Introdução
O objetivo do presente artigo é comparar a posição do STF em dois momentos em que julgou a mesma questão com resultados radicalmente distintos. Espera-se demonstrar que a diferença no resultado dos dois julgamentos (a ADI 1231/DF, em 1998, o RE 567.985/MT e a Reclamação n. 4.374/PE, ambos em 2013), decorreu da evolução dos instrumentos de controle de constitucionalidade à disposição daquela Corte. O Recurso Extraordinário n. 567.985/MT e a Reclamação n. 4.374/PE foram julgados na sessão plenária de 18/4/2013. De tal modo estão imbricadas, e isso se vê na ata do julgamento, que convém estudar em conjunto as duas decisões.
A questão de direito material que subjaz ao estudo é a definição legal dos destinatários do benefício de prestação continuada previsto na CF/88, art. 203-V, e na Lei n. 9.742/1993, Lei Orgânica da Assistência Social, art. 20, §3º. Especificamente à comprovação da necessidade de tal prestação estatal (o que na praxis convencionou-se chamar de “hipossuficiência econômica ou socioeconômica” ou, ainda, “miserabilidade”).
Histórico
No RE n. 567.985/MT e na Rcl. 4.374/PE, julgados em 18/4/2013, o STF concluiu pela inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, §3º, da Lei n. 9.742/1993, Lei Orgânica da Assistência Social (doravante, LOAS).
Dispõe o parágrafo em questão: “Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a ¼ (um quarto) do salário mínimo.” Claramente, visou o legislador de 1993 dar concretude à diretriz principal da assistência social, tal qual imposta pela Constituição, em seu art. 203: “A assistência social será prestada a quem dela necessitar”.
Na parte que interessa ao presente texto, o citado dispositivo constitucional definiu o destinatário da prestação assistencial prevista no inciso V daquele dispositivo (benefício de prestação continuada). Coube à lei dizer o que significa necessitar deste benefício estatal, uma vez que o preceito constitucional não é autoaplicável (norma constitucional de eficácia limitada). A escolha de critério objetivo de renda, matemático, teve por desiderato evidente coartar subjetivismos dos executores da regra (o Poder Executivo, a princípio) ao mesmo tempo em que conferia tratamento aparentemente isonômico e impessoal, obediente aos princípios constitucionais da Administração Pública, notadamente o da legalidade.
Todavia, desde o início multiplicaram-se os questionamentos judiciais. Órgãos monocráticos do Judiciário ora contornavam aquela disposição legal, tida como mera indicação, ora a desaplicavam sob o argumento da inconstitucionalidade. A instabilidade culminou com o ajuizamento de ADI, por parte do Procurador–Geral da República, em 24/2/1995 (ADI n. 1.232-1/DF). O pedido foi julgado improcedente em 1998, por maioria, em acórdão assim ementado:
EMENTA: CONSTITUCIONAL. IMPUGNA DISPOSITIVO DE LEI FEDERAL QUE ESTABELECE O CRITÉRIO PARA RECEBER O BENEFÍCIO DO INCISO V DO ART. 203, DA CF. INEXISTE A RESTRIÇÃO ALEGADA EM FACE AO PRÓPRIO DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL QUE REPORTA À LEI PARA FIXAR OS CRITÉRIOS DE GARANTIA DO BENEFÍCIO DE SALÁRIO MÍNIMO À PESSOA PORTADORA DE DEFICIÊNCIA FÍSICA E AO IDOSO. ESTA LEI TRAZ HIPÓTESE OBJETIVA DE PRESTAÇÃO ASSISTENCIAL DO ESTADO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. (ADI 1232, Relator: Min. ILMAR GALVÃO, Relator p/ Acórdão: Min. NELSON JOBIM, Tribunal Pleno, julgado em 27/08/1998, DJ 01-06-2001 PP-00075 EMENT VOL-02033-01 PP-00095)
Parecia o fim da celeuma. De fato, a ADI é vocacionada a fixar a interpretação da Constituição e aferir a constitucionalidade da Lei, neste caso, o parágrafo 3º do art. 20 da LOAS. Improcedência de ADI significava, então, presunção absoluta da constitucionalidade do que fora impugnado.
