Dos três termos[1], “modificação”, “unilateral” e “contrato”, o jurista pensa que conhece o terceiro.
O segundo, o adjetivo “unilateral”, não lhe é estranho, notadamente em matéria contratual. Mas ele sabe que a palavra é uma falsa amiga e que ela não tem o mesmo sentido quando se fala de ato jurídico unilateral e de contrato unilateral.
Pelo primeiro termo, “modificação”, o jurista terá antes uma percepção intuitiva. Não que o termo não figure na legislação francesa –encontrado em 14 artigos do Code Civil Francês -, senão porque a lei o utiliza sem o necessário rigor técnico.
A título de exemplificação, o artigo 61-4 do Code Civil, na seção relativa às “mudanças” (changements) dos nomes e dos prenomes, considera o termo “modificação” (modification) como sinônimo de “mudança” (changement), ao passo que, no artigo 1397 do Code Civil, agora relativo à “alteração” (mesmo vocábulo, changement) do regime matrimonial, o sentido da palavra “modificação” (modification) é distinto daquele representado por “alteração” (changement).
Isto posto, será possível dizer que o termo foi apreendido pela lei como um simples termo da linguagem comum, e não como uma noção jurídica?
A questão não é de fácil solução. A resposta não pode prescindir de um trabalho prévio de definição. A este título, falta-nos resolver duas questões: (a) o que é uma modificação? (b) O que é uma modificação unilateral? Somente depois poderemos colocar a questão maior: pode haver modificação unilateral do contrato?
(a) O que é uma modificação?
“Modificação” é uma palavra que participa das hipóteses de dupla aparência (ou ambigüidade), se bem descrita por Doyen Cornu[2]: trata-se de um termo que, tanto na linguagem comum (coloquial), como na jurídica, pode, num determinado contexto, possuir um ou mais sentidos. Sem dúvida, ninguém pode contestar que o termo pertence principalmente à linguagem comum, tendo sido ulteriormente emprestado à linguagem jurídica, diferentemente de outras palavras que percorrem o curso inverso.
Mas este estado de dependência com a linguagem coloquial não quer dizer que o Direito não considere a palavra “modificação” como uma titular de um verdadeiro sentido jurídico Deve-se ao professor Ghozi a realização do primeiro ensaio sobre o tema na sua admirável tese “a modificação da obrigação pela vontade as partes”[3].
Nós aplicaremos a sua definição de “modificação” no contrato e a definiremos como “a operação sobrevinda no curso da execução do contrato que, sem findá-lo, introduz uma alteração em quaisquer de seus elementos”.
(b) O que é uma modificação unilateral?
A proposição é suscetível de possuir dois sentidos fundamentalmente distintos.
Pode-se dizer que existirá modificação unilateral quando a modificação afetar o compromisso de somente uma das partes. O unilateralismo, aqui, concerne ao objeto da modificação. Neste sentido, unilateralismo opõe-se ao sinalagmatismo[4].
Pode-se também qualificar de “unilateral” a modificação que se origina de somente uma das partes. O unilateralismo caracteriza, então, a gênese da modificação. “Unilateral” aqui se opõe a bilateral, plurilateral ou convencional.
É este segundo sentido que será privilegiado. Nós entenderemos, portanto, a “modificação unilateral” como a introdução de uma alteração em qualquer dos elementos do contrato, no curso de sua execução, cuja origem deve-se somente a um dos contratantes.
Nesse contexto é que se coloca a terceira questão: será ela possível? Poderá haver modificação unilateral do contrato?
A resposta é, a priori, negativa. Não se pode modificar unilateralmente um contrato.
E certamente poderão haver boas razões para fazê-lo. A vontade de modificar o contrato nasce do fato de que ele não corresponde mais às expectativas, às previsões de um ou do outro contratante, o que pode ser a conseqüência de um duplo fenômeno:
a) o contrato não atende mais às necessidades a que era destinado suprir, como, por exemplo, em razão da transformação do contexto político, econômico, social ou monetário; ou
b) o contrato atende adequadamente às necessidades a que era destinado, mas tais necessidades não representam mais as dos contratantes.
Entretanto, a justificativa oportunista não é juridicamente admitida. A Corte de Cassação já teve várias oportunidades de assim afirmar[5].
