RESUMO: Com fundamento em recente pesquisa da Fundação Getúlio Vargas sobre a morosidade da Justiça, encomendada pelo Conselho Nacional de Justiça[1], pretende-se demonstrar como a falta de critérios mais específicos para a concessão da assistência judiciária gratuita, que em tese deveria ser corolário do livre acesso à Justiça, acarreta, na prática, a violação da própria garantia constitucional.
Palavras-chave: assistência judiciária gratuita; livre acesso à Justiça; acesso à ordem jurídica justa; benefícios da assistência judiciária gratuita; ausência de risco e morosidade da Justiça.
INTRODUÇÃO
A ausência de critérios mais específicos para a concessão da assistência judiciária é uma das principais causas da morosidade da Justiça[2].
Na prática, o beneficiário da assistência judiciária litiga sem que haja risco efetivo de pagamento de custas, despesas e verbas de sucumbência, o que estimula o ajuizamento de inúmeras ações temerárias e a interposição de recursos sem fundamentos consistentes.
A consequência é a sobrecarga do Poder Judiciário, que fica impedido de prestar a tutela jurisdicional célere e eficaz, em violação da garantia de efetivo acesso à Justiça a quem realmente necessita.
A ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA SOB UMA NOVA PERSPECTIVA: CAUSA DA MOROSIDADE DA JUSTIÇA E DA VIOLAÇÃO DO ACESSO À ORDEM JURÍDICA JUSTA
O acesso à Justiça é uma garantia constitucional e o Estado tem o dever de prestar a tutela jurisdicional para pacificar os conflitos sociais (CF, art. 5º, inc. XXXV). Trata-se do princípio da inafastabilidade da jurisdição ou do acesso à ordem jurídica justa:
o princípio da inafastabilidade da jurisdição é também denominado direito de ação, ou princípio do livre acesso ao Judiciário, ou conforme assinalou Pontes de Miranda, princípio da ubiquidade da Justiça (...). Prefere-se, ainda, segundo a doutrina mais abalizada, a expressão ‘acesso à ordem jurídica justa’ a ‘acesso à Justiça’ ou ‘ao Judiciário’[3].
A oferta constitucional de assistência judiciária integral e gratuita (art. 5º, inc. LXXIV) deve garantir que ninguém fique privado de ser ouvido pelo juiz, por falta de recursos[4].
Nesse contexto, muitas vezes a assistência judiciária é concedida mediante mera declaração de pobreza para que não existam quaisquer óbices ao acesso à Justiça.
Ocorre que a Justiça é um bem escasso e não pode ser transformada em palco de aventuras judiciais.
Quando a assistência judiciária é concedida, a parte fica isenta do pagamento de custas e verbas de sucumbência, ou seja, pode movimentar o Poder Judiciário sem que haja risco efetivo. É verdade que a parte ficará obrigada a pagar, desde que possa fazê-lo dentro de cinco anos a contar da sentença (art. 12, Lei 1.060/65), porém, essa condição é completamente ineficaz e raramente se efetiva na prática.
A destinação de verba pública a quem dela realmente não necessita confunde a Justiça com imunidade quase absoluta à sucumbência e a ausência de risco moral gera sobrecarga do Poder Judiciário.
Tanto é verdade, que em recente pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas sobre as causas da morosidade da Justiça, a pedido do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, uma das soluções propostas foi a definição de critérios mais específicos para a concessão de assistência jurídica gratuita[5].
Nesse sentido, Cândido Rangel Dinamarco sustenta que é muito importante diferenciar o mero ingresso em juízo do acesso à ordem jurídica justa (Kazuo Watanabe), ou seja, da obtenção da justiça substancial, que deve ser célere e eficaz, pois não basta “que o processo produza decisões intrinsicamente justas e bem postas mas tardias”[6].
Com efeito, só é garantido o efetivo acesso à Justiça àquele que obtém a tutela jurisdicional célere, útil e eficaz. A demora na entrega do bem da vida em razão do número excessivo de processos viola o acesso à Justiça.
Nenhum direito é absoluto. O acesso à Justiça e a assistência judiciária também devem ter limites.
Considera-se necessitado todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família (art. 2º parágrafo único, da Lei 1.060/50). De acordo com o artigo 4º da Lei 1.060/50, basta a simples afirmação de pobreza para a concessão dos benefícios da assistência judiciária:
Art. 4º. A parte gozará dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação, na própria petição inicial, de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família. (Redação dada pela Lei nº 7.510, de 1986)
Todavia, o art. 5º, inc. LXXV, da Constituição Federal exige a comprovação da insuficiência de recursos:
O Estado prestará assistência judiciária integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos.
Em um sistema hierarquizado de normas, são as leis que devem ser lidas a partir da Constituição, jamais o contrário.
