INTRODUÇÃO
O presente artigo visa abordar a divergência que existe entre os dois principais tribunais brasileiros acerca da tipificação como crime de furto, ou não, da conduta de interceptação de sinal de televisão a cabo.
Trata-se de um tema que traz à tona alguns princípios jurídicos basilares, como fundamentação para o posicionamento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
1. TIPIFICAÇÃO DO CRIME DE FURTO
O Código Penal é o principal diploma jurídico responsável por estabelecer as condutas consideradas como crime. Em seu título II, dos crimes contra o patrimônio, tutela e protege o direito de propriedade.
Entre os crimes arrolados nesse título, o primeiro que se encontra tipificado é o furto, previsto no art. 155, o qual possui a definição de subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel.
Segundo Nucci ( 2008, p. 705) o conceito de furto é:
“... apoderar-se ou assenhorar-se de coisa pertencente a outrem, ou seja, tornar-se senhor ou dono daquilo que, juridicamente, não lhe pertence. O nomen júris do crime, por si só, dá uma bem definida noção do que vem a ser a conduta descrita no tipo penal.”
Já para Sanches ( 2013, p. 269) furtar é:
“... apoderar-se o agente, para si ou para outrem, de coisa alheia móvel, tirando-a de quem a detém (diminui-se o patrimônio da vítima)”
2. FURTO DE ENERGIA ELÉTRICA E A POSIÇÃO DO STJ
Popularmente chamado de “gato”, o furto de energia elétrica tornou-se uma prática comum entre os brasileiros. Com o intuito de coibir o uso indiscriminado desta conduta, o legislador achou por bem tipificá-la penalmente, equiparando-a à coisa alheia móvel. O referido delito encontra-se previsto no art. 155, § 3° do Código Penal:
Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel:
Pena - reclusão, de um a quatro anos, e multa.
§ 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico.
Baseando-se nesse parágrafo, o STJ tem se posicionado no sentido de que a interceptação do sinal de televisão a cabo é uma forma de furto de energia, pois de acordo com parecer da quinta turma da corte:
“O sinal de televisão propaga-se através de ondas, o que na definição técnica se enquadra como energia radiante, que é uma forma de energia associada à radiação eletromagnética.”
Sendo assim, com base nesse entendimento, no julgamento do Resp 1123743/RS, Relator(a) Ministro Gilson Dipp, o tribunal considerou a tipicidade da conduta em questão equiparando-a ao furto de energia.
3. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
O princípio da legalidade é considerado um dos princípios mais importantes do ordenamento jurídico. Ele vem insculpido no inciso XXXIX do art. 5º da Constituição Federal que diz não haver crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem a prévia cominação legal.
Tal princípio também é encontrado no art. 1º do Código Penal e possui redação quase idêntica a da carta magna. De acordo com essa regra, uma conduta não pode ser considerada crime se não tiver sido promulgada uma lei que a tipifique como delito.
É essa norma que faz com que haja uma segurança jurídica para o cidadão não ser punido se não houver uma previsão legal, criando o tipo penal incriminador, isto é, definindo as condutas proibidas, sob a ameaça de sanção.
Assim, de acordo com esse preceito, grande parte da doutrina entende que, para que a interceptação do sinal de televisão a cabo seja considerada crime de furto, deveria ela estar expressamente prevista no artigo que tipifica tal delito.
4. ANALOGIA E POSIÇÃO DO STF
O Direito Penal Brasileiro utiliza diferentes formas de interpretação de uma norma penal com o objetivo de buscar seu verdadeiro sentido de acordo com o caso concreto que se pretende apurar.
Entre as formas de interpretação quanto ao resultado destacam-se a interpretação extensiva, que amplia o alcance das palavras legais a fim de buscar a real finalidade da norma, e a interpretação analógica, a qual o legislador, por não poder prever todas as situações que poderiam ocorrer na vida em sociedade e que seriam similares àquelas por ele já elencadas, permite a utilização de uma forma casuística, seguida de uma genérica, para ampliar o alcance da norma.
Tanto a interpretação extensiva como a interpretação analógica permitem a ampliação do conteúdo da lei penal como forma de abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador, mas que por ele foram também desejadas de serem abrangidas.
É importante ressaltar que ambas as espécies são amplamente aceitas pela doutrina e jurisprudência. Outro aspecto relevante é que essas duas formas de interpretação podem ser usadas de modo que beneficie ou que prejudique o agente, isso a depender da norma e do caso concreto.
Já a analogia, por sua vez, é um processo de auto-integração, no qual é criada uma norma penal para uma situação onde, originalmente, não existe nenhuma a regulamentando. De acordo com Greco ( 2013, p. 43):
“Defini-se a analogia como uma forma de auto-integração da norma, consistente em aplicar a uma hipótese não prevista em lei a disposição legal relativa a um caso semelhante, atendendo-se, assim, ao brocado ubi eadem ratio, ubi eadem legis dispositio.”