Esta solução é uma aplicação lógica do artigo 1134 do Code Civil: a força obrigatória do contrato fundamenta-se na sua intangibilidade. É em função do respeito à sua força obrigatória que o contrato deixa de atender às fantasias de uma das partes que intenta modificar unilateralmente seu conteúdo.
Dito de outra maneira, a imutabilidade do contrato traz a segurança de que as suas modificações somente serão operadas de comum acordo.
Assim, a sua força obrigatória constitui-se num poderoso entrave à modificação unilateral do contrato.
Todavia, esse argumento não é suficiente, pois a força obrigatória não é um dogma infalível a habitar o espírito dos defensores da autonomia da vontade.
Nesse ponto, pode ser que falte remontar ao que fundamenta a força obrigatória do contrato: nas fontes dos princípios, encontram-se as considerações morais, o respeito à palavra empenhada, mas também outras, mais técnicas, notadamente a idéia de que o contrato é um ato de previsão, para retomar a belíssima expressão de Hauriou.
Nesta última perspectiva, a proibição de toda modificação unilateral é concebida facilmente, uma vez que, caso se autorize uma pessoa à modificar unilateralmente o contrato, trair-se-á, com isso, a previsão da outra.
A intenção, entretanto, não pode ser também peremptória, donde coloca-se a questão: tal fundamento dado à força obrigatória dos contratos não permitirá, ao contrário, relativizar a negação do princípio de toda modificação unilateral do contrato?
A situação, com efeito, se apresenta assim: um contratante quer modificar o contrato porque ele não representa mais as suas expectativas originais; o outro contratante não pode se ver obrigado a aceitar uma tal modificação do contrato, porque ela trairá suas previsões.
Eis o impasse: caso não se permita a modificação, negar-se-á o fato de que o contrato constitui-se num ato de previsão por uma parte; mas, caso seja autorizada a modificação, negar-se-á, por outro lado, o fato de que o contrato constitui-se num ato de previsão pela outra parte.
Nesse contexto, o contrato parece em perigo, pois a sua própria essência está em discussão.
Dentro desta perspectiva, não é impossível de se conceber uma modificação unilateral: trata-se, na verdade, de uma escolha de política jurídica.
Pode-se estimar que é mais legítimo assegurar o respeito à essência do contrato em relação àquele que deseja a modificação do que relativamente àquele que a rejeita.
E será esta a saída do impasse? A ótica dos valores poderá demonstrar que o Direito não necessita ser sistematicamente hostil à modificação unilateral.
Convém constatar que o unilateralismo é susceptível de marcar diferentes etapas do processo de modificação e que, de acordo com o momento onde está situado, terá atritos mais ou menos fortes com a força obrigatória do contrato. O unilateralismo pode assim caracterizar tanto a iniciativa da modificação (I), como a decisão de modificar (II).
O unilateralismo aqui é caracterizado pela iniciativa da modificação, donde vislumbram-se duas hipóteses:
a) aquela onde o contratante que toma a iniciativa de uma modificação se dirige ao outro contratante.
Nesta hipótese, tecnicamente, o contratante manifesta uma oferta destinada à encontrar uma aceitação, a fim de que dela nasça uma convenção de modificação de um acordo precedente.
O unilateralismo, neste caso, parece não existir, pois haverá então uma convenção de modificação.
b) A segunda hipótese é aquela onde o contratante que toma a iniciativa de uma modificação não se dirige ao outro contratante, mas à um terceiro (o juiz, ou uma outra autoridade).
A situação parece ainda mais confusa: o unilateralismo caracteriza-se melhor na iniciativa, mas há que se notar que a decisão de modificação não é, no caso, convencional.
Todavia, ela também não depende do contratante que tomou a iniciativa, donde a conclusão de que ela não é mais uma “oferta de modificação”, mas sim uma “demanda de modificação”.
No entanto, resta lembrar que a “iniciativa de apenas uma das partes” quanto ao processo de modificação do contrato somente tem sentido na hipótese deste processo não ser realizado através de uma decisão puramente convencional. Caso contrário, ela será então uma modificação falsamente unilateral.
Somente devem ser consideradas as hipóteses onde o unilateralismo - que caracteriza a iniciativa -, afete diretamente o processo de modificação do contrato, para que ele não seja perfeitamente convencional.
Isso pode existir na presença de uma “oferta de modificação” (1.1) ou de uma “demanda de modificação” (1.2).