O voto divergente do Min. Jobim, ao final vencedor e relator para o acórdão, é singelo:
“ Sr. Presidente, data vênia do Eminente Relator, compete à lei dispor a forma de comprovação. Se a legislação resolver criar outros mecanismos de comprovação, é problema da própria lei. O gozo do benefício depende de comprovar na forma da lei, e esta entendeu de comprovar desta forma. Portanto, não há interpretação conforme possível porque, mesmo que se interprete assim, não se trata de autonomia de direito algum, pois depende da existência da lei, da definição. Com todas a vênias, julgo improcedente a ação, na linha do voto da rejeição da liminar”
O argumento que triunfou naquela ocasião foi o seguinte: a comprovação da qualidade de destinatário das prestações assistenciais se dá exclusivamente na forma da lei, tal qualidade é definida em lei e dela depende. Isto é, não existe critério e definição fora da lei, lançado ao casuísmo do intérprete.
O Min. Pertence intuiu as dificuldades do porvir quando ressaltou que a fixação de uma hipótese objetiva (1/4 de salário-mínimo), por si só, não é inconstitucional. Completou: “Haverá, aí, inconstitucionalidade por omissão de outras hipóteses? A meu ver, certamente sim, mas isso não encontrará remédio nesta ação direta. Julgo improcedente a ação”.
De fato, os juízes de primeira instância, pelo contato próximo com a multiplicidade dos fatos, sentiram o vazio normativo apontado pelo voto acima. O critério único estabelecido pela LOAS e reafirmado pelo STF naquele julgamento deixou numerosas situações de necessidade fora de seu espectro, por insuficiência normativa. Assim, continuaram as sentenças que concediam o benefício de prestação continuada mesmo quando provada a renda familiar per capita superior a ¼ do salário-mínimo. Em decorrência, continuaram os recursos extraordinários sobre o tema, agora acompanhados de reclamações constitucionais para garantir a autoridade da decisão do Supremo na ADI n. 1232/DF.
A Turma Nacional de Uniformização dos Juizados Especiais Federais chegou mesmo a aprovar súmula, a de número 11, assim vazada: “a renda mensal, per capita, familiar, superior a ¼ (um quarto) do salário mínimo não impede a concessão do benefício assistencial previsto no art. 20 § 3° da Lei 8.742 de 1993, desde que comprovada, por outros meios, a miserabilidade do postulante”, (cancelada em 15/5/2006). Isso bem exemplifica a amplitude da controvérsia acerca do tema, que não fora resolvida pela ADI n. 1.232-1/DF.
A propósito, destacou o Min. Gilmar Mendes, na Rcl. 4.374:
“Mas as reiteradas decisões do STF [em extraordinários e reclamações] não foram suficientes para coibir as decisões das instâncias inferiores na solução dos casos concretos. A inventividade hermenêutica passou a ficar cada vez mais apurada, tendo em vista a necessidade de se escapar dos comandos impostos pela jurisprudência do STF. A diversidade e a complexidade dos casos levaram a uma variedade de critérios para concessão do benefício assistencial...”
Passados 15 anos, mudou não apenas a composição do Supremo quase toda, mas também os limites dos controles concentrado e abstrato de constitucionalidade. Mais importante, o background econômico e social do Brasil passou por considerável evolução, refletida, em parte, na legislação. Inovações legais no campo assistencial trouxeram novos critérios de definição de seus destinatários. A Lei n. 10.689/2003, p. ex., instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação – PNAA (absorvido pelo Programa Bolsa Família)[1] que assim dispunha no art. 2º, §2º: Os benefícios do PNAA serão concedidos, na forma desta Lei, para unidade familiar com renda mensal per capita inferior a meio salário mínimo. Muitos intérpretes passaram a enxergar aí novo critério de hipossuficiência econômica, meio salário mínimo, pois se tratava, afinal, de prestação assistencial.
