Esse trabalho tem como objetivo perscrutar realces que, de maneira geral, não são abordados pela doutrina acerca da rigidez constitucional. Mais especificamente tem como foco abordar a relação existente entre instrumentos do direito internacional e o direito constitucional pátrio, principalmente no que atina à matéria direitos humanos e os reflexos decorrentes de tal interação, com forte impacto em conceitos constitucionais comezinhos (com perspectivas abordadas antes e depois da Emenda Constitucional n. 45 de 2004).
Para tanto iniciaremos o estudo em tela apresentando uma delimitação do tema, verificando junto à doutrina o que se entende por rigidez constitucional. Ultrapassada esta fase observaremos que a matéria apresenta mais desdobramentos do que num primeiro instante se poderia averiguar, o que nos impulsiona a analisar a idéia de estabilidade do ordenamento jurídico e rigidez constitucional, para, logo após, passarmos a trabalhar os conceitos até então manobrados na Constituição brasileira vigente.
Nesse momento, didaticamente faremos uma pausa e encerraremos a primeira fase dos nossos estudos, que serão concluídos no artigo que complementa essa obra.
1. RIGIDEZ CONSTITUCIONAL;
Como já adiantamos na introdução deste trabalho o tema ora proposto imbrica em mais debates do que inicialmente se pode constatar. Entretanto, para o bom desenvolvimento deste estudo, faz-se necessário delimitar o que se entende por constituição rígida ou rigidez constitucional.
De forma geral os doutrinadores definem a rigidez constitucional como sendo um procedimento diferenciado de revisão das normas delineadas nas Cartas Políticas, é dizer, em apertada síntese, que para a alteração do conteúdo normativo constitucional impinge-se um processo mais trabalhoso que o despendido para as demais espécies normativas.
Ao contrário, e para melhor esclarecer por via da contraposição, as constituições ditas flexíveis são aquelas em que não existe a necessidade de procedimento mais tenaz para a alteração do seu conteúdo, sendo suficiente, para tanto, a observância do processo legislativo utilizado para a elaboração da legislação ordinária.
O transcrito acima não discrepa do entendimento do nobre doutrinador português Jorge Miranda[1]: “Diz-se rígida a Constituição que, para ser revista, exige a observância de uma forma particular distinta da forma seguida para a elaboração das leis ordinárias. Diz-se flexível aquela em que são idênticos o processo legislativo e o processo de revisão constitucional, aquela em que a forma é a mesma para a lei ordinária e para a lei de revisão constitucional”.
Também o Prof. Celso Bastos[2], utilizando da contraposição para estabelecer as distinções entre as constituições rígidas e as flexíveis, esclarece que “o critério utilizado para a diferenciação entre ambas diz respeito aos requisitos necessários para a reforma constitucional, os quais vêm a ser aqueles referentes ao procedimento especial, previsto por uma Constituição rígida, para que ela seja modificada, total ou parcialmente. Apenas as Constituições rígidas são modificáveis por um procedimento especial, posto que as flexíveis não prevêem duplicidade de processos legislativos, nenhuma diferença formal apresentando tanto a atividade legislativa ordinária quanto a constitucional”.
E agregando novos conceitos para a inteligência da rigidez constitucional acentua o constitucionalista J. J. Gomes Canotilho[3] que “Na Constituição portuguesa de 1976 todo o Título II da Parte IV é dedicado ao problema da revisão da Constituição. Da leitura dos arts. 284º e ss conclui-se que a Constituição é do tipo rígida, pois exige para a sua modificação um processo agravado em relação ao processo de formação das leis ordinárias. Todavia, ao contrário do que muitas vezes se afirma, não é a existência de um processo de revisão estabelecedor de exigências específicas para a modificação da Constituição que caracteriza a rigidez da Constituição. Este carácter deve procurar-se antes, em sede do poder constituinte. As normas de revisão não são o fundamento da rigidez da Constituição mas os meios de revelação da escolha feita pelo poder constituinte. Esta escolha de um processo agravado de revisão, impedindo a livre modificação da lei fundamental pelo legislador ordinário (constituição flexível), considera-se uma garantia da Constituição. O processo agravado da revisão é, por sua vez, um instrumento dessa garantia – a rigidez constitucional é um limite absoluto ao poder de revisão, assegurado, desta forma, a relativa estabilidade da Constituição”.
Com seu inegável brilhantismo assevera o jurista português, acertadamente, que em verdade o processo legislativo mais agravado para a modificação do conteúdo das normas constitucionais implica num instrumento de garantia da Carta, que reflete a tentativa de propiciar estabilidade ao ordenamento jurídico por meio da supremacia absoluta das normas advindas da Constituição.
Aliás, sobre a ligação existente entre a rigidez constitucional e a estabilidade do sistema normativo supremo já havíamos tecido alguns comentários em estudo anterior, sobre o tema “mutação constitucional” [4], quando então concluíamos que “(...) a rigidez constitucional ajuda a conferir maior estabilidade e segurança às Constituições, vedando que se altere o que foi estatuído sob intenso debate, mediante a aprovação de uma lei ordinária numa véspera de feriado em que compareceram ao Congresso Nacional somente os parlamentares diretamente interessados na aprovação da lei”[5].