1.1) A OFERTA DE MODIFICAÇÃO
A situação parece clara: a iniciativa aqui é unilateral, mas a decisão é convencional.
Existe, a priori, pouco a dizer sobre essa figura jurídica que se encontra em perfeita harmonia com o principio da força obrigatória do contrato.
Entretanto, pode-se perguntar se, às vezes, o mesmo unilateralismo que qualifica a iniciativa não se descaracteriza na decisão. Os dados do problema são, então, modificados.
Isso pode ser pesquisado nos dois contextos: um, normal, onde se está na presença de uma oferta espontânea de modificação; outro, aparentemente mais original, onde o contratante é forçado a propor ao outro uma modificação.
1.1.1 – A oferta espontânea de modificação
A oferta espontânea de modificação susceptível de chegar à uma modificação convencional é uma situação que não apresenta qualquer caráter extraordinário: é a aplicação do princípio da liberdade contratual.
Nesse contexto, não se pode desprezar as contribuições dos demais ramos do direito, especificamente, do direito do trabalho, que apresenta, sob este ponto, um caráter atípico[6].
Assim, quando há iniciativa de modificar o contrato de trabalho, existe, aparentemente, iniciativa unilateral e decisão convencional.
O caráter convencional da modificação é reforçado pela jurisprudência que tem exigido, cada vez mais, provas robustas para admitir a aceitação da modificação pelo assalariado.
No importante julgado Raquin, vencido pela Câmara Social de 8 de outubro de 1987, a Corte de Cassação afirmou que a aceitação de uma modificação substancial do contrato de trabalho não poderia resultar apenas do fato de que o assalariado já tinha aceitado o trabalho, mas era necessária a existência de um acordo expresso. O caráter convencional da decisão foi então reforçado[7].
Há que se distinguir, entretanto, a modificação substancial da não substancial.
Quando o empregador toma a iniciativa unilateral de oferecer ao assalariado uma modificação não substancial de seu contrato de trabalho, admite-se que o assalariado seja obrigado a aceitá-la[8]. Se o assalariado recusa-se a prosseguir a execução de um contrato em que não foi promovida nenhuma alteração substancial, restará configurada, pois, uma falta à suas obrigações contratuais[9].
A aceitação do assalariado apresenta, portanto, um caráter obrigatório. Esta situação é justificada pelo poder de direção e de organização do trabalho - ambos pertencentes ao empregador -, que podem levá-lo a impor as mudanças nas condições de execução do contrato de trabalho.
Neste caso, formalmente, somente a iniciativa é unilateral, pois a decisão é convencional; mas, substancialmente, a decisão é afetada por uma grande parte de unilateralismo, devido ao caráter obrigatório da aceitação.
Esse mesmo raciocínio poderá ser utilizado no caso de modificação substancial do contrato de trabalho, muito embora numa escala menor.
Com efeito, neste caso existe uma pressão indireta feita sobre o consentimento do assalariado: ele aceita, senão o empregador pode iniciar o procedimento de dispensa. O assalariado sofre da alternativa que consiste em (a) admitir a modificação ou (b) aceitar a extinção do vínculo contratual.
Na hipótese da modificação substancial do contrato de trabalho em que a iniciativa é perfeitamente unilateral, existe, sem dúvida, um menor grau de unilateralismo na decisão.
O exemplo do contrato de trabalho ilustra perfeitamente a hipótese de uma oferta espontânea de modificação que caracteriza a iniciativa de apenas uma das partes quanto à modificação do vínculo contratual.
Demonstra-se também que, no estágio da decisão, pode-se ter diferentes graus de unilateralismo, onde uma decisão pode ser mais ou menos convencional.
1.1.2 – A oferta obrigatória de modificação.
A hipótese parece romper com o princípio da liberdade contratual, afinal de contas, como conceber uma situação em que um dos contratantes, no curso de execução do contrato, se vê obrigado a propor ao outro uma modificação do conteúdo contratual?
- Não se trata de questão relativa às cláusulas de renegociação ou de hardship. Estas cláusulas permitem, com efeito, à qualquer uma das partes demandar uma revisão do contrato se houver uma alteração significativa das condições iniciais da contratação que torne impossível ou extremamente gravoso para uma das partes a sua execução. Estas cláusulas não têm por objeto obrigar um dos contratantes a oferecer ao outro a modificação do contrato; elas fazem simplesmente nascer para um contratante o direito de exigir a discussão e impor aos contratantes a negociação de boa-fé.
