SUMÁRIO: 1. Considerações iniciais sobre os paradigmas constitucionais. 2. O Estado Democrático de Direito e os direitos fundamentais à luz dos paradigmas constitucionais. 3. A passividade como paradigma. 4. Considerações finais. 5. Bibliografia.
RESUMO: O presente trabalho busca trazer à tona aspectos da formação dos paradigmas, demonstrando especificamente como os paradigmas constitucionais e o surgimento de novos influenciam na interpretação e integração do ordenamento jurídico. Nesse contexto, será analisada a importância do viés democrático para a concretização dos direitos fundamentais, utilizando-se, para tanto, a teoria discursiva de Habermas.
PALAVRAS-CHAVE: Paradigmas constitucionais – Estado Democrático de Direito – Direitos Fundamentais.
Os paradigmas consubstanciam marcos pressupostos ou supostos que caracterizam, num contexto histórico fragmentado, toda uma forma de enxergar uma dada fatia do conhecimento. Parte-se desse paradigma para desenvolver todos os aspectos desse conhecimento. É o ponto de partida muitas vezes invisível usado como ignição para a inauguração de uma nova era.
Nesse contexto fragmentário dos paradigmas, sua percepção é extremamente difícil, pois aparenta como algo tão natural que pode ser dado como absoluto, simplesmente posto ou dado, tendo-se necessariamente que com ele conviver. É só com o distanciamento temporal e espacial – por vezes longos períodos de tempo ou milhares de quilômetros de distância – que se pode enxergar com mais clareza os meandros do paradigma em que se vive ou no qual se encontra imerso.
Pode-se dizer, em princípio, que existem paradigmas em todos os campos ou facetas do conhecimento. Por exemplo, a religião e a sociologia são dotadas de diversos paradigmas, muitos relacionados com o Estado enquanto ente público responsável por assegurar condições mínimas ou máximas de convivência no âmbito da chamada sociedade civil.
Em verdade, considerando-se o Direito como um conjunto de normas, positivas ou não, existente para reger as relações entre as pessoas e as coisas e entre umas e outras, percebe-se que o jurídico está impregnado em vários outros campos do conhecimento. Em outras palavras, o Direito não é um fim em sim mesmo, mas um meio pelo qual se veiculam normas de vários conteúdos. Nessa linha, há normas – normas no sentido de dever-ser, e não no sentido de leis da natureza, que se situam apenas no campo do ser – religiosas, de engenharia, de medicina, de sociologia, políticas, eleitorais, criminais e até mesmo de justiça no sentido aristotélico, como as que asseguram determinado benefício assistencial em caso de necessidade premente do indivíduo.
A própria epistemologia, enquanto teoria do conhecimento, também possui seus paradigmas, como por exemplo: a) não há conhecimento absoluto, ou seja, é preciso ter consciência de que não é possível extrair todo o conhecimento do universo; b) o sujeito que investiga ou busca o conhecimento acaba influenciando o objeto de sua pesquisa. Em outras palavras, na linha de Immanuel Kant, o sujeito e objeto se relacionam entre si, de modo que, como afirma Thomas Kuhn, o sujeito não consegue ser absolutamente neutro em relação à sua pesquisa, impregnando, em maior ou menor grau, no resultado desta, suas convicções pessoais e prevalentes naquele determinado tempo-espaço; e c) em decorrência disso, o conhecimento em si tende a não existir, restando aos homens se contentar com a versão mundana da essência das coisas.
Embora seja possível dizer que os paradigmas do Estado Liberal, do Estado Social e do Estado Democrático de Direito pertençam ao mundo jurídico, na verdade talvez o mais correto seja concluir que tais mudanças de paradigmas extrapolam o próprio Direito, atingindo diversos outros campos do conhecimento, como ciências sociais, antropologia, etc.
Quanto ao Direito Constitucional, que estuda a norma máxima de um dado ordenamento jurídico, tanto do ponto de vista material quanto formal, ele sofre a influência dos paradigmas existentes na época da sua publicatio, tanto os gerais quanto os específicos, bem como dos que vão surgindo ao longo da aplicação, interpretação e integração das normas constitucionais.
