SUMÁRIO: 1. Introdução. Contexto histórico de surgimento da lei 11.448/07; 2. A representatividade adequada; 3. A questão da legitimidade – problemas e sugestões de melhoria na defesa dos direitos transindividuais; 4. Discussões sobre a ADI 3.943/07 proposta pela CONAMP – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público; 5. Conclusão; 6. Bibliografia.
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo a análise da garantia constitucional da ação civil pública, em seus aspectos processuais, nos termos da Lei 7.347/85, bem como à alteração e os efeitos da mudança introduzida pela Lei 11.448/07 na Lei da Ação Civil Pública. Especificamente, se pretende demonstrar os avanços teóricos e práticos trazidos pela Lei 11.448/07, no que concerne à expressa previsão da legitimidade da Defensoria Pública para defesa dos direitos e interesses metaindividuais lesados, notadamente no que diz com a concretização do direito de acesso ao Judiciário e do princípio da dignidade da pessoa humana. Conclui-se afirmando a completa compatibilidade de tal alteração com o ordenamento pátrio, destacando-se a evolução na defesa dos direitos e interesses transindividuais.
Palavras-chave: Ação Civil Pública, aspectos processuais, direitos transindividuais, processo coletivo, legitimidade ativa, lei 11.448/07, Defensoria Pública, hipossuficientes.
1. INTRODUÇÃO. CONTEXTO HISTÓRICO DE SURGIMENTO DA LEI 11.448/07
Como se sabe, nas últimas décadas se observou fenômeno de massificação das relações sociais, causando repercussões também na seara do direito, mais especificamente no direito processual.
A aludida densificação das relações jurídicas trouxe às claras o fenômeno das relações jurídicas transindividuais, cristalizados por meio de direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Para que houvesse adequação das novas demandas de massa, foi preciso realizar inovações profundas no sistema processual pátrio, como, por exemplo, ocorreu com o advento do Código de Defesa do Consumidor – lei 8.078/90, que introduziu em nosso ordenamento importantes instrumentos de tutela coletiva, bem como inovou no sentido de previsão da tutela dos direitos individuais homogêneos, figura jurídico-processual até então não expressa em nossa ordem processual.
Essas alterações voltadas para efetivação da tutela dos interesses transindividuais se insere no movimento denominado por Mauro Capelletti como a segunda grande onda de reformas voltadas para a melhoria do acesso à justiça[1]. Com isso, é possível destacar três grandes diplomas processuais que determinam essa mudança de paradigmas, quais sejam: a lei da ação popular, lei 4.717/65; a lei da ação civil pública, lei 7.347/85; e o Código de Defesa do Consumidor, lei 8.078/90, já aludido. Estas normas consagram os principais instrumentos processuais de tutela dos direitos e interesses metaindividuais em nosso ordenamento.
É nesse contexto evolutivo que surge a lei 11.448/07, concedendo legitimidade ativa à Defensoria Pública para propositura da ação civil pública em defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Desde logo, assevera-se o nítido avanço com a edição da aludida norma, em razão de representar mais um esforço no sentido de contribuir para a efetivação ou concretização dos direitos fundamentais, especialmente no que diz respeito aos hipossuficientes, bem como representa mais um importante aliado na defesa dos direitos e interesses difusos e coletivos, com estrutura e compromisso para realização de tal mister.
A seguir, analisaremos os debates sobre o tema da legitimidade para propositura da ação civil pública, bem como as principais implicações teóricas e práticas trazidas com o advento da lei 11.448/07, que incluiu expressamente a Defensoria Pública no rol dos legitimados ativos.
2. A REPRESENTATIVIDADE ADEQUADA
Em princípio, deve-se dizer que hoje é praticamente pacífico o reconhecimento dos direitos metaindividuais – refiro-me, agora, aos direitos difusos e coletivos – são direitos substanciais, materiais, e não simplesmente um mero enfoque processual dos direitos individuais. Portanto, as regras de legitimação próprias dos direitos individuais não são suficientes para garantir a efetiva proteção dos direitos difusos e coletivos.