Assim, a questão permaneceu aberta.
Análise das decisões
O voto vencedor no RE foi o proferido pelo Min. Gilmar Mendes (relator para o acórdão), também relator da Reclamação. Sua leitura permite o entendimento completo dos pontos acima adiantados, sobre a modulação dos efeitos de decisões em controle de constitucionalidade, a “objetivação” do controle concentrado, o caráter mandamental de certa classe de decisões e o processo de “inconstitucionalização” de normas.
O Relator chegou a duas conclusões: 1) omissão inconstitucional parcial em relação ao dever de efetivar o mandamento do art. 203, V, da CF/88 e 2) processo de inconstitucionalização do § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/93.
Como premissa, o raciocínio jurídico perpassou a possibilidade de, em sede de reclamação, declarar inconstitucional a própria decisão-parâmetro, tida por afrontada. Ressaltou-se que tal procedimento não é inédito na jurisprudência do Tribunal e que é ínsita ao controle de constitucionalidade. Veja-se trecho do voto condutor da Rcl. 4.374:
“Assim como no processo hermenêutico o juízo de comparação e subsunção entre norma e fato leva, invariavelmente, à constante reinterpretação da norma, na reclamação o juízo de confronto e de adequação entre objeto (ato impugnado) e parâmetro (decisão do STF tida por violada) implica a redefinição do conteúdo e do alcance do parâmetro. É por meio da reclamação, portanto, que as decisões do Supremo Tribunal Federal permanecem abertas a esse constante processo hermenêutico de reinterpretação levado a cabo pelo próprio Tribunal. A reclamação, dessa forma, constitui o locus de apreciação, pela Corte Suprema, dos processos de mutação constitucional e de inconstitucionalização de normas (des Prozess des Verfassungswidrigwerdens), que muitas vezes podem levar à redefinição do conteúdo e do alcance, e até mesmo à superação, total ou parcial, de uma antiga decisão.
Ainda em caráter preliminar, assentou-se a possibilidade de rediscussão da decisão tomada na ADI n. 1231/DF “se presentes significativa mudança das circunstâncias fáticas ou relevante alteração das concepções jurídicas dominantes”[2]:
“Daí parecer plenamente legítimo que se suscite perante o STF a inconstitucionalidade de norma já declarada constitucional. Há muito a jurisprudência constitucional reconhece expressamente a possibilidade de alteração da coisa julgada provocada por mudança nas circunstâncias fáticas (cf., a propósito, RE 105.012, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ de 1º.7.1988). Assim, tem-se admitido a possibilidade de que o Tribunal, em virtude de evolução hermenêutica, modifique jurisprudência consolidada, podendo censurar preceitos normativos antes considerados hígidos em face da Constituição.” – trecho do voto na Reclamação.
Note-se que a Lei n. 9.868/99 dispõe que a decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, ser objeto de ação rescisória (Art. 26). Desse modo, adotou-se a alteração das circunstâncias fáticas (o panorama socioeconômico do País, entre 1998 e 2013) como equivalente à cláusula rebus sic standibus. Demais disto, o relator valeu-se das já mencionadas leis que alteram a renda mínima para 1/2 salário-mínimo, como critério de identificação dos beneficiários de novos programas assistenciais. Teria havido, portanto, no entender do STF, reinterpretação do alcance do art. 203 da CF/88 por parte do legislador, ainda que de maneira assistemática.
Ao que parece, a própria premissa (alterações legais e socioeconômicas permitem rever decisão em ADI) funciona também como conclusão (alterações legais e socioeconômicas tornam inconstitucional o que foi declarado constitucional).
Por fim, reforçou-se a qualidade das reclamações como instrumento vocacionado a possibilitar a rediscussão de decisões tomadas em controle abstrato de constitucionalidade. A par da possibilidade de (re)aferição da constitucionalidade da decisão-parâmetro, este instituto firmou-se ao longo do tempo como de importância singular de tutela da Constituição.