Nessa linha, apontam-se como paradigmas constitucionais o do Estado de Direito, o do Estado Social ou de Bem Estar-Social e o do Estado Democrático real, preocupado com os interesses difusos.
No Estado de Direito, a preocupação diz respeito mais ao formal do que ao material, privilegiando-se o privado em detrimento do público. O Estado, assim como o Direito, tem conteúdo minimalista, sendo construído apenas para não atrapalhar a vida privada. As pessoas são igualmente reconhecidas, ao menos do ponto de vista formal, como sujeitos de direitos, abandonando-se a concepção de pessoa enquanto objeto de direito. Os sujeitos viram proprietários, ou melhor, se permite, ao menos em tese, que eles sejam proprietários, caso sejam capazes por seus próprios esforços.
No Estado Social, percebe-se que o formalismo não é suficiente, por si só, para garantir direitos. Surge, então, a preocupação com a igualdade material, buscando-se garantir meios efetivos, e não meramente formais, de as pessoas poderem ascender socialmente. Se o Estado de Direito eliminou formalmente a existência de castas e privilégios existentes apenas em função de tais castas, o Estado Social buscou propiciar condições práticas para que houvesse um real intercâmbio social. Aqui o público, apesar de ainda confundido com o Estado, que virou proativo e de certa forma inchado em suas competências, prevalece em detrimento do privado, confundido com individualismo e egoísmo.
Já no Estado Democrático real, de interesses difusos, o público e o privado deixam de ser antagônicos e passam a ter que se relacionar entre si. O público deixa de estar restrito ao estatal e passa e refletir tudo aquilo de interesse coletivo, seja objeto de preocupação do Estado ou do setor privado atuando de forma organizada, o que se convencionou a chamar de Terceiro setor. Aqui há uma busca pela efetiva participação da sociedade na esfera pública, estatal ou não, bem como pela concretização de uma sociedade plural, organizada sob todos os enfoques e para todas as visões.
Obviamente que todos esses paradigmas e todos esses pensamentos vão influenciar diretamente o Direito de sua época. O Direito passa a ser interpretado de acordo o paradigma dominante. A interpretação teleológica tem como finalidade a preocupação objeto do paradigma. Há, por assim dizer, uma interpretação conforme o paradigma, que também se reflete num efeito paralisante, impedindo interpretações que sejam contrárias a ele. O paradigma, portanto, exerce efeitos positivos e negativos na interpretação das normas. Afora isso, deve-se lembrar que também a integração do Direito sofre a repercussão do paradigma, que, em suma, acaba se tornando a base e o fim da hermenêutica jurídica.
A experiência histórica do movimento constitucional – não se referindo aqui apenas ao chamado constitucionalismo – demonstra claramente que há uma constante alteração ou pseudoalteração na concepção dos paradigmas constitucionais. Não apenas os paradigmas constitucionais se alteram, mas dentro de um mesmo paradigma se percebe o surgimento de novas concepções e pontos de vista opostos de uma mesma ideia. Há, na verdade, uma ebulição de pensamentos a influenciar permanentemente na vivência constitucional.
Nesse contexto, o Estado de Direito se afigura como um dos mais fundamentais dos direitos. Na verdade, seria possível mesmo dizer que nem com o direito se confunde. Trata-se de pressuposto dos direitos fundamentais, consubstanciando antecedente lógico. Por outro lado, os direitos fundamentais, em essência, são aqueles que garantem a liberdade humana, do indivíduo por si mesmo enquanto sujeito de direito. É com base nessa concepção de direitos fundamentais que se chega à conclusão, por exemplo, de que o tão falado princípio da dignidade da pessoa humana não se trata de direito, mas de qualidade inerente ao ser humano livre e sujeito de direitos.
Os direitos fundamentais, então, surgem como uma consequência do Estado de Direito, que, para ser constituído, inclusive com a aprovação de sua Constituição ou lei fundamental, deve já ter tomado como base determinados direitos fundamentais. De início, Jürgen Habermas defende a ideia da co-originalidade, segundo a qual um não pode viver sem ou outro. Propõe, nessa linha, a institucionalização jurídica de uma ampla rede de discursos. Aponta que o discurso constituinte racional, fundado em premissas legitimamente aceitas pela sociedade, seria o fundamento de criação do Estado de Direito e de revelação dos direitos fundamentais existentes naquele dado momento.
