RESUMO: A importância atribuída pelo constituinte originário ao recém-instituído sistema jurídico-penal principiológico foi tamanha que o novel sistema foi erigido a direito fundamental do cidadão e, como tal, a núcleo constitucional intangível, na condição de cláusula pétrea (artigo 60, § 4º da CR/88). Os princípios constitucionais penais, que foram previstos expressamente ou que decorrem do artigo 5º da Carta Política, são os seguintes: legalidade, intervenção mínima, lesividade, insignificância, adequação social, presunção de inocência, culpabilidade, proibição de dupla punição e proporcionalidade, pessoalidade e humanidade da pena. Todos eles são orientados pelo princípio maior da dignidade da pessoa humana e são orientadores do devido processo legal.
PALAVRAS-CHAVE: Direito penal. Direito processual penal. Princípios constitucionais.
I. Considerações iniciais
Em 05 de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CR/88) rompeu com uma ordem jurídica autoritária para instaurar o regime democrático, qualificado, especialmente, pela proteção dos cidadãos contra os abusos cometidos pelo Estado durante a ditadura militar. Esse rompimento, expressado por Ulysses Guimarães no discurso de promulgação com as palavras “Ecoam nesta sala as reivindicações das ruas. A Nação quer mudar, a Nação deve mudar, a Nação vai mudar”[1], alcançou também a esfera penal, tornando a Carta Republicana a garantidora, a limitadora e a legitimadora da intervenção penal do Estado.
Neste estudo, pretende-se abordar brevemente os princípios penais previstos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
II. Os princípios constitucionais penais.
A importância atribuída pelo constituinte originário ao recém instituído sistema jurídico-penal principiológico foi tamanha que o novel sistema foi erigido a direito fundamental do cidadão e, como tal, a núcleo constitucional intangível, na condição de cláusula pétrea (artigo 60, § 4º da CR/88). Os princípios constitucionais penais, que foram previstos expressamente ou que decorrem do artigo 5º da Carta Política, são os seguintes: legalidade, intervenção mínima, lesividade, insignificância, adequação social, presunção de inocência, culpabilidade, proibição de dupla punição e proporcionalidade, pessoalidade e humanidade da pena.
Acrescente-se, ainda, que todos os princípios constitucionais penais são orientados pelo princípio maior da dignidade da pessoa humana, aplicável a todos os ramos do Direito, com eficácia vertical e horizontal. Nas precisas palavras de Ingo Sarlet, a dignidade da pessoa humana é entendida como a
(...) qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.[2]
A exposição dos princípios constitucionais penais deve iniciar pelo princípio da legalidade, previsto no artigo 5º, XXXIX, da CR/88, e dos seus consectários, de importância áurea para o Direito Penal. A legalidade, traduzida na formulação latina nullum crime, nulla poena sine lege (não há crime sem lei que o defina, nem pena sem cominação legal), confere ao cidadão o direito de somente sofrer a intervenção penal, ou seja, de somente ter a sua conduta classificada como crime e, portanto, ser punido, se essa conduta for definida como crime por lei[3]. Significa dizer que as regras éticas e morais, as regras religiosas, os bons costumes ou qualquer outro parâmetro de aprovação ou reprovação das condutas humanas não tem o condão de criminalizá-la. Somente a lei pode tipificar as condutas puníveis pelo Estado.
Do princípio da legalidade decorrem: a) a legalidade praevia (lei prévia), estabelecendo que a criminalização de um conduta ou o agravamento da pena somente produzirão efeitos em relação aos fatos ocorridos após a sua entrada em vigor e, em consequência, fixando a irretroatividade da lei penal em prejuízo ao réu (artigo 5º, XXXIX e XL), b) a legalidade scripta (lei escrita), determinando que somente a lei escrita pode criminalizar condutas, não há tipificação de condutas ou cominação de penas por meio dos costumes, c) a legalidade stricta (lei estrita), significando a necessidade de plena subsunção do fato ao tipo para a conduta ser considerada crime, ou seja, não há tipificação penal por analogia, e d) a legalidade certa (lei certa), determinando que o legislador elabore os tipos penais de forma clara, sem deixar margem para dúvidas na discrição da conduta antijurídica.[4]
O princípio da intervenção mínima, definidor do Direito Penal como a ultima ratio, não está previsto expressamente na CR/88, mas pode ser entendido como política criminal dela decorrente, seja do princípio da dignidade da pessoa humana, seja em razão de todos os direitos fundamentais penais previstos no artigo 5º, em especial nos incisos LXV, LXVI e LXVII, ao preverem, respectivamente, que a prisão ilegal será imediatamente relaxada, que ninguém será levado a prisão ou nela mantido quando a lei admitir liberdade provisória e que, com exceções, não haverá prisão civil por dívida. Segundo Muñoz Conde, “o direito penal só deve intervir nos casos de ataques muito graves aos bens jurídicos mais importantes, e as perturbações mais leves da ordem jurídica são objeto de outros ramos do direito”[5].
