RESUMO: A Constituição Federal traz em seu bojo uma série de limitações ao constituinte derivado e ao legislador infraconstitucional. Os limites ao constituinte derivado decorrem da própria Constituição Federal e são classificados como expressos e tácitos. Como a legislação infraconstitucional tem hierarquia inferior a Constituição, todos os limites estabelecidos para o constituinte derivado também devem ser obedecidos pelo legislador infraconstitucional. Porém, há limitações específicas, as quais podem ser divididas entre formais e materiais. Entendem-se como limites formais a observância às regras de formação do ato normativo e, como limites materiais, as cláusulas pétreas, os direitos fundamentais e os princípios e regras constitucionais.
1. Considerações iniciais.
O presente artigo pretende apresentar as limitações impostas pela Constituição Federal ao legislador infraconstitucional.
A Constituição Federal, como forma de preservar a plena eficácia de suas normas, traz em seu bojo uma série de limitações ao constituinte derivado e ao legislador infraconstitucional. Todavia, há limites que transcendem o texto escrito da Carta Magna e que devem ser observados, sob pena de exclusão da ordem jurídica por vício de inconstitucionalidade.
A definição do poder constituinte, as suas condições de reforma da Carta e os limites constitucionais para edição dos atos normativos inferiores serão tratados a seguir no presente trabalho.
2. Os limites constitucionais do legislador infraconstitucional.
Não há como tratar dos limites constitucionais conferidos ao legislador infraconstitucional sem discorrer, preliminarmente, sobre o poder constituinte.
A doutrina costuma dividir o poder constituinte em duas espécies: o poder constituinte originário e o poder constituinte derivado.
O poder constituinte originário é aquele que inaugura uma nova ordem constituinte, ou seja, que produz uma nova Constituição. Visa à regulação jurídica e a legitimação das circunstâncias que são reconhecidas com aceitáveis e justas pela sociedade.
Sua função é justificar o ordenamento jurídico e descrever os fatos que precedem a ruptura constitucional com o modelo anterior. Começa pela teoria política a ser aplicada, passa pela doutrina que a embasa, pela regulação jurídica e, ao final, pela legitimação das questões inscritas no texto constitucional.
Segundo o Sieyes, o poder constituinte tem as seguintes características: é inicial, conforme já exposto acima; autônomo, pois só ele pode dizer quando e como pode ser reformado, sem subordinação a nenhuma regra de fundo, tendo em vista que é titularizado pelo povo; e incondicionado. Segundo Paulo Branco[1]:
É inicial, porque está na origem do ordenamento jurídico. É o ponto de começo do Direito. Por isso mesmo, o poder constituinte não pertence à ordem jurídica, não está regido por ela. Decorre daí a outra característica do poder constituinte originário – é ilimitado. Se ele não se inclui em nenhuma ordem jurídica, não será objeto de nenhuma ordem jurídica. O Direito anterior não o alcança nem limita a sua vontade. Pode decidir o que quiser. De igual sorte, não pode ser regido nas suas formas de expressão pelo Direito preexistente, daí se dizer incondicionado.
Em que pese a característica da incondicionabilidade, o poder constituinte originário tem, na verdade, 3 tipos de limites de acordo com a visão contemporânea: transcendentes, imanentes e heterônomos.
Os limites transcendentes são aqueles que vão além do próprio objeto do pensamento. Já os imanentes consistem naquilo que decorre da própria coisa e é intrínseco ao próprio ser; são aqueles que se antepõem a própria vontade do povo e do Estado e que vêm da própria ideia de direito que se quer fazer. De acordo com Canotilho: “são aqueles imperativos do Direito Natural, dos valores éticos superiores que se antepõem a vontade daquele poder que está fazendo a constituição”. É o caso, por exemplo, da escravidão, que nunca será admitida, e de outras situações que poderão ser contatadas no caso concreto.
Com relação aos limites heterônomos, eles decorrem especialmente da conjugação de outros ordenamentos, sejam de outros órgãos ou de outras nações (Direito Internacional).
Feitas essas breves considerações sobre o poder constituinte originário, passaremos a tratar do poder constituinte derivado.
O poder constituinte derivado é aquele que tem o dever de reformar ou emendar a Constituição. É um poder jurídico, revisor do texto da carta em determinado momento ou forma especial.