Conforme Prado (1999, p. 97):
“por analogia, costuma-se fazer referência a um raciocínio que permite transferir a solução prevista para determinado caso a outro não regulado expressamente pelo ordenamento jurídico, mas que comparte com o primeiro certos caracteres essenciais ou a mesma ou suficiente razão, isto é, vinculam-se por uma matéria simili ou a pari.”
Na verdade, o que ocorre nesse caso é uma lacuna na lei, fazendo com que o juiz, ao se deparar com uma situação desse tipo, socorra-se dessa fórmula de integração para a resolução do litígio.
Porém, quando analisada sob a ótica do Direito Penal, partindo-se do princípio da legalidade, tem-se que o uso da analogia é terminantemente proibido quando esta for utilizada de forma a prejudicar o agente, seja ampliando o rol de circunstancias agravantes ou ampliando o conteúdo dos tipos penais incriminadores, a fim de abranger hipóteses não previstas expressamente pelo legislador. É com brilhantismo que assim define Leiria (1981, p. 71):
“Em matéria penal, por força do princípio de reserva, não é permitido, por semelhança, tipificar fatos que se localizam fora do raio de incidência da norma, elevando-os à categoria de delitos. No que tange às normas incriminadoras, as lacunas, porventura existentes, devem ser consideradas como expressões da vontade negativa da lei. E, por isso, incabível se torna o processo analógico. Nestas hipóteses, portanto, não se promove a integração da norma ao caso por ela não abrangido.”
Em contrapartida, a aplicação da analogia in bonam partem, ou seja, a que beneficia o agente, além de ser possível, muitas vezes acaba se tornando necessária para que não haja soluções em desconformidade com a realidade.
É com essa idéia que o Supremo Tribunal Federal, em sentido contrário ao posicionamento do STJ, entende que equiparar a interceptação do sinal de televisão a cabo à conduta de furto de energia seria uma analogia em desfavor do réu, já que não existe tipificação legal para essa conduta dentro do artigo que define o crime de furto.
A suprema corte entende que o sinal de televisão a cabo não pode ser equiparado à energia elétrica. Nesse sentido, no julgamento do HC 97.261, o relator, Ministro Joaquim Barbosa, assim se posicionou:
“…entendo que o sinal de TV a cabo não pode ser equiparado à energia, pois não é fonte capaz de gerar força, potência, fornecer energia para determinados equipamentos, ou de transformar-se em outras fontes de energia. Diferentemente da energia elétrica, não está o sinal de TV a cabo sujeito à apropriação material, não podendo ser armazenado, retido e transportado como res furtivae.”
O STF, no julgamento desse mesmo HC, concluiu da seguinte forma:
”O sinal de TV a cabo não é energia e, assim, não pode ser objeto material do delito previsto no art. 155, § 3º, do Código Penal. Daí a impossibilidade de se equiparar o desvio de sinal de TV a cabo ao delito descrito no referido dispositivo. Ademais, na esfera penal, não se admite a aplicação da analogia para suprir lacunas, de modo a se criar penalidade não mencionada na lei (analogia in malam partem), sob pena de violação ao princípio constitucional da estrita legalidade.”
CONCLUSÃO
Sendo assim, filio-me à correta posição adotada pelo STF em não considerar como crime de furto a prática da interceptação de sinal de televisão a cabo.
Não se pode usar de analogia em prejuízo do agente para completar uma lacuna da lei. Obedecendo ao princípio da legalidade, apenas em caso de mudança legislativa é que se poderia condenar o agente pelo crime de furto devido à interceptação do sinal, pois não havendo essa tipificação legal, não há como considerar furto tal conduta, que traz à tona essa divergência em nossos tribunais pátrios.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC n. 97.261/RS. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Julgado em: 12 abr. 2011. Decisão publicada no Dje: 02 de mai. 2011. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 30 de nov. 2011.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp. n. 1.123.747-RS(2009/0124165-5), Relator: Ministro Gilson Dipp. Decisão publicada no Dje: 01 fev. 2011. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/jurisprudencia>. Acesso em: 30 nov. 2011.
CUNHA, Rogério Sanches. Manual de direito penal – parte especial. Salvador: Editora JusPodivm, 2013.
GRECO, Rogério. Curso de direito penal – parte geral. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2013.
______. Curso de direito penal – parte especial – volume II. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2010.
LEIRIA, Antônio José Fabrício. Teoria e aplicação da lei penal. São Paulo: Editora Saraiva, 1981.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.
PRADO, Luiz Regis. Curso de direito penal brasileiro – parte geral. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.
Formado em Administração de Empresas (na Universidade de Brasília). Pós-graduando em Gestão de Segurança Pública pelo Instituto Marcelo Paiva de Brasília.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FARIA, Daniel Beltrame. Interceptação de sinal de TV a cabo: crime de furto? Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 04 jan 2014, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37952/interceptacao-de-sinal-de-tv-a-cabo-crime-de-furto. Acesso em: 23 dez 2024.
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