Assim, os direitos fundamentais, apesar de obviamente fundamentais, devem ser garantidos e concretamente exercidos no bojo de uma organização política, estruturada na forma de um Estado de Direito. É com a Lei fundamental e a criação do Estado de Direito que os direitos fundamentais se aperfeiçoam, transpondo-se do plano abstrato para o empírico. Acerca da democracia, Habermas[1] afirma que “a interdependência da democracia e Estado de direito transparece na relação de complementaridade existente entre autonomia privada (cidadão da sociedade) e pública ou cidadã (cidadão do Estado): uma serve de fonte para a outra”.
De fato, há uma íntima relação entre democracia e constituição. A democracia, basicamente calcada na ideia de legitimidade, no sentido de que o povo se autogoverna, requer limites constitucionais. Não é possível, por exemplo, imaginar-se a hipótese de uma norma, legitima e democraticamente aprovada, contrariar os mais básicos princípios dos direitos fundamentais, assim entendidos como aqueles racionalmente aceitos num panorama geral (plano abstrato) e concretamente assegurados pela Constituição. Daí que a democracia só pode ser vivida no Estado de Direito, com limites. Destacam-se as palavras de Chantal Mouffe[2], segundo a qual “é no momento em que a razão moderna reconhece seus limites, quando assume completamente o pluralismo e aceita a impossibilidade de um domínio total e de uma harmonia final, é que ela se libera, finalmente, da ideia de cosmos e de sua herança pré-moderna”.
Por outro lado, o constitucionalismo moderno só se desabrocha num contexto de normas legítimas e de efetiva participação social, ou seja, no bojo da democracia. É preciso, pois, assegurar a cidadania tanto na sociedade, por meio dos direitos fundamentais, quanto no Estado, por meio da participação política de todos, já que não há que se falar em democracia apenas de alguns. A participação apenas da chamada elite na vida política durante muito tempo certamente é causa de muitos privilégios que existem na sociedade. Trata-se da legislação em interesse próprio, ainda que indireto e sob o manto do discurso coletivo. O surgimento do Estado Social reforçou a necessidade de uma democracia plural, em que todos participem e efetivamente tenha condições de participar.
Toda essa complexidade aparentemente paradoxal coloca os direitos fundamentais num mesmo quadro analítico. Em outras palavras, a relação entre Estado de Direito, direitos fundamentais, democracia e até mesmo legitimidade pode ensejar uma visão unitária dos direitos fundamentais, de modo a simplesmente rotulá-los de, perdoe-se a repetição, de direitos fundamentais.
Na verdade, a concepção de geração de direitos, ou melhor, na linha de Paulo Bonavides, de dimensões de direitos, que não apenas se sucedem, mas que vão evoluindo num percorrer complementar lógico baseado no conjunto de direitos antecedentes, também contempla rupturas paradigmáticas. Como sabido, o Estado de Direito, o Estado Social e o Estado democrático real representam paradigmas de sua época, aptos a irradiar toda uma visão própria da realidade e do próprio papel do Estado na sociedade, alterando-se a percepção da relação entre o cidadão do Estado e o cidadão da sociedade.
A título de exemplificação, é de se dizer que à passividade da cidadania brasileira, em que esperar pelo Estado parece uma das formas de encarar a vida, pode ser atribuída, ao menos em certa medida, a conotação de verdadeiro paradigma ou, talvez mais corretamente, de fruto de um paradigma.
Nesse ponto, chama-se atenção para o fato de que boa parte da população critica o gigantismo estatal, que só aumenta sua burocracia, órgãos e Ministérios. E isso não vale apenas para o Poder Executivo, mas para o Judiciário, o Ministério Público e o Legislativo, que também são criticados pelo constante aumento de despesas correntes para manutenção da máquina. O curioso é que outra boa parte da população sempre põe a culpa no Estado para tudo que acontece. Caiu uma árvore, é culpa do Estado. Casas construídas irregularmente caíram com a chuva, é culpa do Estado. Faltou emprego, é culpa do Estado. Não tem dinheiro para sustentar os quinze filhos, é culpa do Estado. O tomate aumentou de preço, é culpa do Estado.
