INTRODUÇÃO
O ordenamento jurídico brasileiro evidencia a essencialidade do direito à saúde, cabendo a sua implementação aos Poderes Legislativo e Executivo, precipuamente.
Todavia, em virtude de indevida omissão estatal, observa-se que são cada vez mais recorrentes decisões judiciais que determinam ao Poder Executivo o fornecimento de medicamentos ou a realização de procedimentos médicos complexos.
Nesses litígios, não raro, verifica-se uma instrução não condizente com a complexidade da causa, que exige conhecimentos técnicos específicos da área da saúde.
Se de um lado o Poder Judiciário não pode ficar refém de uma instrução que inviabilize o próprio direito fundamental à saúde do cidadão; por outro, não pode desconsiderar que a causa de saúde detém uma complexidade inerente e que requer especial atenção.
DESENVOLVIMENTO
A Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 destinou uma seção específica que trata do direito à saúde, demonstrando a relevância do tema e a necessidade de garanti-lo, nos seguintes termos:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Art. 197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais;
III - participação da comunidade.
§ 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. (Parágrafo único renumerado para § 1º pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
§ 2º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios aplicarão, anualmente, em ações e serviços públicos de saúde recursos mínimos derivados da aplicação de percentuais calculados sobre: (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
I - no caso da União, na forma definida nos termos da lei complementar prevista no § 3º; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
II - no caso dos Estados e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 155 e dos recursos de que tratam os arts. 157 e 159, inciso I, alínea a, e inciso II, deduzidas as parcelas que forem transferidas aos respectivos Municípios; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
III - no caso dos Municípios e do Distrito Federal, o produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 156 e dos recursos de que tratam os arts. 158 e 159, inciso I, alínea b e § 3º.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
§ 3º Lei complementar, que será reavaliada pelo menos a cada cinco anos, estabelecerá:(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000) Regulamento
I - os percentuais de que trata o § 2º; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
II - os critérios de rateio dos recursos da União vinculados à saúde destinados aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, e dos Estados destinados a seus respectivos Municípios, objetivando a progressiva redução das disparidades regionais; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
III - as normas de fiscalização, avaliação e controle das despesas com saúde nas esferas federal, estadual, distrital e municipal; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
IV - as normas de cálculo do montante a ser aplicado pela União.(Incluído pela Emenda Constitucional nº 29, de 2000)
§ 4º Os gestores locais do sistema único de saúde poderão admitir agentes comunitários de saúde e agentes de combate às endemias por meio de processo seletivo público, de acordo com a natureza e complexidade de suas atribuições e requisitos específicos para sua atuação. .(Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006)
§ 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006) (Vide Medida provisória nº 297. de 2006)
§ 5º Lei federal disporá sobre o regime jurídico, o piso salarial profissional nacional, as diretrizes para os Planos de Carreira e a regulamentação das atividades de agente comunitário de saúde e agente de combate às endemias, competindo à União, nos termos da lei, prestar assistência financeira complementar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, para o cumprimento do referido piso salarial. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 63, de 2010) Regulamento
§ 6º Além das hipóteses previstas no § 1º do art. 41 e no § 4º do art. 169 da Constituição Federal, o servidor que exerça funções equivalentes às de agente comunitário de saúde ou de agente de combate às endemias poderá perder o cargo em caso de descumprimento dos requisitos específicos, fixados em lei, para o seu exercício. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 51, de 2006)
Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.
§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.
§ 2º - É vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos.
§ 3º - É vedada a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei.
§ 4º - A lei disporá sobre as condições e os requisitos que facilitem a remoção de órgãos, tecidos e substâncias humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão de sangue e seus derivados, sendo vedado todo tipo de comercialização.
Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei:
I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos;
II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de saúde do trabalhador;
III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;
IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento básico;
V - incrementar em sua área de atuação o desenvolvimento científico e tecnológico;
VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;
VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;
VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
A Lei n. 8.080/90, por sua vez, reza que:
Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.
§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
§ 2º O dever do Estado não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade. – Original sem grifos.
Dessa forma, diante da análise constitucional e legal, não há dúvida de que o direito à saúde é um direito fundamental social, oponível erga omnes, demandando uma atuação positiva do poder público.
Cumpre salientar a importante lição de Paulo Gustavo Gonet Branco, in verbis:
A circunstância de os direitos a prestação traduzirem-se numa ação positiva do Estado confere-lhes peculiaridades estruturais, em termos de níveis de densidade normativa, que os distinguem dos direitos de defesa, não somente quanto à finalidade, mas, igualmente, quanto ao seu modo de exercício e à eficácia.
(...)
Há direitos fundamentais cujo objeto se esgota na satisfação pelo Estado de uma prestação de natureza jurídica. O objeto do direito será a normação pelo Estado do bem jurídico protegido como direito fundamental. Essa prestação jurídica pode consistir na emissão de normas jurídicas penais ou de normas de organização e de procedimento.
(...)