As Constituições das nações, regra geral, têm como característica comum o fato de não serem imutáveis. É essencial essa possibilidade de se poder mudar o texto constitucional, porque, ao contrário, essa circunstância afetaria a soberania. Segundo Paulo Branco[2]:
Se a reforma da Constituição tem por objetivo revitalizar a própria Constituição como um todo, é de entender que a identidade básica do texto deve ser preservada, o que, por si, já significa um limite à atividade de reforma. O próprio constituinte originário pode indicar os princípios que não admite sejam modificados, como forma de manter a unidade no tempo do seu trabalho.
No ordenamento jurídico pátrio, os limites de alteração decorrem da própria Constituição Federal e são classificados como expressos e tácitos. Os limites expressos, por sua vez, são divididos em temporais, circunstanciais, materiais e procedimentais.
Os limites temporais consistem na possibilidade de ser estabelecido um prazo para a revisão, como, por exemplo, as regras estabelecidas no art. 60, § 5º, e art. 57 da Constituição Federal. Já os limites circunstanciais são momentos em que a Constituição não pode ser modificada, como no período em que declarado o Estado de Sítio (art. 60, §1º, da Constituição Federal). Os limites materiais consistem nas regras que não podem ser alteradas na Constituição, as chamadas cláusulas pétreas (art. 60, §4º); os procedimentais, a necessidade de seguir o rito previsto na Constituição para a edição de emendas constitucionais.
Já os limites tácitos decorrem da própria forma da Constituição se organizar. Ela não pode ser totalmente alterada, porque, na prática, haveria a expressão do poder constituinte originário, não do derivado. Outro exemplo de limite tácito consiste na impossibilidade de alteração do procedimento de reforma para reduzir os requisitos mínimos. Nesse sentido, afirma Paulo Bonavides[3]:
Quanto à extensão da reforma, considera-se, no silêncio do texto constitucional, excluída a possibilidade de revisão total, porquanto admiti-la seria reconhecer ao poder revisor capacidade soberana para ab-rogar a Constituição que o criou, ou seja, para destruir o fundamento de sua competência ou autoridade mesma. Há também reformas parciais que, removendo um simples artigo da Constituição, podem revogar princípios básicos e abalar os alicerces de todo o sistema constitucional, provocando, na sua inocente aparência de simples modificação de fragmentos do texto, o quebrantamento de todo o espírito que anima a ordem constitucional.
Feita essa breve exposição acerca do poder constituinte e sobre os limites de alteração da Carta Magna, podemos ingressar no tema objeto do presente artigo.
Como a legislação infraconstitucional tem hierarquia inferior a Constituição e, logicamente, às emendas constitucionais, todos os limites estabelecidos para o constituinte derivado também devem ser obedecidos pelo legislador infraconstitucional.
Porém, há limitações específicas ao legislador infraconstitucional, as quais podem ser divididas entre formais e materiais e serão tratadas a seguir.
Entendem-se como limites formais a observância às regras de formação do ato normativo. Podem ocorrer em dois momentos, na fase da iniciativa (limite formal subjetivo) ou na da constituição (limite formal objetivo). Os limites formais também são chamados de nomodinâmicos.
No caso, a iniciativa é a faculdade que se atribui a alguém ou a algum órgão de apresentar projeto de lei para o Legislativo. No âmbito federal, as iniciativas podem ser classificadas como geral (art. 61, caput, da Constituição Federal), concorrente (mais de uma pessoa ou órgão legitimado a deflagrar o projeto de lei), privativa (atribuída a um órgão ou pessoa específico, p.ex., art. 61, §1º), popular (exercício da soberania popular, p.ex., art. 14, caput, e inciso III c/c art. 61, §2º) e especiais (por exemplo, art. 61, §1º II, d, art. 96, II, art. 93, art. 51, IV, art. 52, XIII, art. 67).
A fase constitutiva do processo legislativo contempla os limites formais e objetivos da elaboração da lei. Trata-se das questões atinentes à forma, prazos e rito de processamento legislativo.
