se asseguram aos cidadãos os meios de permitir uma existência digna. Não basta, assim, que o indivíduo tenha liberdade perante o Estado, fazendo-se necessário que este assegure meios de usufruir dessa liberdade.
Há direitos de cunho defensivo (negativo) e outros de cunho prestacional (positivo), de modo que os direitos sociais constantes do texto constitucional não são apenas aqueles que demandam um a atuação positiva do Estado, mas outros que apenas exigem o respeito à liberdade dos indivíduos.
Percebe-se, destarte, que a CF/88 adotou um conceito material aberto de direitos fundamentais, de modo que novos direitos, além do já estabelecidos, podem vir a ser assim considerados.
Quanto à efetividade de tais direitos, garantidos implícita ou explicitamente pela CF/88, sua concretização constitui pressuposto da democracia. Nesse ponto, cumpre dizer que o art. 5º, § 1º constitui norma de caráter principiológico, impondo que se busque a máxima efetividade possível aos direitos fundamentais, atentando sempre para as particularidades de cada direito. O dispositivo, conforme visto, enseja ainda a presunção de aplicabilidade imediata desses direitos.
Daí conclui-se que as normas de direitos sociais devem ser sopesadas em cada caso concreto, não podendo ser-lhes aplicada a regra do “tudo ou nada”. São direitos a serem gradualmente aplicados, desde que se assegure o “mínimo existencial” para a vida com dignidade.
REFERÊNCIAS.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Editora..2012.
BARCELLOS, Ana Paula. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
-BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campos, 1992.
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
-________________. http://www.dfj.inf.br/Arquivos/PDF_Livre/3_Doutrina_5.pdf, acesso em 11/11/2013.
-COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 3. ed. São Paulo: Saraiva.2004.
LIMA, George Marmelstein. Críticas à teoria das gerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 173, 26 dez. 2003. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/4666>. Acesso em: 13 nov. 2013.
-QUEIROZ, Cristina. Direitos Fundamentais Sociais. 2006. Coimbra Editora.
-SARLET. Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. 11ª ed. Livraria do Advogado editora. 2012.
_____________. Os Direitos Fundamentais Sociais Na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, v. 1, nº. 1, 2001. Disponível em: <http://www.direitopublico.com.br>. Acesso 13 de novembro de 2013.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
-SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32ª ed. rev. e atual. – São Paulo: Malheiros Editores, 2009.
KANT. Emanuel. À Paz Perpétua. 1795.
[1] Segundo George Marmelstein, foi no ano de 1979, proferindo a aula inaugural no Curso do Instituto Internacional dos Direitos do Homem, em Estraburgo, que o jurista Karel Vasak utilizou, pela primeira vez, a expressão "gerações de direitos do homem", buscando, metaforicamente, demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa (liberdade, igualdade e fraternidade).
[2] A obra À paz perpétua foi escrita pelo filósofo alemão Immanuel Kant, em 1795. Segundo o autor, a paz perpétua se constrói porque a razão tem mais força do que o poder, e a razão [...] condena absolutamente a guerra como procedimento de direito e torna, ao contrário, o estado de paz um dever imediato, que, porém, não pode ser instituído ou assegurado sem um contrato dos povos entre si [...] (p. 40-41).
[3] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 64, de 2010)
[4] § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.
[5] § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
[6] Fabio Konder Comparato leciona que a Constituição mexicana de 1917, em seus artigos 5º e 123, atribuiu à liberdade de trabalho a qualidade de garantia individual, e regulamentou direitos trabalhistas, como a limitação da jornada de trabalho em oito horas, a idade mínima para o trabalho, a proteção da maternidade, dentre outros aspectos.
[7] Ao analisar a estrutura das diferentes posições jurídicas, nas quais os direitos fundamentais investem seus titulares, Alexy chegou à conclusão que um direito fundamental completo é um feixe de posições jusfundamentais.
[8] Ex: o direito à moradia tem uma clara acepção positiva, na medida em que impõe ao Estado medidas tendentes à satisfação das necessidades relacionadas à habitação adequada, mas também possui vertente negativa, ao proteger o titular do direito contra agressões, seja do Estado ou de particulares.
[9] Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III - a dignidade da pessoa humana;
[10] Ana Paula de Barcellos afirma que o “mínimo existencial” consiste em um conjunto de prestações materiais mínimas, sem as quais se pode afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade.
[11] Segundo Alexy, a expressão “reserva do possível” (Vorbehalt des Möglichen) foi cunhada pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha em caso paradigmático que versou sobre “pedido de um cidadão de que lhe fosse assegurado a liberdade de escolha da profissão com a garantia de vaga no ensino superior público embora não houvesse vagas suficientes.
[12] ARE 639337 AgR, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 23/08/2011, DJe-177 DIVULG 14-09-2011 PUBLIC 15-09-2011 EMENT VOL-02587-01 PP-00125
Procuradora Federal lotada na Procuradoria Seccional Federal em Campinas/SP. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília. Mestranda em Direito pela UNIMEP-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FARACHE, Rafaela da Fonseca Lima Rocha. Direitos sociais: possíveis critérios para uma definição Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 nov 2013, 08:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37338/direitos-sociais-possiveis-criterios-para-uma-definicao. Acesso em: 23 dez 2024.
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