Portanto, reforçando o entendimento e nos aproveitando dos ensinamentos de Canotilho, podemos estabelecer que a rigidez constitucional é um instrumento pelo qual se exige um processo legislativo mais solene e agravado para a alteração das normas constitucionais, com a finalidade de conferir maior estabilidade e segurança ao sistema. É deste raciocínio que se deflui, segundo o Prof. José Afonso da Silva[6], a superioridade do ordenamento jurídico constitucional.
Estando traçadas as bases mínimas sobre a rigidez constitucional averigüemos, com um pouco mais de detença, sua relação com a estabilidade e segurança do sistema.
2. ESTABILIDADE E RIGIDEZ CONSTITUCIONAL;
A lógica da rigidez constitucional é conferir maior estabilidade ao ordenamento jurídico por meio de propostas de revisão elaboradas sob a imposição de rito solene que culmina por desencadear intensos e demorados debates, estando a Carta Política, desta forma, menos suscetível a intempéries provindas da instabilidade política de um período determinado.
Nas palavras do insigne José Horácio Meirelles Teixeira: “A essência das Constituições rígidas consiste, portanto, na exigência de processos mais solenes, mais dificultosos e mais demorados, para sua modificação, que os processos comuns de elaboração das leis ordinárias, e, daí, dessa impossibilidade de serem modificadas por estas, uma certa permanência ou estabilidade, ao menos teórica, que, na expressão de Garcia Pelayo, as transforma num ‘complexo normativo ou forma firme, através da qual passa o movimento da vida’”[7].
É justamente este o enfoque que pretendemos apresentar neste tópico, qual seja, a rigidez constitucional confere mera “estabilidade teórica” às Cartas Políticas, como instrumento que garante (também teoricamente) um forçoso e tenaz debate sobre eventuais alterações no Ordenamento Supremo.
Mais isso é muito pouco para angariar a estabilidade que se pretende, pois esta não advém de formas ou solenidades, mas sim da força ativa[8] das Constituições. Entendemos que a estabilidade que se busca nas Cartas de Princípios está na força normativa das respectivas constituições, de que nos fala o jurista alemão Konrad Hesse[9], ou seja, é do respeito e fortalecimento dessa força normativa que se confere um mínimo de segurança ao ordenamento constitucional, independentemente de ser o mesmo “rígido” ou “flexível”.
E para referendar o raciocínio apresentado transcrevemos a brilhante elucidação de Meirelles Teixeira: “A verdade é que algumas Constituições, como as histórico-costumeiras, a inglesa, por exemplo, apresentam uma estabilidade que lhes advém da sua própria natureza, da sua lenta formação, da sua progressiva adaptação às necessidades políticas e sociais, e à mentalidade do povo a que se aplicam, da educação política deste, etc., estabilidade real, autêntica, a que Pontes de Miranda denomina estabilidade extratécnica, ao passo que outras, as Constituições escritas, dogmáticas, faltando-lhes aquelas condições, procuram criar, artificialmente, uma estabilidade técnica, ao estabelecerem processos jurídicos, complicados, difíceis, demorados e solenes de reforma, e aí se nos depara exatamente a noção de “rigidez constitucional”, de constituição “rígida”. Por isso mesmo, autores como Mc Bain preferem falar em estabilidade sociológica (caso da Inglaterra) e estabilidade legal (Brasil, Estados Unidos, França, etc.). Daí o paradoxo, apenas aparente, de um país como a Inglaterra, cuja Constituição é flexível, apresentar uma estabilidade política muito maior que os países do continente europeu e da nossa América Latina, com suas enfáticas Constituições rígidas. Evidentemente vale muito mais a rigidez sociológica, que se assenta na mais ou menos perfeita adequação entre a constituição e a conjuntura social e política, que a rigidez puramente jurídica, geralmente incapaz, como sobejamente no-lo demonstra a História, de resistir ao impacto das crises políticas e sociais, do desajustamento entre o sistema político e jurídico e as exigências da realidade político-social”[10].
Sendo assim, é o que pretendíamos enfatizar: a rigidez constitucional é instrumento que tem como objetivo conferir maior estabilidade às Cartas Políticas, entretanto, por si só não alcança tal desiderato.
3. CONSTITUIÇÃO FEDERAL (1988) - considerações finais;
A unanimidade dos constitucionalistas, pátrios e estrangeiros, classifica a Constituição Federal brasileira de 1988 como sendo do tipo rígida. Aliás, o Prof. Alexandre de Moraes, na sua classificação das constituições - quanto à estabilidade - em rígidas, semi-rígidas (ou semiflexíveis)[11] e flexíveis, imputa à Constituição brasileira a categoria de super-rígida, “uma vez que em regra poderá ser alterada por um processo legislativo diferenciado, mas, excepcionalmente, em alguns pontos é imutável (CF, art. 60, §4º - cláusulas pétreas)”[12].