Superadas eventuais objeções de ordem processual, o voto condutor deitou suas raízes no caráter dirigente das políticas sociais consagradas no texto constitucional. É longe de dúvida que a assistência social é direito fundamental exigível do Estado, é direito público subjetivo ao qual corresponde a contraprestação estatal. É também, em sua dimensão objetiva, como todo direito fundamental, imposição que vincula o Estado ao conformar a ordem jurídica que lhe origina e que lhe sustenta.
Disso decorre a proibição da proteção insuficiente do direito e o dever estatal de legislar. E aqui se retoma o tema iniciado pelo Min. Pertence, acima destacado, mas sob nova ótica: agora a insuficiência de legislação não mais impõe a improcedência da ADI com o intuito único de não extirpar do sistema a norma que, mesmo deficiente, é a única a dar concretude ao mandamento constitucional (lembre-se que o art. 203, V, da CF não é autoaplicável). A evolução dos institutos de controle de constitucionalidade permite dar solução mais completa à questão.
Como destacado pelo Min. Gilmar Mendes, ainda na Reclamação n. 4.374:
“O fato é que, hoje, o Supremo Tribunal Federal, muito provavelmente, não tomaria a mesma decisão que foi proferida, em 1998, na ADI 1.232. A jurisprudência atual supera, em diversos aspectos, os entendimentos naquela época adotados pelo Tribunal quanto ao tratamento da omissão inconstitucional. A Corte tem avançado substancialmente nos últimos anos, principalmente a partir do advento da Lei n.° 9.868/99, cujo art. 27 abre um leque extenso de possibilidades de soluções diferenciadas para os mais variados casos de omissão inconstitucional”.
Passou-se a fixar prazo para a atuação legislativa, a declarar a inconstitucionalidade sem nulidade, a proferir decisões aditivas, nas quais o Supremo regula provisoriamente do tema. Por fim, admite-se hoje a fungibilidade entre ações diretas de inconstitucionalidade por ação e por omissão.
Nesse contexto, o STF voltou a debater a insuficiência normativa do art. 20, §3º, da LOAS. A matéria discutida na ADI 1.232/DF foi novamente revolvida, agora com novos Ministros e com ferramentas jurídicas de maior alcance.
Talvez a mais importante das inovações em estudo seja a possibilidade de declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade. Seu fundamento legal repousa no art. 27 da Lei n. 9.868/99:
Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.
Interessa o trecho segundo o qual podem ser restringidos os efeitos da declaração de inconstitucionalidade. Seu objeto parece ser mesmo a omissão parcial, hipótese em que a pronúncia de nulidade culmina na expulsão da norma do sistema jurídico. Se reputada inconstitucional a omissão meramente parcial, o que dizer da omissão total? Aprofundar-se-ia o estado de inconstitucionalidade. Veja-se que a função clássica de “legislador negativo”, atribuída às cortes constitucionais por Hans Kelsen, foi severamente mitigada.
A seguir, um exemplo da posição daquela Corte antes da inovação legal em comento:
"Atos inconstitucionais são, por isso mesmo, nulos e destituídos, em conseqüência, de qualquer carga de eficácia jurídica. A declaração de inconstitucionalidade de uma lei alcança, inclusive, os atos pretéritos com base nela praticados, eis que o reconhecimento desse supremo vício jurídico, que inquina de total nulidade os atos emanados do poder público, desampara as situações constituídas sob sua égide e inibe — ante a sua inaptidão para produzir efeitos jurídicos válidos — a possibilidade de invocação de qualquer direito." (ADI 652-QO, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 2-4-92, DJ de 2-4-93). No mesmo sentido: ADI 1.434–MC, rel. min. Celso de Mello, julgamento em 29-8-96, DJ de 22-11-1996.