- Em compensação, há certas decisões jurisprudenciais que têm reconhecido, sob o fundamento da boa-fé, a obrigação de um contratante oferecer, em certas circunstâncias, ao outro a modificação do contrato. Os julgados proferidos pela câmara social, o 25 de fevereiro de 1992 e pela câmara comercial, o 3 de novembro de 1992 são interpretados na doutrina como reconhecedores da existência de uma verdadeira obrigação de adaptação do contrato oneroso para um dos contratantes, que, sob o fundamento da boa-fé, se vê obrigado a oferecer ao outro uma modificação contratual em caso de imprevisão.
A situação é, aqui, estritamente inversa àquela vista anteriormente: a dose de unilateralismo encontrada na decisão havia sido abordada sob a ótica do proponente; doravante, ela será vista do ponto de vista do aceitante.
No entanto, todas essas situações são reveladoras de um unilateralismo perfeito relativamente à iniciativa da modificação, e imperfeito, parcial, quanto à decisão de modificação.
Trata-se de unilateralismo existente parcialmente na etapa da decisão, representando o fruto de apenas uma vontade livre: às vezes, do proponente, outras vezes, do aceitante.
1.2) A DEMANDA DE MODIFICAÇÃO
Doravante, não se tratará mais da oferta, mas da demanda de modificação. A iniciativa de um contratante não é mais endereçada ao outro contratante, mas à um terceiro. Este terceiro é normalmente um juiz, mas poderá ser também uma autoridade não judiciária.
1.2.1 – A demanda de modificação endereçada ao juiz
A questão que aqui se coloca é aquela que diz respeito à influência da força obrigatória do contrato sobre o ofício do juiz. Isto porque, em princípio, a lei contratual deve também, logicamente, se impor ao juiz.
Toda e qualquer modificação do contrato somente pode ocorrer com o consentimento mútuo das partes, donde o juiz deve ser impulsionado a rever o contrato, ajustá-lo ou suprimi-lo de acordo com a vontade das partes.
Esclareça-se: a força obrigatória é um efeito próprio do contrato em virtude de lei. O que a lei fez, não se pode, em princípio, desfazer. A revisão do contrato pelo juiz é então aceitável se ela for legalmente autorizada.
Resta então a questão de saber se, no silêncio da lei, o juiz, sob a iniciativa de apenas uma das partes, pode modificar o contrato.
A questão foi e continua a ser discutida sob a ótica da imprevisão.
Nesse contexto, coloca-se a seguinte indagação: pode um juiz autorizar a modificação do contrato sob a demanda de apenas uma das partes e contra a vontade da outra, caso as circunstâncias econômicas que existirem no momento de sua conclusão estejam totalmente alteradas, e que assim, esteja prejudicado o equilíbrio das prestações?
A doutrina divide-se e a jurisprudência francesa parece estagnada desde o julgado “Canal de Craponne”, do dia 6 de março de 1876.
E este imobilismo parece que não irá se desfazer. É admirável que a jurisprudência francesa contemporânea não trabalhe em favor do equilíbrio contratual na etapa da execução do contrato.
Sem dúvida, a jurisprudência francesa jamais admitiu expressamente, de maneira geral, a teoria da imprevisão.
Mas ela não tem trabalhado no mesmo sentido, atingindo os mesmos fins por outros meios? A jurisprudência acima citada - a obrigar o contratante a oferecer ao outro a adaptação do contrato -, não é obra dos juizes que impuseram às partes o que eles mesmos não fizeram? E amanhã, o recurso à teoria da imprevisão não será inútil para uma aplicação extensiva da teoria da causa?
Pode-se ver num recente julgado proferido pela Corte de Cassação em 17 janeiro de 1995[10] a vontade da jurisdição suprema em consagrar as teses de Capitant e aprovar o desaparecimento da causa quando da execução do contrato.
Neste julgado, a Corte de Cassação teve a grande preocupação de frisar que ela aprovou o desaparecimento parcial da causa para realizar a da imprevisão, sem, entretanto, assim dizer expressamente.
