Resumo: Embora poucas e esparsas as regras sobre a advocacia pública presentes na Constituição, não se pode tratar com dois pesos e duas medidas os advogados públicos, a depender do ente federativo a que se vinculem. A vedação da percepção de honorários de advogado e a proibição do exercício da advocacia fora das atribuições funcionais não encontram respaldo na Constituição, nem no regime jurídico único dos servidores submetidos ao princípio hierárquico.
Palavras-chave: Advogados públicos. Regime jurídico único. Princípio hierárquico. Paradigma constitucional. Direitos e vedações.
A Constituição da República não trouxe muitas regras sobre a advocacia pública. Dizem respeito diretamente aos advogados públicos o art. 5º, XIII, art. 131, §§ 1º à 3º, art. 132, art. 133, art. 135, art. 235, VIII da Constituição e art. 29, §§ 1º à 5º e art. 69 do ADCT, que podem ser considerados como o “estatuto constitucional da advocacia pública”.
Não há, no texto constitucional, referências expressas a direitos que exorbitem o regime jurídico único dos servidores do Poder Executivo, como a inamovibilidade ou a vitaliciedade (art. 95, I e II e art. 128, §5º, I, a e b), nem proibições específicas, como a vedação do exercício da advocacia (art. 128, II, b e art. 134, §2º), que está presente no regramento dado pela Lei Maior à Magistratura, ao Ministério Público e à Defensoria Pública. As prerrogativas, os direitos e as obrigações conferidos aos advogados são aqueles expressamente previstos nos artigos 37, 39, 40 e 41 da Constituição, que também são os mesmos que regem as demais carreiras do funcionalismo.
O princípio hierárquico que submete os servidores do Poder Executivo tornou parâmetro de constitucionalidade que deve ser utilizado para analisar a validade de direitos e vedações impostos por leis e pelas Constituições dos Estados aos advogados públicos.
Quando provocado a apreciar a constitucionalidade de regras de Constituições dos Estados, o Supremo Tribunal Federal foi enfático, ao decidir que ao advogado público foi reservado o mesmo tratamento do servidor do Poder Executivo submetido ao princípio hierárquico, que, em âmbito federal, são os servidores regidos pelo regime jurídico único. A propósito:
STF: “A garantia da inamovibilidade é conferida pela CF apenas aos magistrados, aos membros do Ministério Público e aos membros da Defensoria Pública, não podendo ser estendida aos procuradores do Estado." (ADI 291, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 7-4-2010, Plenário, DJE de 10-9-2010.) No mesmo sentido: ADI 1.246-MC, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 6-9-1995, Plenário, DJ de 6-10-1995.
STF: “Ação direta de inconstitucionalidade. Arts. 135, I; e 138, caput e § 3º, da Constituição do Estado da Paraíba. Autonomia institucional da Procuradoria-Geral do Estado. Requisitos para a nomeação do Procurador-Geral, do Procurador-Geral Adjunto e do Procurador-Corregedor. O inciso I do mencionado art. 135, ao atribuir autonomia funcional, administrativa e financeira à Procuradoria paraibana, desvirtua a configuração jurídica fixada pelo texto constitucional federal para as Procuradorias estaduais, desrespeitando o art. 132 da Carta da República." (ADI 217, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 25-8-2002, Plenário, DJ de 13-9-2002.) No mesmo sentido:ADI 291, Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 7-4-2010, Plenário, DJE de 10-9-2010)
Com base nesse argumento, o Poder Judiciário tolheu, incisivamente, dos procuradores direitos dados por lei que discrepavam do regime jurídico único dos servidores do Poder Executivo.
Segundo o Ministro Moreira Alves, ao julgar a ADI nº 1246-1/PR que concedia direitos aos procuradores do Estado do Paraná, “o regime constitucional dos servidores públicos civis que titularizam cargos públicos compreende, ordinariamente, na dimensão normativa em que se projeta, apenas as prerrogativas, os direitos e as obrigações expressamente previstos nos artigos 37, 39, 40 e 41 da Carta Federal, consoante enfatiza Celso Antônio Bandeira de Mello (‘Curso de Direito Administrativo’, p. 138, 4ª ed., 1993, Malheiros)”.
Foi mais longe o Min. Joaquim Barbosa, na ADI nº 291/MT, que decidiu que “as atribuições dos Procuradores de Estado não guardam pertinência com a dos membros dessas instituições [Ministério Público e Defensoria Pública], que têm deveres e atribuições próprios, inconfundíveis com as de agentes sujeitos ao princípio hierárquico”
No mesmo sentido, o Min. Gilmar Mendes tolheu as férias de 60 dias do procurador da Fazenda Nacional, porque “questões funcionais” dos advogados públicos não precisam estar em lei complementar, igualando-os aos demais servidores do Executivo. Para ele, “tendo em vista que a Constituição não prevê expressamente a necessidade de lei complementar para a regência das relações funcionais dos servidores públicos federais, é correto concluir que tais situações podem ser reguladas por lei ordinária”.