Embora haja divergência na doutrina, pois alguns autores entendem que se trata de princípios próprios, Nilo Batista entende que, com o princípio da intervenção mínima, relacionam-se a fragmentariedade e a subsidiariedade do Direito Penal. A fragmentariedade significa que ao Direito Penal não devem se ocupar em proteger todos os bens jurídicos existentes no ordenamento jurídico, senão aqueles mais importantes, decorrentes da ordem constitucional. A subsidiariedade, por sua vez, determina que a intervenção penal na vida em sociedade deve ocorrer unicamente quando os outros ramos do Direito (v.g. reparação civil) não forem suficientes para alcançar a pacificação social. [6]
Igualmente relacionados ao princípio da intervenção mínima, estão os princípios da lesividade, da insignificância e da adequação social, também na condição de limitadores da intervenção penal na vida em sociedade. O princípio da lesividade tem quatro funções específicas: proibir a incriminação de uma atitude interna, proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do próprio autor, proibir a incriminação de estados ou condições existenciais e proibir a incriminação de condutas que não afetem qualquer bem jurídico[7]. O princípio da insignificância, por sua vez, está “ligado aos chamados ‘crimes de bagatela’ (ou ‘delitos de lesão mínima’), que recomenda que o Direito Penal, pela adequação típica, somente intervenha nos casos de lesão jurídica de certa gravidade, reconhecendo a atipicidade do fato nas hipóteses de perturbações jurídicas mais leves”[8]. Já o princípio da adequação social, concebido “por Hans Welzel, significa que apesar de uma conduta se subsumir ao modelo legal não será considerada típica se for socialmente adequada ou reconhecida, isto é, se estiver de acordo com a ordem social da vida historicamente condicionada”[9], exemplo clássico da atipicidade de conduta pela incidência da adequação social é a perfuração das orelhas da filha ou a realização de tatuagens que, embora tipificadas como lesão corporal (artigo 129 do Código Penal), são atípicas pela adequação à cultura social.
O princípio da presunção de inocência representa outro princípio basilar do sistema jurídico-penal, cristalizado na Constituição Federal de 1988 como meio de defesa do cidadão contra os abusos cometidos durante a ditadura militar e como limitador da intervenção penal do Estado. Também chamado de princípio do estado de inocência ou da presunção de não culpabilidade, está previsto no artigo 5º, LVII, da CR/88, nos seguintes termos: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Trata-se de uma garantia processual penal de aplicação internacional, prevista tanto na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948[10], como na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica[11], cujo objetivo é tutelar a liberdade pessoal, impondo-se ao Estado, como condição legitimadora da aplicação de sanção, a obrigação de “comprovar a culpabilidade do indivíduo, que é constitucionalmente presumido inocente, sob pena de voltarmos ao total arbítrio estatal.”[12]
O princípio da presunção de inocência repercute materialmente sobre a produção probatória, sobre a valoração probatória, sobre o paradigma de tratamento e sobre a prisão durante o processo penal[13]. A presunção de inocência inverte o ônus probatório durante o processo penal. Isto significa que o réu não está obrigado a produzir qualquer prova sobre a sua inocência para ser absolvido. A absolvição deverá ser o resultado do processo na hipótese de o Ministério Público não lograr êxito na comprovação da materialidade do crime e da autoria pelo réu, conforme previsão do artigo 386, V, do Código de Processo Penal (CPP). Em relação à valoração probatória, o princípio em voga confunde-se com a formulação latina in dubio pro reo, ou seja, nos termos do artigo 386, VI, in fine, e VII, do CPP, o juiz absolverá o réu se houver fundada dúvida sobre a existência do crime ou se não existir prova suficiente para a condenação penal.
No que tange ao paradigma de tratamento, a presunção de inocência impõe a todos (Estado e particulares) a obrigação de tratarem o indiciado ou acusado, até o encerramento do processo penal, da mesma forma que o tratariam se não estivesse sendo investigado, vedando-se a elaboração de juízos condenatórios prévios, com base exclusiva na atuação da mídia.[14] Por fim, o princípio da presunção de inocência proíbe que o cumprimento da pena se inicie antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Assim, ao julgar a Reclamação nº 2.391/PR (2003), embora o Supremo Tribunal Federal tenha admitido a possibilidade de prisão cautelar com base no princípio da proporcionalidade, ele considerou inconstitucional a exigência obrigatória de recolhimento à prisão para apelar[15].