Assim, é preciso buscar a representatividade adequada, i.e., é preciso conceder legitimidade processual para aqueles que se mostrem adequados e eficientes na tutela de determinado bem jurídico metaindividuais.
A representatividade adequada também possui um aspecto ideológico. Dessa forma, podemos dizer que também é necessário perquirir a representatividade ideológica, ou seja, a identidade ideológica na defesa dos direitos transindividuais. Assim, a defensoria pública preenche perfeitamente este requisito, na medida em que se apresenta como instituição com mister constitucional de defesa dos interesses dos mais pobres e necessitados.
Nesse sentido, de nada adiantaria em reconhecer a natureza de direitos substanciais aos direitos difusos e coletivos se não estiver presente órgão ou entidade suficientemente qualificada e comprometida com a defesa de tais direitos, ou mesmo se as ações forem julgadas ao final improcedentes por ilegitimidade da parte autora.
Diante dessas dificuldades, traçou-se a necessidade de identificar os legitimados para as ações coletivas.
3. A QUESTÃO DA LEGITIMIDADE – PROBLEMAS E SUGESTÕES DE MELHORIA NA DEFESA DOS DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS
Como se disse, diante da dificuldade existente na procura da representação adequada, bem como na tendência de simplesmente transpor institutos do processo individual para o processo coletivo, faz-se imprescindível analisar e identificar os legitimados para as aludidas ações coletivas.
Inicialmente, cumpre dizer que a atuação do indivíduo isoladamente (não obstante os dispositivos da lei de ação popular) na defesa dos interesses difusos e coletivos foi praticamente afastada como forma de atuação na proteção dos aludidos direitos. Seja porque não se encontra em posição de assegurar uma adequada tutela de tais direitos, seja em razão dos custos advindos de sua atuação jurisdicional, mesmo porque muitas vezes o dano difuso ou coletivo não atinge diretamente o individuo ou, se o atinge, é tão ínfimo que não lhe motiva a ajuizar uma ação judicial.
De outra forma, também não se afigura razoável atribui-se única e exclusivamente a legitimidade para as ações coletivas ao Ministério Público, mesmo em função da enorme complexidade que envolve tais demandas. O Ministério Público não é o único representante dos interesses da coletividade com aptidão para tutelar adequadamente os direitos metaindividuais.
Admitir que o Ministério Público é o único e exclusivo legitimado para a ação civil pública, por exemplo, é o mesmo que aceitar a exclusão do processo de outros entes tão preparados quanto ou ainda mais qualificados tecnicamente para a defesa de determinadas demandas com objeto extremamente complexo.
Na verdade, a doutrina mais moderna, em busca de solucionar o problema na identificação dos legitimados para a tutela coletiva, vem percebendo algumas soluções que podem ser adotadas para aprimorar cada vez mais os instrumentos processuais de tutela de interesses coletivos em geral.
Uma solução que se compatibiliza com a necessidade de ampliar e aprimorar a defesa dos direitos metaindividuais é aquela que procura ampliar o rol dos legitimados ativos, sendo vários entes reconhecidos como representantes adequados para a tutela desses direitos. A idéia é a extensão da legitimidade de agir também para sujeitos privados, ampliando-se o rol e garantindo-se a eficiência da tutela.
Surge a noção de corpo intermediário (ou grupos intermediários), que são aqueles entes que se colocam entre o particular e o Estado, tais como os sindicatos, associações, partidos políticos, o município, etc. Esses grupos adquirem a relevância institucional suficientemente adequada, no sentido de que possuem interesse coletivo e compromisso social adequado para a melhor defesa dos direitos metaindividuais. Por isso, tornam-se valiosos protetores de tais interesses, caso seja a eles reconhecida legitimidade. Exemplo de corpo intermediário são as associações, legitimadas por expressa disposição do Código de Defesa do Consumidor (art. 82, inc. II, CDC).