No caso, o STF entendeu que temas atinentes aos direitos e deveres dos membros da Advocacia-Geral da União, a exemplo da quantidade de dias de férias, não dizem respeito à organização e funcionamento do órgão. Assim, o Supremo aceitou que Lei Ordinária (art. 77 da Lei nº 8.112/90), que reduzisse de 60 para 30 dias o período de férias de Procurador da Fazenda Nacional, reconhecendo assim a revogação art. 30 do Decreto-lei nº 157/67, que havia sido recepcionado pela Constituição Federal com natureza de Lei Complementar (art. 34 § 5º do ADCT). Para o Supremo, nem o argumento de que o Decreto-lei nº 157/67 seria uma lei especial em face à Lei nº 8.112/90 prevaleceu: em matéria de direitos e deveres, os integrantes da AGU deveriam ter tratamento, num regime jurídico único, com os demais servidores do Poder Executivo.
O critério para se aferir a constitucionalidade dos direitos e deveres criados pela legislação infraconstitucional em favor dos advogados públicos é, em resumo, a exorbitância do paradigma estabelecido para os demais servidores submetidos ao princípio hierárquico do Poder Executivo. Trata-se, em outras palavras, dos limites do regime próprio a que se refere o art. 3º, §1º do Estatuto da OAB, que não se confunde com o espaço de liberdade que é submetido à autorregulamentação, com exclusividade, pela Ordem[1] (RE nº 603.583/RS c/c ADI nº 3.026/DF).
A existência desses dois círculos de competência distintos, que só se tangenciam nas zonas onde há impedimentos ou incompatibilidades, decorre da dicção legal o §1º do art. 3º da Lei nº 8.906/94, que diz que “exercem atividade de advocacia, sujeitando-se ao regime desta lei, além do regime próprio a que se subordinem, os integrantes da Advocacia-Geral da União”.
Se não fosse assim, admitir-se-ia que o regime estatutário poderia dispor sobre aspectos mais comezinhos da vida de um indivíduo, aniquilando seu direito fundamental de liberdade. É como se a Administração, a pretexto de controlar o horário de chegada do servidor ao trabalho, dispusesse que ele só poderia frequentar bares à noite ou viajar nos finais de semana. Nada mais autoritário. É o que, infelizmente, o que se faz com relação ao exercício lícito da advocacia.
Já alertava o Ministro Celso Mello, no julgamento do RE nº 414.426/SC, que “[a] excessiva intervenção do Estado, no âmbito das atividades profissionais, notadamente naquelas de natureza intelectual e artística, além do perigo que essa instrução governamental significa para as liberdades do pensamento, também pode constituir indício revelador de preocupante tendência autocrática em curso no interior do próprio aparelho estatal”.
Nesse cenário, ao advogado público é permitida a percepção de honorários de sucumbência do Estado, pois se trata de direito que lhe foi outorgado pelo Estatuto de sua profissão, não tendo ligação com o regime próprio dos servidores da União, uma vez que se trata de verba privada.
Na Constituição, a percepção de honorários pelos advogados públicos é amparada por dois argumentos. O primeiro é que a atividade dos advogados públicos somente pode ser limitada para atender a requisitos de “qualificações profissionais que a lei estabelecer”.
De acordo com a jurisprudência do Supremo, “qualificações profissionais” têm paralelismo com “condições de capacidade”. Segundo o Ministro Eros Grau, no julgamento do RE nº 511.961/SP, “[q]uanto às profissões liberais só é lícita a exigência da prova de capacidade. Qualquer outra restrição ou regulamentação seria incompatível com a liberdade assegurada pelo estatuto supremo”.
Se os direitos dos advogados só podem ser restringidos para atender a condições da capacidade, que são aquelas previstas atualmente no art. 8º do Estatuto da OAB, não há base legal ou constitucional para tolher dos advogados públicos a remuneração por essa verba privada, que decorre de um fato processual: a extinção do processo e o princípio da causalidade.
Conquanto não se desconheça que exista jurisprudência[2] que afirma que os honorários de advogado integram o patrimônio da Administração Pública, não há qualquer lei que autorize a União a fazê-lo ou que lhe atribua a titularidade da verba. Na verdade, a única lei que existe sobre o assunto reconhece, literalmente, os honorários como direito autônomo do advogado (art. 23 da Lei nº 8.906/94), sem fazer qualquer distinção entre advogados públicos e privados.