É possível ver nesta modificação não convencional do contrato um exemplo de que o contrato é ato de previsão, e que o Direito, na presença de um contrato que, de todos os modos, não está mais a respeitar as previsões dos dois contratantes, escolhe respeitar as previsões daquele que toma a iniciativa da modificação.
Desde que a autoridade judiciária é demandada, o unilateralismo não mais caracteriza de modo perfeito a iniciativa de modificação; assim também se dá, caso o contratante ativo dirija-se à uma autoridade não judiciária.
1.2.2 – A demanda de modificação dirigida à uma autoridade não judiciária
Existe mais bela manifestação de publicização do direito privado do que o tratamento pela comissão de “surendettement”, dos “surendettement” dos particulares? À demanda do devedor, a referida comissão irá buscar a conciliação das partes, tendo sempre em vista a elaboração de um plano convencional de solução.
A decisão de modificação poderá afetar, por exemplo, o montante da obrigação contratual, ainda que a iniciativa do contratante não esteja endereçada ao credor.
Mas é sobretudo na ausência do acordo que a missão da comissão é extraordinária, uma vez que ela está habilitada a recomendar as modificações do conteúdo do contratual.
Com efeito, a comissão compartilha a decisão de modificação com o juiz, chamado à conferir força executória às medidas que a recomendam.
Constata-se, assim, que o unilateralismo não caracteriza somente a oferta de modificação, dirigida ao contratante, mas pode também caracterizar a demanda de modificação, endereçada ao juiz ou à certas autoridades.
Uma diferença fundamental distingue, entretanto, as duas situações: no caso da demanda de modificação, a iniciativa caracteriza-se por um unilateralismo perfeito, enquanto que a decisão é desprovida do caráter unilateral, ao menos no sentido em que nós o entendemos, considerando relevante a vontade de um dos contratantes.
Ao contrário, no caso da oferta de modificação, a iniciativa se caracteriza também por um unilateralismo perfeito, mas este unilateralismo pode diminuir na fase da decisão de modificação, na qual pode-se achar uma certa dose de unilateralismo.
Trata-se de conceber e pesquisar as hipóteses nas quais a modificação é o fruto da decisão de apenas uma das partes, hipóteses nas quais, diferentemente do visto na parte anterior, o unilateralismo é perfeito na etapa da decisão.
Se assim é, o estrangulamento do princípio da força obrigatória parece particularmente grave, a menos que se admita que o seu fundamento - a idéia de que o contrato é ato de previsão -, pode também legitimar a modificação unilateral então proibida.
De maneira igual, pode-se pensar que é muito mais cômodo de admitir uma modificação unilateral nos dias de hoje do que antigamente, desde que se tenha uma concepção mais objetiva do contrato, que termina por ver o bem sobre o vínculo.
Ora, esta concepção objetiva do contrato não se acomoda mais facilmente do que a da modificação unilateral?
Sem dúvida, mas há que se esclarecer que certas modificações decididas unilateralmente são admitidas porque o contrato é um bem; não obstante, outras são melhor admitidas através de uma visão subjetiva do contrato, porque ele incide mais sobre os contratantes do que sobre a entidade contratual.
Assim, a decisão de apenas uma das partes é, às vezes, admitida, porque o contrato é um bem, e, às vezes, rechaçada, porque o contrato é um vínculo.
2.1) PORQUE O CONTRATO É UM BEM
Uma visão objetiva do contrato pode justificar, em certas circunstâncias, a decisão de modificação unilateral do contrato (2.1.1). Tal aproximação não tem, entretanto, justificado, aos olhos da Corte de Cassação, certas modificações unilaterais do contrato (2.1.2).
2.1.1 – A admissão da decisão de apenas uma das partes sob o fundamento da concepção objetiva do contrato.
Desde Gaudemet, desenvolveu-se uma concepção objetiva do contrato. Durand, em 1960, havia concebido o contrato como um bem da empresa. Um contrato a serviço da empresa? O direito do processo coletivo francês assim confirma. Então desde esta época não se pode justificar que o empresário promova uma adaptação unilateral do contrato para ajustá-lo às necessidades da empresa?
Foi esta idéia que presidiu a elaboração da lei de 12 de maio de 1965, modificando o decreto de 30 de setembro de 1953 sob os arrendamentos mercantis, cujo texto foi redigido com o objetivo de facilitar a adaptação do comércio às diversas formas da concorrência e às demandas cambiantes da clientela[11].