Outra solução que se compraz com as modernas exigências da tutela coletiva é a criação de órgãos públicos especializados para atuar em defesa de um determinado direito metaindividual. A vantagem da especialização é a possibilidade de aprofundamento técnico e, consequentemente, o incremento da possibilidade de êxito na demanda coletiva.
Exemplo da atuação de entes especializados com legitimidade para propor ações coletivas são os Procons, na esfera da proteção do consumidor. Na prática, todavia, os Procons não possuem atuação judicial efetiva, sendo esta mais visível e eficaz na esfera extrajudicial.
Por fim, cumpre asseverar que se torna mais importante observar se a parte se apresenta como representante ideológico (no sentido de representação adequada, já visto) daquele determinado interesse, agindo em prol da coletividade, do que propriamente definir a titularidade do direito com vistas a definir a legitimidade para a ação coletiva[2]. Nesse sentido, Rodolfo de Camargo Mancuso assevera que:
assiste-se agora a uma alteração fundamental na condição ou no critério legitimante para o acesso à justiça, que, nesses temas de larga repercussão social, vai se deslocando da nota da titularidade (incabível na espécie), para a relevância social do interesse trazido à juízo[3].
Por tudo o que foi colocado, e mesmo em razão de sua posição constitucional, resta clara a legitimidade da Defensoria Pública tutela jurisdicional coletiva, incluindo a proposição de ação civil pública, posicionamento transposto e adotado expressamente pela lei 11.448/07.
3.1. ANÁLISE SISTEMÁTICA DA LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA À LUZ DO ORDENAMENTO JURÍDICO PÁTRIO
Como antes dito, a Defensoria Pública também possui legitimidade ativa para defesa dos direitos e interesses transindividuais. É fácil chegar a esta conclusão quando se faz uma interpretação sistemática da Constituição Federal, da Lei Complementar nº 80/94, alterada pela Lei Complementar nº 132/2009 (Lei Orgânica da Defensoria Pública) e do art. 82, do Código de Defesa do Consumidor.
Pois bem, o art. 134, caput, da Carta Maior traz a seguinte disposição, verbis:
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV.)
Da mesma maneira, a Lei Orgânica da Defensoria Pública (LC 80/94, alterada pela LC nº 132/09) estabelece, em seu art. 4º, inc. XI, que é função institucional da Defensoria exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos de grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado, nos seguintes termos:
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras:
(...)
XI - exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado; (Redação dada pela Lei Complementar nº 132, de 2009);
Por sua vez, o art. 82, inc. III, do Código Consumerista legitima órgãos e entidades da administração direta e indireta para a propositura das ações coletivas, ainda que não possuam personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses dos consumidores:
Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995)
(...)
III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;
Por fim, ainda podemos perceber a estruturação de um verdadeiro microssistema processual coletivo quando do cotejo sistemático do artigo 21, da Lei de Ação Civil Pública, com o artigo 90, do Código de Defesa do Consumidor, no sentido de que os diplomas normativos mencionados se inter-relacionam, estabelecendo uma união entre dispositivos da LACP e do CDC, conforme abaixo transcrito:
Art. 21. Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor.
Art. 90. Aplicam-se às ações previstas neste título as normas do Código de Processo Civil e da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições.
Pois bem, se a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a assistência jurídica dos necessitados em todos os graus, possuindo atribuição institucional de patrocinar tais direitos e interesses e, ainda, é legitimada processual para as ações coletivas, nos termos das normas estampadas, primeiramente no CDC e, mais recentemente, na própria LACP, não há como se chegar a outra conclusão senão a da legitimação ativa da Defensoria para as ações coletivas.
Mais ainda, a Defensoria possui atribuição de prestar assistência jurídica e não simplesmente judiciária, abrangendo a consultoria e atividade jurídica extrajudicial em geral.