A partir da Constituição Federal de 1988 tornou-se imprescindível a comprovação da condição de pobreza, como por exemplo, mediante a apresentação de comprovantes de rendimentos e de despesas, de declaração de imposto de renda dentre outros.
A mera declaração de pobreza não tem presunção absoluta de veracidade[7].
Por outro lado, não se pretende exigir a definição de um critério objetivo para a condição de pobreza, como um rendimento inferior ao limite da isenção do Imposto de Renda, mas apenas que a parte comprove a impossibilidade de pagamento de custas e honorários sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família. Isto é, ainda que a parte possua rendimentos muito elevados, deve comprovar que em razão do número de despesas necessita da assistência judiciária do Estado para ter acesso à Justiça.
Porém, o que se vê no dia a dia forense é que inúmeras vezes o pedido de Justiça Gratuita é padronizado e feito por pessoas que possuem condições de pagar custas e honorários e de contratar advogado particular, quando poderiam valer-se da Defensoria Pública caso realmente fossem hipossuficientes.
A disseminação exacerbada de pedidos de assistência judiciária é estimulada pelo fato de que, nos casos em que a impugnação à Justiça Gratuita é acolhida, a decisão muitas vezes limita-se a determinar o recolhimento das custas, o que já deveria ter sido feito. Por esse motivo, é imprescindível que seja imposta a pena de pagamento de até o décuplo das custas judiciais, conforme previsto expressamente no artigo 4º, da Lei 1.060/50, para que se afirme a natureza preventiva da pena.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O acesso à Justiça é uma garantia constitucional que é viabilizada pela concessão de assistência judiciária integral e gratuita àqueles que não possuem condições de arcar com as custas e os honorários advocatícios sem prejuízo do próprio sustento ou de sua família.
Sob o pretexto de que não devem existir óbices ao acesso à Justiça, muitas vezes os benefícios da assistência são concedidos mediante mera declaração de pobreza efetuada pela parte e sem exigência de efetiva comprovação.
Ocorre que é preciso mudar o ângulo da questão, pois a concessão indiscriminada da assistência judiciária tem efeito contrário à justiça social, já que elimina, na prática, o risco de pagamento de custas e de sucumbência, o que estimula o ajuizamento de ações temerárias e recursos infundados, com sobrecarga do Poder Judiciário e violação da garantia que se pretendia proteger, qual seja, de acesso à ordem jurídica justa, que deve ser célere e eficaz.
Portanto, é preciso que haja uma maior reflexão acerca da necessidade de se exigir a devida comprovação da impossibilidade de pagamento de custas e honorários de advogado, por meio de apresentação de comprovantes de rendimentos e de despesas, dentre outros, bem como da aplicação de penas de até o décuplo das custas judiciais.
Essa medida não violará o acesso à Justiça, muito pelo contrário, contribuirá para eliminar uma das causas da morosidade da Justiça e, assim, garantirá o efetivo acesso à ordem jurídica justa a todos aqueles que realmente necessitam da Justiça.
REFERÊNCIAS
APOSENTADORIA e problemas com cartão de crédito abarrotam o Judiciário, mostra pesquisa da FGV. Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/10584:aposentadoria-e-problemas-com-cartao-de-credito-abarrotam-o-judiciario-mostra-pesquisa-da-fgv>. Acesso em: 01. Dez. 2013.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, v. 1. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 114-115.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 16. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1002.
[1] APOSENTADORIA e problemas com cartão de crédito abarrotam o Judiciário, mostra pesquisa da FGV. Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/10584:aposentadoria-e-problemas-com-cartao-de-credito-abarrotam-o-judiciario-mostra-pesquisa-da-fgv>. Acesso em: 01. Dez. 2013.
[2] Ibidem.
[3] LENZA, Pedro. Direito Constitucional esquematizado. 16. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1002.
[4] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 18. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 34.
[5] APOSENTADORIA e problemas com cartão de crédito abarrotam o Judiciário, mostra pesquisa da FGV. Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/10584:aposentadoria-e-problemas-com-cartao-de-credito-abarrotam-o-judiciario-mostra-pesquisa-da-fgv>. Acesso em: 01. Dez. 2013.
[6] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil, v. 1. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 114-115.
[7] Superior Tribunal de Justiça – STJ, AgRg no AREsp 358784 / RJ, Relator Ministro João Otávio de Noronha, T3, Data do Julgamento 22/10/2013, Data da Publicação/Fonte DJe 29/10/2013.
Procuradora Federal. Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo. Especialista em Direito Processual Civil pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado e Escola Superior da Advocacia-Geral da União.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: TSUTSUI, Priscila Fialho. A justiça gratuita como causa da violação ao acesso à justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 dez 2013, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37451/a-justica-gratuita-como-causa-da-violacao-ao-acesso-a-justica. Acesso em: 23 dez 2024.
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