Os chamados direitos a prestações materiais recebem o rótulo de direitos a prestação em sentido estrito. Resultam da concepção social do Estado. São tidos como os direitos sociais por excelência. Estão concebidos com o propósito de atenuar desigualdades de fato na sociedade, visando ensejar que a libertação das necessidades aproveite ao gozo da liberdade efetiva por um maior número de indivíduos. O seu objeto consiste numa utilidade concreta (bem ou serviço).
(...)
A maioria dos direitos a prestação, entretanto, quer pelo modo como enunciados na Constituição, quer pelas peculiaridades do seu objeto, depende da interposição do legislador para produzir efeitos plenos.
(...)
Os direitos a prestação material têm sua efetivação sujeita às condições, em cada momento, da riqueza nacional. Por isso mesmo, não seria factível que o constituinte dispusesse em minúcias, de uma só vez, sobre todos os seus aspectos. Por imposição da natureza do objeto dos direitos a prestação social, o assunto é entregue à conformação do legislador ordinário, confiando-se na sua sensibilidade às possibilidades de realização desses direitos em cada momento histórico.[1]
O direito à saúde pressupõe a implementação de políticas públicas pelo Poder Público, de forma a alcançar a universalidade e a integralidade do atendimento.
Segundo o Ministro Gilmar Ferreira Mendes, in verbis:
(...) a própria evolução da medicina impõe o viés programático ao direito à saúde, pois sempre haverá uma nova descoberta, um novo exame, um novo prognóstico ou procedimento cirúrgico, uma nova doença ou a volta de uma doença supostamente erradicada.[2]
Diante desse contexto, fica evidente a necessidade de implementação efetiva do direito constitucional à saúde, inclusive, mediante atuação do Poder Judiciário quando verificada a omissão dos demais Poderes, conforme decidido na ADPF 45.
Todavia, a referida implementação deve observar critérios objetivos de segurança, a fim de preservar a integridade física e psicológica do jurisdicionado.
O Conselho Nacional de Justiça, no bojo da Recomendação n° 31/2010, já manifestou a preocupação quanto à instrução processual das demandas de saúde, nos seguintes termos:
I. Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais que:
b) orientem, através das suas corregedorias, aos magistrados vinculados, que:
b.1) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com descrição da doença, inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com denominação genérica ou princípio ativo, produtos, órteses, próteses e insumos em geral, com posologia exata;
Apesar dessas diretrizes, observa-se constantemente nas demandas judiciais que o único documento a embasar a pretensão da parte autora é simplesmente a receita médica, mesmo quando a causa posta em juízo demanda enorme complexidade técnica.
Diante desse quadro, percebe-se que é extremamente aconselhável o estabelecimento de parâmetros objetivos para a instrução das demandas de saúde.
Nesse sentido, uma medida que poderia ser adotada pelo Poder Judiciário é exigir do médico que prescreve o medicamento ou o procedimento médico a declaração de total inexistência de conflitos de interesses.
Perguntas simples para verificar se a declaração de inexistência de conflito de interesses é válida podem ser feitas ao médico, como por exemplo: 1. já recebeu ou recebe, a qualquer título, algum auxilio financeiro como passagem, hospedagem ou subvenção para participação em congressos e/ou eventos científicos patrocinados pelo laboratório produtor do medicamento prescrito? 2. Já participou, a qualquer titulo, de algum estudo referente ao medicamento prescrito? Se sim, indicar de quem é a iniciativa do estudo e para que finalidade?
Tal medida permite deixar claro que a prescrição médica é isenta de interesses secundários.
Outro ponto importante é a análise da evidência científica daquilo que é pedido, podendo ser feitos os seguintes questionamentos: 1. Qual o tipo de estudo científico utilizado no desenvolvimento do medicamento; 2. Quem foi o patrocinador do estudo; 3. No estudo, com que a medicação foi comparada; 4. Se comparada com placebo, dizer se já existe tratamento médico padrão no mercado.
Essas medidas permitem que o Poder Judiciário analise se a pretensão deduzida em juízo detém um mínimo de evidência científica que viabilize o seu deferimento, garantindo ao jurisdicionado que o seu direito seja implementado de forma segura e eficaz.
CONCLUSÃO
Portanto, não há dúvidas de que é dever do Estado, através de uma atuação positiva, garantir ao cidadão a fruição do direito fundamental à saúde. Em caso de omissão injustificada, cabe ao Poder Judiciário assegurar a plena eficácia desse direito social.
Nesse sentido, as demandas judiciais são de extrema relevância para a concretização e garantia do direito à saúde. Contudo, deve-se buscar uma adequada instrução probatória, a fim de assegurar a higidez física e psicológica do jurisdicionado.
Ante o exposto, não se pode desconsiderar que a causa de saúde detém uma complexidade inerente e que requer especial atenção, devendo haver uma análise efetiva e concreta do pleito, através de critérios objetivos que garantam uma decisão judicial adequada ao caso concreto.
[1] Curso de Direito Constitucional. Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco. 5ª edição revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2010, págs. 335-337.
[2] Idem 2. Pág. 834.
Advogada da União. Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RIBEIRO, Cynthia Arcoverde. Instrução probatória nas demandas judiciais de saúde Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 02 jan 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37930/instrucao-probatoria-nas-demandas-judiciais-de-saude. Acesso em: 23 dez 2024.
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