Portanto, a Defensoria Pública se apresenta na condição de representante adequado de um determinado grupo lesado em um direito coletivo, como é o caso dos hipossuficientes econômicos e, visando a efetivação do acesso à justiça e de suas funções institucionais, deve ser legitimada para as ações coletivas, mesmo porque cumpre com todos os requisitos elencados pelo art. 82, inc. III, CDC, ainda que não esteja expressamente elencada. Nestes termos, colaciona-se decisão da quarta câmara cível do TJ/RGS, relatada pelo Des. Araken de Assis, em 12.04.2006, cuja ementa transcreve-se adiante:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. INTERESSE COLETIVO DOS CONSUMIDORES. LEGITIMIDADE ATIVA DA DEFENSORIA PÚBLICA.
1. A Defensoria Pública tem legitimidade, a teor do art. 82, III, da Lei 8.078/90 (Cód. de Defesa do Consumidor), para propor ação coletiva visando à defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos consumidores necessitados. A disposição legal não exige que o órgão da Administração Pública tenha atribuição exclusiva para promover a defesa do consumidor, mas específica, e o art. 4.°, XI, da LC 80/94, bem como o art. 3.°, parágrafo único, da LC 11.795/02-RS, estabelecem como dever institucional da Defensoria Pública a defesa dos consumidores.
2. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70014404784, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Araken de Assis, Julgado em 12/04/2006). (Original sem grifos)
3.2. A LEI 11.448/07 E A LEGITIMIDADE DA DEFENSORIA PÚBLICA
Antes de adentrar propriamente nos debates que envolvem a lei 11.448/07, cumpre tecer algumas poucas considerações acerca do PL nº 5.794/2005, que previu em sua redação original a legitimidade ativa para as ações coletivas ao Presidente da República, às Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, aos Governadores dos Estados e do Distrito Federal, às Mesas das Assembléias Legislativas dos Estados e da Câmara Legislativa do Distrito Federal, aos Prefeitos, às Mesas das Câmaras Municipais, à Defensoria Pública e ao Conselho Federal da OAB e suas Seccionais. O aludido PL excluía a legitimidade da União, Estados, DF e Municípios, alterando sobremaneira a redação do art. 5º, da LACP.
O PL 5.794/05, todavia, foi alterado pelo relator Dep. Luiz Antonio Fleury no sentido de incluir apenas a Defensoria Pública no rol dos legitimados, sob o argumento de que em razão da importância da instituição e da natureza de suas atribuições sempre voltadas para a defesa dos cidadãos e para a construção de um verdadeiro Estado democrático de direito neste país.
Portanto, com o reconhecimento expresso da representação adequada para ações coletivas da Defensoria Pública, é corolário lógico a atribuição de instrumento capaz de fazer valer tais qualidades, qual seja a legitimidade ativa para as ações coletivas, especialmente para a ação civil pública.
Como resultado, surgiu no mundo jurídico a lei 11.448/07, que espancou definitivamente qualquer dúvida a respeito da legitimidade da Defensoria Pública para ajuizar ação civil pública, ao alterar a redação do art. 5º, da lei 7.347/85, verbis:
Art. 5o Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).
I - o Ministério Público;
II - a Defensoria Pública;
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;
V - a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007). (grifos nossos.)
Importante dizer que o dispositivo supracitado, com a redação que lhe deu a lei 11.448/07, não condiciona de qualquer forma a legitimidade da Defensoria, pelo que se pode afirmar que há legitimidade incondicionada para propositura da ação civil pública. Não se condiciona a atuação da Defensoria Pública apenas quando houver interesse exclusivo dos hipossuficientes, mesmo porque a intenção do legislador foi a de assegurar o acesso à justiça pelo necessitado. Para tal, é indispensável que, da violação a direito difuso ou coletivo que também pertença a hipossuficientes, caiba a atuação da Defensoria Pública.