O segundo argumento é que não foi vedado aos advogados públicos o recebimento de honorários, ao contrário do que foi estabelecido em desfavor dos Juízes e dos Membros do Ministério Público (art. 95, parágrafo único, II e art. 128, §5º, II, a da CF/88), ressaltando, ainda, que a remuneração do servidor do Poder Executivo pode ser composta por honorários que correspondem, segundo a Controladoria-Geral da União[3], à “remuneração percebida por servidores públicos federais em razão da participação como representantes da União em Conselhos de Administração e Fiscal ou órgãos equivalentes de empresas controladas direta ou indiretamente pela União”.
Se o paradigma para tolher direitos atribuídos aos advogados públicos é a exorbitância do regime jurídico único, deve-se concluir que os honorários decorrentes de sua atividade profissional são devidos e constituem direito fundamental do advogado público inerente ao exercício de sua profissão (art. 5º, XIII da CF).
Por outro lado, não há cabimento em proibir os advogados públicos de exercerem sua profissão, no meio privado, no espaço em que não haja a configuração de conflito de interesses, incompatibilidades ou impedimentos. Trata-se, mais uma vez, de direito reconhecido em favor dos demais servidores do Executivo que, embora não ocupem o cargo de advogado público, possam ter essa formação profissional, sendo-lhes possível o exercício lícito da advocacia[4].
Frise-se, ademais, que a Advocacia-Geral da União tem manifestação sobre o assunto, no qual reconhece esse direito em favor do servidor advogado. Segundo o Parecer/2012/DEPCONS/PGF/AGU, aprovado em 23.04.2012 pelo Procurador Geral Federal no processo administrativo nº 00407.003228/2011-40, “[d]e fato, o artigo 117 da Lei nº 8.112/1990 estabelece várias proibições aos servidores públicos federais, dentre as quais a de exercer quaisquer atividades que sejam incompatíveis com o exercício do cargo ou função e com o horário de trabalho (inciso XVIII). Se na sua dicção direta tal normativo se apresenta como uma proibição, lido a contrario sensu carrega uma permissão, qual seja, a de exercer quaisquer atividades, desde que haja compatibilidade com o cargo/função e com seu horário de trabalho - e desde que, obviamente, essas atividades sejam lícitas e não estejam proibidas por outras normas específicas (o que determinaria, de pronto, uma incompatibilidade a priori com o cargo/função). É, assim, nesses termos e com essas limitações, que a advocacia pode ser vista como uma das possíveis atividades admitidas (pelo inciso XVIII do artigo 117 da Lei nº 8.112/1990) aos servidores do INSS em exercício ou não em órgãos de execução da PGF”.
Portanto, da mesma forma que foram tolhidos direitos que exorbitavam o regime jurídico único dos servidores, devem ser tolhidas, com igualdade de razão, as proibições exorbitantes do regime jurídico único, ainda mais porque o exercício da advocacia diz respeito à própria essência da profissão do advogado público.
Embora poucas e esparsas as regras sobre a advocacia pública na Constituição, não se pode tratar com dois pesos e duas medidas os advogados públicos, a depender do ente federativo a que se vinculem. O double stadard cria situações que atentam contra a isonomia e contra o estatuto constitucional da advocacia pública, desrespeitando a vontade da Constituição. Portanto, não podem mais ser aceitas a vedação da percepção de honorários processuais, por não dizerem respeito ao regime próprio (art. 3º, §1º do Estatuto da OAB), nem a proibição de advogar, que ainda persistem em poucos entes federados, pois essas vedações só teriam validade, a exemplo dos direitos ceifados de muitos advogados públicos, se amparadas pela Constituição da República.
[1] O Supremo Tribunal Federal, no RE nº 603.583/RS, firmou que “A Ordem dos Advogados do Brasil, precisamente em razão das atividades que desempenha, não poderia ficar submetida à regulamentação presidencial ou a qualquer órgão público, não só quanto ao exame de conhecimentos, mas também no tocante à inteira interpretação da disciplina da Lei nº 8.906/94, consoante se verifica do artigo 78, a determinar que cabe ao Conselho Federal expedir o regulamento geral do estatuto. Nesse campo, a vontade superior do Chefe do Executivo não deve prevalecer, mas sim a dos representantes da própria categoria”.
[2] STJ. AgRg no Ag 824399 / GO. Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima. 5ª Turma, DJU 21/05/2007
[3] Disponível em: <http://www.portaltransparencia.gov.br/servidores/SAIBA%20MAIS.pdf> Acesso em 18 de novembro de 2013.
[4] A nomeação de procuradores de Estado para vagas de Desembargadores e Ministros nos Tribunais mostra que o livre exercício da advocacia por um advogado público pode congregar o notório saber jurídico e a reputação ilibada exigida para o posto (CF art. 101), sem incidir numa situação de conflito de interesses ou vedações legais.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ALMEIDA, Ricardo Marques de. Dois pesos e duas medidas: os direitos e proibições dos advogados públicos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jan 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/37970/dois-pesos-e-duas-medidas-os-direitos-e-proibicoes-dos-advogados-publicos. Acesso em: 26 dez 2024.
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