Mas será que a Carta Magna brasileira vigente pode ser considerada rígida?
Sem qualquer pretensão de retificar o que hodiernamente é pacífico na doutrina pátria, ou mesmo de nos contrapormos aos ensinamentos de tão conceituados mestres, apresentamos a questão como uma proposta de discussão das novas bases que sustentam o constitucionalismo moderno.
No próximo artigo, que finaliza esse estudo, faremos uma análise do sistema constitucional brasileiro em contraponto com o ordenamento jurídico internacional. Observaremos as interfaces, interdependências, as reformas constitucionais com impacto no assunto e, finalmente, fecharemos o tema que, como dito, perfaz sadia provocação.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS;
BASTOS, CELSO RIBEIRO. Curso de direito constitucional, 20ª edição. São Paulo: Saraiva, 1999.
CANOTILHO, J.J.GOMES. Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 3ª edição. Coimbra (Portugal): Livraria Almedina, 1999.
GALLO, RONALDO GUIMARÃES. Mutação constitucional . Jus Navigandi, Teresina, ano 7, número 63, março de 2003. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3841>.
HESSE, KONRAD. A Força Normativa da Constituição – tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre-RS: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991.
MORAES, ALEXANDRE DE. Direito Constitucional, 10ª edição. São Paulo: Atlas, 2001.
SILVA, JOSÉ AFONSO. Aplicabilidade das Normas Constitucionais, 5ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2001.
_______________ . Curso de Direito Constitucional Positivo, 18ª edição, revista e atualizada nos termos da Reforma Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 2000.
TEIXEIRA, JOSÉ HORÁCIO MEIRELLES. Curso de Direito Constitucional, texto revisto e atualizado por Maria Garcia. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991.
BIBLIOGRAFIA;
BARACHO, JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA. Teoria Geral das Constituições Escritas. In: Revista Brasileira de Estudos Políticos, n. 60/61, janeiro/julho, 1985, Universidade Federal de Minas Gerais, p. 25-98.
CANÇADO TRINDADE, ANTÔNIO AUGUSTO. Direito Internacional e Direito Interno: sua interação na proteção dos direitos humanos. In: Procuradoria Geral do Estado de São Paulo. Grupo de Trabalho de Direitos Humanos. Instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos. 2ª tiragem. São Paulo: Centro de Estudos da Proc. Geral do Estado, p. 15-46, 1997. (série Documentos, n. 14).
___________________ . A interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos. In: Cançado Trindade, Antônio Augusto (editor). A incorporação das normas internacionais de Proteção dos Direitos Humanos no direito brasileiro. São José, C.R.: IIDH, ACNUR, CIVC, CUE, p. 205-236, 1996.
Carvalho, Weliton. Tratados internacionais de direitos humanos anteriores à Emenda Constitucional 45: o problema do status normativo. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, n. 8, 2010, págs. 339 – 364.
HORTA, RAUL MACHADO. Direito Constitucional – 2ª ed. rev., atual. e ampliada – Belo Horizonte: Del Rey, p. 119-128, 1999.
PIOVESAN, FLÁVIA. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. São Paulo: Max Limonad, 2000.
[1] Manual de Direito Constitucional – Constituição e Inconstitucionalidade – Tomo II, p. 143.
[2] Curso de Direito Constitucional, p. 51.
[3] Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 989.
[4] Gallo, Ronaldo Guimarães. Mutação constitucional . Jus Navigandi, Teresina, a. 7, n. 63, mar. 2003. Disponível em: <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=3841>.
[5] Em consonância, Jorge Miranda: “A força jurídica das normas constitucionais liga-se a um modo especial de produção e as dificuldades postas à aprovação de uma nova norma constitucional impedem que a Constituição possa ser alterada em quaisquer circunstâncias, sob a pressão de certos acontecimentos, ou que possa ser afectada por qualquer oscilação ou inversão da situação política”. op. cit. p. 144.
[6] Aplicabilidade das Normas Constitucionais, p. 41-43.
[7] Curso de direito constitucional, texto revisto e atualizado por Maria Garcia, p. 110.
[8]Hesse, Konrad; A força normativa da Constituição, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, p. 19.
[9] Ibidem.
[10] Curso de direito constitucional ..., p. 111-112.
[11] “Como um meio-termo entre as duas anteriores, surge a constituição semiflexível ou semi-rítida, na qual algumas regras poderão ser alteradas pelo processo legislativo ordinário, enquanto outras somente por um processo legislativo especial e mais dificultoso”. – Moraes, Alexandre de; Direito Constitucional, p. 37.
[12] Idem, ibidem.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: GALLO, Ronaldo Guimarães. Repensando a rigidez constitucional - Uma provocação atropelada pela EC 45 de 2004 - Parte I Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 dez 2013, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37832/repensando-a-rigidez-constitucional-uma-provocacao-atropelada-pela-ec-45-de-2004-parte-i. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
Por: Benigno Núñez Novo
Por: Mirela Reis Caldas
Por: Juliana Melissa Lucas Vilela e Melo
Precisa estar logado para fazer comentários.