Há na doutrina, entretanto, entendimento no sentido de que seria preciso a verificação de pertinência temática para legitimar a Defensoria Pública nas ações civis públicas. Em outras palavras, seria preciso avaliar se há compatibilidade entre o objeto da demanda e os fins institucionais da Defensoria, i.e., deve haver compatibilidade entre o interesse a ser tutelado e a condição de hipossuficiência econômica. Assim, a instituição poderia ingressar com a ação coletiva sempre que entre os seus titulares se encontrassem pessoas necessitadas ou que comprovem insuficiência de recursos.
Não concordamos, data vênia, com a posição acima mencionada. Ora, a lei 11.448/07 não impôs quaisquer limitações ou condicionantes à atuação da Defensoria Pública, pelo que não se pode dar interpretação restrita onde não o fez o legislador reformista. Mesmo não havendo interesses dos hipossuficientes, é possível a tutela dos interesses transindividuais pela Defensoria Pública, verificando-se mais um caso de função atípica da instituição, como já o são a curadoria especial e a defesa dativa em ações criminais.
Ademais, o tratamento conferido à Defensoria pela aludida lei é exatamente o mesmo dado ao Ministério Público, qual seja, a sua atuação independe de quaisquer requisitos. Tanto assim que, quando o legislador quis condicionar a atuação de determinado órgão, o fez expressamente, tal como ocorre com as associações que precisam preencher requisito de natureza temporal, se não dispensados (constituição há pelo menos um ano, nos termos da lei civil), bem como requisito de cunho material, consubstanciado na necessidade de incluir, entre as suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. Conclui-se, portanto, que não se exige o cumprimento de quaisquer outros requisitos para os demais legitimados, visto que a lei não os previu.
Em resumo, a legitimação da Defensoria Pública tem objetivo de ampliar e não restringir o acesso à justiça, evitando decisões contraditórias e o acréscimo de demandas com o mesmo objeto.
4. DISCUSSÕES SOBRE A ADI Nº 3.943/07 PROPOSTA PELA CONAMP – ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS MEMBROS DO MINISTÉRIO PÚBLICO
No ano de 2007, a Conamp – Associação Nacional dos Membros do Ministério Público ajuizou ADI 3.943/07 questionando a alteração promovida pela lei 11.448/07, que incluiu a Defensoria Pública no rol dos legitimados ativos para propositura da ação civil pública, por suposta afronta aos dispositivos constitucionais elencados no art. 5º, LXXIV, e no art. 134, caput[4].
De acordo com a autora, a legitimação atribuída à instituição “afeta diretamente a atribuição do Ministério Público”. Além disso, diz a entidade autora, a defesa dos necessitados tem como pressuposto a identificação, individualização e comprovação da carência financeira de cada um dos eventuais beneficiários, de maneira que não seria possível admitir a legitimação da Defensoria Pública “na defesa dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos, como possuidora de legitimação extraordinária”[5].
Ao final, a associação autora pede a declaração de inconstitucionalidade do inc. II, do art. 5º, da lei 7.347/85 ou que, pelo menos, seja dada “interpretação conforme ao texto constitucional, para excluir a legitimidade ativa da Defensoria Pública, quanto ao ajuizamento da ação civil pública para a defesa de interesses difusos”.
Não é preciso um grande esforço retórico para demonstrar que a aludida Ação Direta de Inconstitucionalidade representa enorme retrocesso no histórico de luta do órgão ministerial em defesa dos necessitados e da melhoria do acesso à justiça. Também representa retrocesso do ponto de vista da constante evolução legislativa que vem se observando nos institutos de processo coletivo, notadamente nas ações coletivas, como a ação civil pública.
Quanto ao primeiro argumento, no sentido de que a legitimidade da Defensoria Pública prejudicaria ou afetaria diretamente as atribuições do Ministério Público, tem-se completamente descabido, senão vejamos.