É, portanto, amplo o poder conferido ao STF pelo art. 27 da Lei de 1999. Permite um juízo de ponderação de contornos ainda pouco definidos, mas que passa pelo cotejo da nulificação da lei com a segurança jurídica ou outro interesse de grande monta. É novo campo para aplicação do princípio da proporcionalidade, como ressalta o excerto abaixo:
Terá significado especial o princípio da proporcionalidade, especialmente em sentido estrito, como instrumento de aferição da justeza da declaração de inconstitucionalidade (com efeito da nulidade), em virtude do confronto entre os interesses afetados pela lei inconstitucional e aqueles que seriam eventualmente sacrificados em consequência da declaração de inconstitucionalidade. No presente caso, o Tribunal tem a oportunidade de aplicar o art. 27 da Lei n.° 9.868/99 em sua versão mais ampla. A declaração de inconstitucionalidade e, portanto, da nulidade da lei definidora de critérios para o rateio dos Fundos de Participação dos Estados e do Distrito Federal, constitui mais um entre os casos em que as consequências da decisão tomada pela Corte podem gerar um verdadeiro caos jurídico. Assim, julgo procedentes as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (...), para, aplicando o art. 27 da Lei n.° 9.868/99, declarar a inconstitucionalidade, sem a pronúncia da nulidade, do art. 2º, incisos I e II, §§ 1º, 2º e 3º, e do Anexo Único, da Lei Complementar n.º 62/1989, assegurada a sua aplicação até 31 de dezembro de 2012." (ADI 875; ADI 1.987; ADI 2.727, voto do rel. min. Gilmar Mendes, julgamento em 24-2-2010, Plenário, DJE de 30-4-2010.)
Como contrapeso, estabeleceu o legislador quórum diferenciado, mais rigoroso, para a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade: maioria de dois terços de seus membros. É certo, outrossim, que o Diploma Legal impôs pressuposto para o exercício desta nova competência, ainda que mediante conceitos jurídicos indeterminados, como “segurança jurídica” e “excepcional interesse social”. Obviamente, é in concreto que se afere a necessidade de predominar tais conceitos sobre o princípio da nulidade, ainda a regra do sistema.
De qualquer modo, são mais comuns os casos de modulação temporal das decisões, nas quais se afasta o efeito ex tunc, também a regra, em favor do excepcional efeito ex nunc, que preserva situações jurídicas erigidas sob a égide da lei considerada inconstitucional.
Sob outro aspecto, o rejulgamento em sede de recurso extraordinário da questão já decidida por ADI fornece material para reflexão acerca da “objetivação” do controle difuso de constitucionalidade. Em sua acepção original, o RE permanecia vinculado estritamente ao caso dos autos, ao conflito subjetivo deduzido em juízo. É comum na doutrina limitar o efeito do julgamento do RE inter partes, sem projeção noutras lides.
Aos poucos, porém, o Extraordinário passou a representar a posição do STF, sobretudo se julgado pelo Tribunal Pleno. A teoria dos motivos determinantes é ainda utilizada para justificar a “reprodução” da razão de decidir nos recursos. Ubi eadem est ratio, ibi ide jus (a mesma razão autoriza o mesmo direito). A Súmula Vinculante, ao emprestar do direito norte-americano os fundamentos do stare decisis, agregou ainda mais força à crescente expansão do alcance das decisões do Supremo em controle difuso de constitucionalidade. Por fim, a inclusão da necessidade de demonstrar repercussão geral como pressuposto de admissibilidade do RE sepultou de vez a vocação inicial do recurso para a mera solução de lides individuais[3].
Como já se viu, a exclusão pura e simples do §3º do art. 20 da LOAS deixaria sem aplicação a regra do art. 203, V, da CF/88, de eficácia limitada. A pronúncia de nulidade não permitiria o cumprimento da diretriz constitucional.
Mas como manter no sistema a inconstitucionalidade? Certamente não se cogitaria de acolher em caráter permanente a lei inconstitucional por omissão porque “sem ela é ainda pior”. Esta opção comprometeria a força normativa da Constituição. No limite, equivaleria a desrespeitá-la, fazer ruir seus fundamentos.