O artigo 34 do decreto autorizava o arrendatário a associar a sua atividade prévia a outras atividades conexas ou complementares e o arrendatário pode impor esta modificação ao arrendante, que pode apenas contestar o caráter conexo ou complementar da atividade.
Entendendo o contrato como um bem, pode-se conceber que a lei admita uma decisão unilateral de modificação. Numa outra circunstância, entretanto, a jurisprudência francesa não a aceita.
2.1.2 – A recusa da decisão de apenas uma das partes sob o fundamento da concepção objetiva do contrato.
Um importante segmento da doutrina fundamenta-se na concepção objetiva do contrato, chegando mesmo a enxergar um valor patrimonial numa certa autonomia em relação àqueles que o concluíram.
Esta concepção do contrato gera conseqüências quanto ao regime dessa cessão. Com efeito, sob este ponto de vista, o consentimento do cessionário será, em princípio, indiferente no que concerne à realização de uma tal cessão. Vem ao suporte desta tese o fato de que, quando da conclusão do contrato, o consentimento do cessionário fundamenta-se mais nos seus elementos objetivos, do que na pessoa de seu co-contratante.
Assim, pode-se ter modificação do contrato pela substituição de um dos contratantes através da decisão de apenas um dos contratantes iniciais.
Parece, entretanto, que esta tese não tem sido acolhida pela Corte de Cassação, que, no julgado de 6 de maio de 1997, exigiu o consentimento do cessionário à substituição de seu contratante para que a cessão pudesse ser operada.
Se o contrato for visto como um bem, é possível legitimar-se a decisão de modificação por apenas uma das partes. E pode-se chegar a uma mesma conclusão desde que tente-se constatar como o contrato, visto desta vez como um vínculo, pode ou poderá autorizar certas modificações unilaterais.
2.2 - PORQUE O CONTRATO É UM VÍNCULO
O contrato é um vínculo na medida em que se aceita a teoria de que a visão objetiva do contrato não suprime totalmente a dimensão subjetiva da relação jurídica.
Nesta perspectiva, a decisão de modificação unilateral é, de lege lata, e poderá ser, de lege ferenda, admitida algumas vezes.
A visão subjetiva do contrato permite conceber, primeiramente, a obrigação de boa-fé que recai sob os contratantes (1) e, em seguida, certas justificativas que daremos ao princípio da força obrigatória do contrato (2).
2.2.1 – Boa-fé e decisão unilateral de modificação do contrato
O princípio da boa-fé admite o raciocínio de que a lei contratual não é uma lei implacável para as partes. A boa-fé representa, antes de tudo, a lealdade do devedor: ele deve executar fielmente suas obrigações.
Ora, a jurisprudência tem admitido que, se os esforços empreendidos pelo devedor permitem-no atingir sua meta estabelecida no contrato, nada poderá ser reclamado contra ele, mesmo que as prestações efetuadas pelo devedor não sejam exatamente conformes às previsões contratuais.
De qualquer sorte, seja porque ele estava de boa-fé, seja porque a meta estipulada no contrato também foi atendida, a jurisprudência tolera que o devedor deixe de respeitar rigidamente as estipulações contratuais, permitindo, portanto, que as modifique, mas sob os aspectos necessariamente menores, senão a meta final do contrato não seria mais atendida.
2.2. 2 – Força obrigatória e decisão unilateral de modificação.
Quanto às justificativas que alguns conferem à força obrigatória do contrato, é necessário dizer que, caso fossem admitidas no direito francês, elas poderiam abrir um campo muito vasto à modificação unilateral.
Fala-se em uma doutrina de origem Anglo-americana que fundamenta a força obrigatória do contrato na idéia de atender às expectativas dos contratantes.
Nesse ponto de vista, o que fundamentará a força obrigatória do contrato será o atendimento das expectativas do credor, que não deve ser decepcionado. Em conseqüência, o devedor não será obrigado a satisfazer o credor além do limite das suas expectativas originais, ou do limite que essas expectativas poderiam ser razoavelmente atendidas.