A alteração promovida pela lei 11.448/07 se encontra em posição de total compatibilidade com o ordenamento pátrio. Não obstante a previsão do art. 129, inc. III, da Carta Maior, que elege a propositura da ação civil pública como função institucional do órgão ministerial, há ressalva expressa no sentido de que a legitimação atribuída ao parquet não exclui a de terceiros, ainda que nas mesmas hipóteses e mesmo que estipulada por norma infraconstitucional, conforme disposto no parágrafo 1º, do art. 129, da CF88, verbis:
§ 1º - A legitimação do Ministério Público para as ações civis previstas neste artigo não impede a de terceiros, nas mesmas hipóteses, segundo o disposto nesta Constituição e na lei. (Grifos nossos)
Desta forma, o texto constitucional nega expressamente a legitimidade exclusiva do Ministério Público para ajuizamento da ação civil pública, posição também acolhida tanto pela lei 7.347/85 (LACP), como pela lei 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, diplomas que adotaram a legitimação concorrente e disjuntiva para o ajuizamento das ações coletivas. Tanto assim que qualquer dos entes está autorizado a ingressar na demanda na condição de litisconsorte ativo.
Pelo exposto, a ampliação do rol dos legitimados evidentemente não afeta de maneira alguma as atribuições legais do Ministério Público, pelo que se mostra infundada tal alegação, visto que as suas atribuições permanecem inalteradas, após a entrada em vigor da norma questionada.
Do mesmo modo, completamente sem fundamento a alegação de que há incompatibilidade entre as funções constitucionais da Defensoria e a atuação em defesa de direitos e interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos dos necessitados. Em primeiro lugar, há que se repetir o argumento já utilizado no sentido de que a lei não fez qualquer restrição à atuação da Defensoria para o ajuizamento de ação civil pública, não submetendo a instituição a quaisquer requisitos. Em segundo lugar, deve ser feita uma interpretação lógico-sistemática da própria Carta Maior, da lei da ação civil pública e do código consumerista para se concluir pela possibilidade de tal legitimação e conseqüente compatibilidade com o sistema jurídico, como, aliás, já foi feito alhures. Em terceiro lugar, de nada adiantaria o ordenamento conferir a esta entidade o dever de promover o bem-estar e o acesso à justiça dos necessitados se não assegurar todo o instrumental necessário à consecução dos fins perseguidos.
Por derradeiro, deve-se dizer que ao eleger a Defensoria Pública como instituição essencial a função jurisdicional do Estado na defesa dos necessitados, a Constituição Federal atribuiu a esta entidade o dever de assistência jurídica integral, com todos os instrumentos necessários ao alcance de suas finalidades. Consequentemente, toda interpretação em torno das funções desta instituição deve estar pautada na busca da maior amplitude possível, para garantir uma maior eficácia e efetividade da norma constitucional em tela, afastando-se qualquer interpretação de ordem restritiva, especialmente de ordem infraconstitucional, visto que tais dispositivos representam uma garantia constitucional dos mais necessitados.
5. CONCLUSÃO
O ordenamento jurídico brasileiro se ressentia, até o advento da lei nº 7.347/85, de um instrumento processual que servisse à eficaz proteção dos chamados metaindividuais. A ação popular, é verdade, já se prestava a tal propósito, todavia não tinha a amplitude desejada. Importante lembrar que, quando de sua criação, tutelava apenas restrito círculo de interesses metaindividuais (patrimônio público), não alcançando a defesa do meio ambiente e do consumidor, por exemplo. Ademais, a ação popular tinha como único legitimado o cidadão que, não raro, cede frente à complexidade das questões e deixa de ir à juízo.[6]
Com a paulatina consolidação da noção de interesses transindividuais (no fim da década de 70, especialmente, muitos estudos foram empreendidos sobre a temática), forma sendo criados, pari passu, outras formas de instrumentalizar a proteção dessa nova ordem de direitos. A partir da Lei da Ação Civil Pública, que trouxe importantes inovações – ampliação da legitimidade ativa, possibilidade de concessão de liminares e o inquérito civil, dentre outras adiante analisadas – e, sobretudo, a partir da Constituição Federal de 1988, com a positivação daqueles novos conteúdos, próprios ao Estado Democrático de Direito, várias leis ordinárias vieram servir à tutela dos interesses difusos e transindividuais.