Em relação às espécies normativas, elas estão previstas no art. 59 da Constituição Federal. Segundo Pedro Lenza e José Afonso da Silva, não há hierarquia entre as espécies normativas, com exceção das emendas constitucionais, que são superiores às demais. Segundo os doutrinadores, cada espécie normativa atua dentro de sua parcela de competência. Se houver a invasão da competência de uma espécie por outra, haverá vício formal que acarretará em inconstitucionalidade.
Todavia, a maior polêmica reside na ausência de hierarquia entre as leis ordinárias e complementares. Uma corrente defende que há hierarquia, integrada, dentre outros, por Alexandre de Morais, e outra que não há (Pedro Lenza e Celso Bastos). Os que defendem que há hierarquia assim se posicionam porque há quórum diferenciado para a aprovação de lei complementar, porque há hipóteses taxativas para a sua edição e porque a lei ordinária deve seguir a lei complementar. Já os que entendem que não há hierarquia afirmam que as duas têm seu fundamento de validade na Constituição Federal, estipulando, essa, âmbitos materiais diferenciados de atuação.
Além disso, o legislador infraconstitucional deve observar limites materiais na sua atuação. Diz respeito à matéria, ao conteúdo do ato normativo. Se este ato afrontar alguma matéria da Lei Maior, deverá ser declarado inconstitucional. São conhecidos também como nomoestáticos.
Assim como para o legislador constitucional derivado, as cláusulas pétreas são as principais limitações materiais à atuação do legislador infraconstitucional, juntamente com os direitos fundamentais e os princípios e regras constitucionais.
As cláusulas pétreas estão previstas no art. 60, § 4º da Constituição Federal e consistem na proibição de proposta de emenda constitucional (e, por consequência, de lei) com o objetivo de abolir a forma federativa de Estado (art. 1º), o voto secreto, universal e periódico (art. 14), a separação dos Poderes (art. 2º) e os direitos e garantias individuais (art. 5º). Sua finalidade é bem definida por Paulo Branco[4]:
A cláusula pétrea não existe tão só para remediar situação de destruição da Carta, mas tem a missão de inibir a mera tentativa de abolir o seu projeto básico. Pretende-se evitar que a sedução de apelos próprios de certo momento político destrua um projeto duradouro.
Com relação aos direitos fundamentais, eles estão previstos, principalmente, no título II da Constituição Federal (art. 5º ao 17), não excluindo outros existentes ao longo da Constituição (p.ex., art. 150) ou decorrentes do regime e princípios constitucionais ou, ainda, de tratados internacionais em que o Brasil seja parte (art. 5º, §2º).
Por fim, os princípios e regras constitucionais são limites sempre presentes na atuação do legislador. As regras constitucionais são aquelas previstas no texto constitucional ou em tratados ou convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados pelo quórum das emendas constitucionais (art. 5º, §3º).
Já os princípios constitucionais são as ordenações que se irradiam e imanam os sistemas de normas. São núcleos nos quais se conjugam valores e bens constitucionais, que nem sempre estão expressos na Constituição.
Dependem de uma série de elementos para serem concretizados e detém alto grau de abstração e generalidade. Por isso, pode ser aplicado a um sem número de situações, as quais deverão sempre atentadas pelo legislador infraconstitucional.
Finalmente, cabe consignar que as matérias reservadas à lei complementar pela Constituição Federal também são consideradas formas de limite substantivo ao legislador.
O legislador infraconstitucional, portanto, está submetido a uma série de limitações no exercício de seu mister. As limitações formais compreendem aspectos relativos à iniciativa, competência, forma, prazos e rito do processo legislativo. Também está submetido à limitações materiais, consistentes na impossibilidade da propositura de projetos de lei que atentem contra as cláusulas pétreas, os direitos fundamentais e os princípios e regras constitucionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 15. ed., 2004.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 19.ed., 2001.
[1] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 232.
[2] Idem, p.250.
[3] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 15. ed., 2004, p. 202.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p.253.
Procurador Federal. Subprocurador-Geral do INSS. Especialista em Direito Previdenciário, Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC. Especialista em Direito Público pela UNIDERP. Bacharel em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CASSEPP, Alexandre Azambuja. As limitações constitucionais do legislador infraconstitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 dez 2013, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37850/as-limitacoes-constitucionais-do-legislador-infraconstitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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