A solução adotada é sublinhar o caráter mandamental da declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade. O Tribunal exorta o Parlamento a sair da inércia inconstitucional e cumprir seu dever de conceder máxima efetividade ao Texto Maior, de conferir concreção ao direito social imprescindível ao seu exercício[4].
Exemplo tão eloquente quanto conciso vem do voto do Min. Fux, no RE em questão, que assim concluiu:
“Ex positis, nego provimento ao recurso extraordinário interposto pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e proponho a declaração de inconstitucionalidade por omissão do parágrafo §3º do art. 20 da Lei nº 8.742/93, sem pronúncia de nulidade, fixando o prazo até 31/12/2015 para que o Congresso Nacional edite novo ato jurídico.”.
Sentença mandamental é ordem dirigida ao réu. Ainda que parte da doutrina recuse sua autonomia em relação à sentença condenatória[5], é certo que carrega a nota distintiva de vir acompanhada da coerção. Isto é, sua execução não se dá mediante substituição da vontade do executado e atos constritivos (como na execução por quantia certa, p. ex.), mas por meios que o induzem a produzir um comportamento pessoal. “A sentença mandamental é caracterizada por dirigir uma ordem para coagir o réu. Seu escopo é convencer o réu a observar o direito por ela declarado. (...) Lembre-se que a sentença mandamental revela a quebra do dogma da incoercibilidade da vontade do particular por parte do Estado. Funda-se no §4º do art. 461 [do CPC]” (MARINONI e ARENHART, 2008, pp. 432-433).
Surge então o problema da coerção dirigida por um Poder da República contra outro. Ou se é constitucional a ordem coercitiva (não mera recomendação) endereçada ao Legislativo, que lhe impõe o dever de legislar.
A esse respeito, confira-se manifestação do Min. Joaquim Barbosa, durante o debate:
Eu chamo a atenção do Tribunal, porque eu já acompanhei o Tribunal, a maioria, nessas decisões de fixação de prazo ao legislador, mas eu noto que isso serve para nos trazer conflito com o Legislativo, e, num certo sentido, desmoralizar, porque, se o legislador não cumpre esse prazo, nós trazemos o problema para cá, de novo, como aconteceu recentemente no caso do FPE. O legislador, talvez, deliberadamente, nada fez e o problema voltou para cá. E nós tivemos que, aliás, na minha ausência, o Ministro Ricardo Lewandowski fixou um novo prazo. O que acontecerá se esse novo prazo não for cumprido?
Indaga-se qual o efeito da mora na qual foi constituída o legislador destinatário da ordem mandamental. Poderá ser obrigado, coagido mesmo, a legislar? É certo que não. Descumprido o prazo, decorre automática exclusão da norma do sistema jurídico? Será necessária nova provocação dirigida ao Judiciário, que fixará, então, novo prazo? Ou excluirá expressamente a norma, deixando sem densidade suficiente o preceito constitucional de eficácia limitada? Fosse o particular ou a Administração Pública, cominar-se-ia multa. Ao Legislativo, entretanto, a medida, se fosse prevista, resultaria inócua.
As respostas a essas questões estão em construção na jurisprudência do STF.
Conclusão
Pretendeu-se explicitar a radical mudança no posicionamento do STF como resultado da ampliação dos meios de controle de constitucionalidade decorrentes de inovação legal (a Lei n. 9.868/99) e de evolução jurisprudencial da Corte.
A escolha de duas decisões sobre um mesmo dispositivo legal expõe com o máximo de clareza o giro conceitual e interpretativo da Corte, na medida em que dispensa considerações sobre as diferenças ou semelhanças dos casos sub judice. A circunstância de se tratar de controle concentrado no primeiro julgamento e de controle difuso no segundo permitiu mostrar com precisão a aproximação dos dois sistemas, mormente após a inclusão da repercussão geral no rol de requisitos de admissibilidade do recurso extraordinário.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. Vol. I. 18ª ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
DANTAS, Ana Carolina de Sá. Reflexões acerca das técnicas utilizadas para afastar o uso do precedente: overruling e distinguishing. In: Publicações da Escola da AGU: 1º Curso de Introdução ao Direito Americano, vol. I. Brasília: EAGU, 2011.