Prosseguindo com a análise dos princípios constitucionais penais, o princípio da culpabilidade põe fim à doutrina punitiva unicamente com base na reprovabilidade do resultado, vedando qualquer hipótese de responsabilidade penal objetiva, para considerar, também, a reprovabilidade da conduta. Tal ditame embasa os casos de inimputabilidade e semi-imputabilidade, bem como a exigência de potencial conhecimento da ilicitude e da exigibilidade de conduta diversa para configuração do crime (artigos 21, 22, 26, 27 e 28 do Código Penal)[16]. O princípio da proibição da dupla punição, outrossim, atua como um limitador à imposição de outras sanções (trabalhistas, culturais, em relação à saúde...) apenas porque houve condenação criminal, não se confundido com o princípio da ne bis in idem porque este tem incidência antes da punição, vedando que o agente responda duas vezes pelo mesmo fato.[17]
Em relação à pena, tem aplicação os princípios da proporcionalidade, da pessoalidade e da humanidade. Consoante o princípio da proporcionalidade da pena, a punição imposta pela prática de determinado crime “não pode ser superior ao grau de responsabilidade pela prática do fato. Significa que a pena dever medida pela culpabilidade do autor.”[18] O princípio da pessoalidade da pena está cristalizado no artigo 5º, XLV, da CR/88, ao prever que nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio transferido. Já o princípio da humanidade da pena está previsto no artigo 5º, III, XLVI e XLVII, ao proibir a tortura e o tratamento degradante, ao exigir a individualização da pena e ao vedar as penas de morte (salvo em caso de guerra), de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis.
Por derradeiro, atribua-se ou não conteúdo principiológico, merece destaque a previsão constitucional do direito ao devido processo lega. Com efeito, segundo o Ministro Gilmar Mendes, o princípio do devido processo legal
lastreia todo o leque de garantias constitucionais voltadas para a efetividade dos processos jurisdicionais e administrativos, assegura que todo julgamento seja realizado com a observância das regras procedimentais previamente estabelecidas, e, além disso, representa uma exigência de fair trial, no sentido de garantir a participação equânime, justa, leal, enfim, sempre imbuída pela boa-fé e pela ética dos sujeitos processuais.[19]
Assim, a previsão de que ninguém será privado da sua liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CR/88) também se revela como uma garantia de vital importância na proteção do cidadão contra a indevida interferência penal do Estado.
III. Considerações finais
Após a exposição dos princípios constitucionais penais, mostra-se adequada a afirmação de que, ao considerar a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 como “o documento da liberdade, da dignidade, da democracia e da justiça social do Brasil”[20], o constituinte Ulysses Guimarães em muito se referia ao recém inaugurado sistema jurídico-penal principiológico, pois a liberdade, a dignidade, a democracia e a justiça social somente podem ser efetivamente conquistadas com uma Constituição que garanta, que limite e que legitime a intervenção penal do Estado na sociedade.
[1] Disponível em: http://www.pmdb-rs.org.br/memoria/fl_adm/uploads/arquivos/arquivo_20.doc. Acesso em 09 nov. 2013.
[2] SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 73.
[3][3] JAKOBS, Günther. Tratado de Direito Penal: Teoria do Injusto Penal e Culpabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 102.
[4] TOLEDO, Francisco Assis. Princípios básicos de direito penal. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 21-29.
[5] MUNÕZ CONDE, Francisco. Derecho penal y control social. In: BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 85-87
[6] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 4 ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 85
[7] Ibidem, p. 92-94.
[8] JESUS, Damásio. Direito penal, volume 1: parte geral. 28 ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 10.
[9] PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro: parte geral. 2 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 86.
[10] Artigo XI, 1, dispõe: “Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”
[11] Artigo 8º, 2, assevera: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa”
[12] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 103.
[13] FONSECA, Adriano Almeida. O princípio da presunção de inocência e sua repercussão infraconstitucional. Jus Navigandi, Teresina, ano 4, n. 36, 1 nov. 1999 . Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/162>. Acesso em: 10 nov. 2013.
[14] Ibidem
[15] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocência Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 634-35.
[16] BATISTA, op. cit., p. 102-05.
[17] ZAFFARONI, Eugenio Raul, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 234-36.
[18] JESUS, op. cit., p. 11.
[19] MENDES, Gilmar Ferreira. Voto no RE 464963/GO. Transcrições. Informativo do Supremo Tribunal Federal, nº 434, Brasília, 1º a 4 de agosto de 2006. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo434.htm >. Acesso em: 11 nov. 2013.
[20] Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=0pGa7hdxVrk. Acesso em: 09 nov. 2013.
Procurador Federal. Chefe da Divisão de Patrimônio Imobiliário e Coordenador-Geral de Matéria Administrativa Substituto da Procuradoria Federal Especializada junto ao INSS, Direção Central em Brasília/DF. Especialista em Direito Público pela Universidade Potiguar (UnP). Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais - Direito - pela Universidade de Passo Fundo, RS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: JARDIM, Rodrigo Guimarães. Considerações gerais sobre os princípios constitucionais penais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 dez 2013, 06:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37439/consideracoes-gerais-sobre-os-principios-constitucionais-penais. Acesso em: 23 dez 2024.
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