A Lei n.º 7.347/85 concebeu a ação civil pública para a tutela do meio ambiente, do consumidor e dos bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e paisagístico. O espectro dos bens tutelados sofreu, pouco a pouco, substancial ampliação. O texto constitucional vem quebrar a taxatividade do disposto no artigo 1º daquele diploma legal, quando acrescenta a possibilidade de defesa de “outros interesses difusos e coletivos”.
Da mesma fórmula valeu-se o legislador ordinário, tendo a Lei n.º 8.078/90 (CDC) feito inserir, no texto da Lei da Ação Civil Pública, dispositivo de igual teor. Ainda, previu a possibilidade de defesa daquela nova categoria de interesses: os chamados “individuais homogêneos”, inovando de maneira decisiva. Com fundamento no CDC, outras entidades que pretenderem a defesa em juízo dos interesses individuais homogêneos, poderão fazê-lo valendo-se da ação coletiva referida no artigo 91 dessa Lei (pergunta-se: a ação do artigo 91 é ação diversa da ACP?).
Com base no artigo 82, III, do CDC, grande parcela da doutrina e jurisprudência nacionais já defendia a possibilidade da Defensoria Pública atuar na defesa dos direitos e interesses metaindividuais por meio da ação civil pública. Todavia, tal celeuma foi abolida diante da alteração da Lei da Ação Civil Pública pela Lei nº 11.448/07, por meio da qual se modificou o art. 5º e expressamente foi ampliada tal legitimação para abranger também a Defensoria Pública (art. 5º, III, Lei 7.347/85).
Importante ressaltar a relevância de tal inovação, especialmente em função da afinidade ideológica e da capacidade técnico-jurídica que a referida instituição goza para defender não somente os interesses dos hipossuficientes, bem como da sociedade em geral.
Dessa forma, vem à tona a noção de representatividade adequada que a Defensoria Pública possui na defesa de tais interesses, consubstanciada na afinidade ideológica e no compromisso com os interesses dos mais fracos jurídica e economicamente. Grande passo foi dado, do ponto de vista jurídico, rumo à concretização da justiça substancial, do direito de acesso ao Judiciário e à realização, em maior escala, do principio fundamental da dignidade da pessoa humana.
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[1] CAPPELLETTI, M.; GARTH, B. Acesso à Justiça. 2ª ed. São Paulo: Safe. 1998.
[2] CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de Processo (RT), vol. 5, p. 128 e seguintes, jan./mar. 1977.
[3] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A proteção judicial de interesses difusos e coletivos: funções e significados. In: SALLES, Carlos Alberto de (coord.). Processo civil e interesse público. p. 125-9. São Paulo: RT, 2003.
[4] Até a presente data não houve julgamento da ADI nº 3.943/2007, atualmente conclusa ao relator. Informação colhida no sítio eletrônico do STF, acesso em 12/12/2013.
[5] ADI 3.943/07, Rel. Ministra Carmem Lúcia, de 16.08.2007 (pendente de julgamento).
[6] Cf. Barroso, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Eficácia de suas Normas, limites e possibilidades da Constituição brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2000. 4ª ed. Pp. 211 e ss.
Advogado da União. Mestre em Direito Constitucional - UFPE. Especialista em Direito Administrativo - UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Marconi Arani Melo. A legitimidade da Defensoria Pública para a tutela coletiva à luz das alterações introduzidas pela Lei 11.448/2007 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 dez 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37760/a-legitimidade-da-defensoria-publica-para-a-tutela-coletiva-a-luz-das-alteracoes-introduzidas-pela-lei-11-448-2007. Acesso em: 23 dez 2024.
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