Enfim, tudo, no mundo hodierno, é culpa do Estado, em maior ou menor grau. Parece que as pessoas em si nunca têm culpa de nada, nem em menor grau. É a visão do outro à frente da sua própria visão. Com isso, além da cultura da passividade, cultiva-se uma constante justificativa para aumentar cada vez mais o Estado. Talvez ainda se esteja no ápice do Estado do Bem-Estar Social que, teoricamente, já foi ou deveria ter sido substituído pelo Estado Mínimo ou Regulador.
Essa tendência de gigantismo estatal, provedor de tudo e de todos, consubstancia verdadeiro paradigma – no todo ou em parte –, contaminando os demais Poderes, como o Judiciário. Estimula-se, então, a passividade.
Recentemente, o STF julgou inconstitucional o critério definido democraticamente pelo Legislativo para chamado LOAS, benefício assistencial. Entendeu, em suma, em total invasão de mérito de política pública, que o critério era muito baixo e que o LOAS deveria ser dado a mais pessoas, ou seja, a pessoas integrantes de não só daquela faixa de renda, mas também para pessoas de faixa de renda superior. Ora, essa decisão nada mais representa do que o paradigma do gigantismo estatal c/c – para usar a linguagem dos juristas – a passividade da cidadania brasileira. Ali não se tratava de conceito indeterminado, mas de conceito objetivamente definido.
4. Considerações finais.
Em resumo, no Estado de Direito (primeira dimensão), a preocupação diz respeito mais ao formal do que ao material, privilegiando-se o privado em detrimento do público. O Estado, assim como o Direito, tem conteúdo minimalista, sendo construído apenas para não atrapalhar a vida privada. No Estado Social (segunda dimensão), percebe-se que o formalismo não é suficiente, por si só, para garantir direitos. Surge, então, a preocupação com a igualdade material, buscando-se garantir meios efetivos, e não meramente formais, de as pessoas poderem ascender socialmente. O público, apesar de ainda confundido com o Estado, prevalece em detrimento do privado, confundido com individualismo e egoísmo. Já no Estado Democrático real (terceira dimensão), de interesses difusos, o público e o privado deixam de ser antagônicos e passam a sadiamente se relacionar. Há uma busca pela efetiva participação da sociedade na esfera pública, estatal ou não, bem como pela concretização de uma sociedade plural, organizada sob e para todos os enfoques.
A cada um desses paradigmas, portanto, corresponde uma “geração” de direitos, que, por estarem marcadas com o rótulo de direitos fundamentais, acabam por dificultar de certa forma a visualização das verdadeiras mudanças paradigmáticas existentes. De qualquer forma, entende-se que a evolução do estudo constitucional, em princípio, possibilitou uma compreensão atual de que o surgimento dos direitos fundamentais não representa mero acréscimo geracional à tábua de direitos, e sim verdadeiras alterações paradigmáticas recheadas de inovações conceituais.
Nesse sentido é que, na esteira da teoria discursiva de Habermas, os direitos fundamentais devem ser viabilizados por meio de uma organização política legítima e democraticamente estruturada na forma de um Estado de Direito. Afinal, o constitucionalismo moderno pode desabrochar de efetiva participação social.
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[1] HABERMAS, Jürgen. Era das transições. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 173.
[2] MOUFFE, Chantal. Pensando a Democracia com e contra Carl Smith. Tradução: Menelick de Carvalho Netto. Revue Française de Science Politique, vol.42, n° l,fev.92. Cad. Esc. Legisl., Belo Horizonte, 1(2):87-108,Jul/dez. 1994
Procurador Federal, pós-graduado em Regulação de Telecomunicações e pós-graduando em Direito Administrativo e em Direito Público.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOARES, Paulo Firmeza. Breves reflexões sobre os paradigmas constitucionais e a concretização dos direitos fundamentais por meio do estado democrático de direito Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 28 nov 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37380/breves-reflexoes-sobre-os-paradigmas-constitucionais-e-a-concretizacao-dos-direitos-fundamentais-por-meio-do-estado-democratico-de-direito. Acesso em: 23 dez 2024.
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