Pode-se tirar certas conclusões desta doutrina, como, por exemplo,
a) os interesses lesados que seriam devidos em caso de inexecução pelo devedor deverão se calcar não sob o valor da prestação descumprida, mas sob o valor inferior, do atendimento razoável.
b) Poder-se-á, também, nesta mesma lógica, concluir que o devedor poderá executar, não a obrigação literal prevista o contrato, mas aquela que razoavelmente atenda às expectativas do credor, o que equivale a reconhecer ao devedor uma possibilidade de modificar o contrato para adaptá-lo ao atendimento razoável do credor.
Esta concepção não pode, entretanto, ser acolhida sem reserva, ainda que ela possa influenciar certos elementos de nosso direito.
Ora, seria admissível que o devedor pudesse julgar o que atenderia razoavelmente ao seu credor, ou será que ele não poderia jamais ser reconhecido como julgador nesses casos? Somente nesta última hipótese a teoria seria impulsionada a fundamentar universalmente a “força obrigatória”.
Em conclusão, pode-se resumir:
O direito francês conhece, primeiramente, hipóteses de perfeito unilateralismo quanto à iniciativa da modificação. Trata-se, entretanto, de unilateralismo que desaparece na etapa da decisão de modificar o contrato, seja porque a decisão é puramente convencional, seja porque ela é judiciária ou emana de uma autoridade administrativa (a vontade do juiz ou de outra autoridade que substitua a do outro contratante). Estes casos não são os reais de modificação unilateral do contrato.
O direito francês conhece, em segundo lugar, as hipóteses de perfeito unilateralismo quanto à iniciativa da modificação. Este unilateralismo caracteriza a decisão, não obstante de forma imperfeita. Esta é a hipótese da modificação do contrato de trabalho. Este é também o caso da jurisprudência que impõe, sob o fundamento da boa-fé, a um contratante a obrigação de oferecer ao outro a modificação do contrato. Estes são os casos de modificação unilateral do contrato, mas os casos imperfeitos.
O direito francês conhece, em terceiro lugar, as hipóteses de perfeito unilateralismo quanto à iniciativa da modificação, e que se caracteriza também na decisão de modificação de forma perfeita: este é o caso da desespecialização parcial em matéria de arrendamentos mercantis. Este é o caso também do devedor de boa-fé que não cumpre os pormenores contratuais, mas atende o fim do contrato. Eles são os casos perfeitos de modificação do contrato.
Se é permitido um julgamento de ordem quantitativa quanto às hipóteses de modificação unilateral do contrato, em cujo bojo possam conviver os casos imperfeitos juntamente com aqueles perfeitos, constata-se que as hipóteses de modificação unilateral do contrato são ainda muito raras no Direito Francês.
[1] Resenha do artigo “La modification unilaterále du contrat”, de autoria de Hervé LÉCUYER, professor da Universidade de Paris Val-de-Marne (Paris XII).
[2] G.Cornu. Liguistique juridique, Montchrestien, spéc. P. 68 et s., para o fenômeno de dupla aparência.
[3] A. Ghozi, La modification de l´obligation par la volonté des parties, préf. D. Talon, L.G.D.J., 1980.
[4] É neste sentido que M. Ghozi trata, em sua tese, da modificação unilateral. V. th. Préc. P. 83 et s.
[5] Par ex. Cass. 1er civ., 29 janvier 1980: Bull. Civ. I, nº 37; Cass. Ass. Plén. 3 mai 1956: JCP 1956, II, 9345, obs. J.G.L.
[6] V. J. Savatier, “Modification unilatérale du contrat de travail et respect des engagements contractuels”,D. Soc. 1988, p. 135.
[7] O legislador francês, então, procurou contrariar esta jurisprudência: v. C. travail, art. L 321-1-2, issu de la loi nº 93-1313 du 20 décembre 1993.
[8] Droit de l´emploi, op. Cit. nº 1564.
[9] G. Lyon-Caen, J. Pélissier, A. Supiot, Droit du travail, Dalloz, 18e éd., nº 362.
[10] Cass. 1re civ. 17 janvier 1995: Bull. Civ. I, nº 29; JCP 1995, 1, 3843, nº 4, note Fabre-Magnan
[11] Ripert et Roblot, Traité de droit commercial, par M. Germain, LGDJ, 16e ed., nº 398.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: eduardo. A modificação unilateral do contrato Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 11 dez 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37553/a-modificacao-unilateral-do-contrato. Acesso em: 28 set 2024.
Por: Bruno Sposito Berjas
Por: Júlia Gato Santana
Por: Lívia Batista Sales Carneiro
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