DIDIER JR., Fredie. O recurso extraordinário e a transformação do controle difuso de constitucionalidade no Direito brasileiro. In: Leituras complementares de Direito Constitucional. Marcelo Novelino (org.), 2ª edição, Bahia: Podium, 2008.
MARINONI, Luiz Guilherme e ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de Processo Civil Vol. 2 – Processo de Conhecimento. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2008.
MENDES, Gilmar Ferreira. O apelo ao legislador – Appellentscheidung – na práxis da Corte Constitucional Federal alemã. In: Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Gilmar Ferreira Mendes, 3ª edição, São Paulo: Saraiva, 2008.
ANEXOS
I) Acórdão do RE n. 567.985
Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da Constituição. A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu os critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo seja concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família. 2. Art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232. Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”. O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS. 3. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e Processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993. A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de se contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e de se avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para a concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Lei 10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a Municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade do critérios objetivos. Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro). 4. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993. 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento. (RE 567.985, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 18/04/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-194 DIVULG 02-10-2013 PUBLIC 03-10-2013).
II) Acórdão na Reclamação n. 4.374
1.Benefício assistencial de prestação continuada ao idoso e ao deficiente. Art. 203, V, da Constituição. A Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), ao regulamentar o art. 203, V, da Constituição da República, estabeleceu critérios para que o benefício mensal de um salário mínimo fosse concedido aos portadores de deficiência e aos idosos que comprovassem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família.
2. Art. 20, § 3º da Lei 8.742/1993 e a declaração de constitucionalidade da norma pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 1.232.
Dispõe o art. 20, § 3º, da Lei 8.742/93 que “considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa portadora de deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo”.
O requisito financeiro estabelecido pela lei teve sua constitucionalidade contestada, ao fundamento de que permitiria que situações de patente miserabilidade social fossem consideradas fora do alcance do benefício assistencial previsto constitucionalmente. Ao apreciar a Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.232-1/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do art. 20, § 3º, da LOAS.
3. Reclamação como instrumento de (re)interpretação da decisão proferida em controle de constitucionalidade abstrato. Preliminarmente, arguido o prejuízo da reclamação, em virtude do prévio julgamento dos recursos extraordinários 580.963 e 567.985, o Documento assinado digitalmente conforme MP n° 2.200-2/2001 de 24/08/2001, que institui a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira - ICP-Brasil. O documento pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.stf.jus.br/portal/autenticacao/ sob o número 3884889.
Tribunal, por maioria de votos, conheceu da reclamação.
O STF, no exercício da competência geral de fiscalizar a compatibilidade formal e material de qualquer ato normativo com a Constituição, pode declarar a inconstitucionalidade, incidentalmente, de normas tidas como fundamento da decisão ou do ato que é impugnado na reclamação. Isso decorre da própria competência atribuída ao STF para exercer o denominado controle difuso da constitucionalidade das leis e dos atos normativos. A oportunidade de reapreciação das decisões tomadas em sede de controle abstrato de normas tende a surgir com mais naturalidade e de forma mais recorrente no âmbito das reclamações. É no juízo hermenêutico típico da reclamação – no “balançar de olhos” entre objeto e parâmetro da reclamação – que surgirá com maior nitidez a oportunidade para evolução interpretativa no controle de constitucionalidade. Com base na alegação de afronta a determinada decisão do STF, o Tribunal poderá reapreciar e redefinir o conteúdo e o alcance de sua própria decisão. E, inclusive, poderá ir além, superando total ou parcialmente a decisão-parâmetro da reclamação, se entender que, em virtude de evolução hermenêutica, tal decisão não se coaduna mais com a interpretação atual da Constituição.
4. Decisões judiciais contrárias aos critérios objetivos preestabelecidos e Processo de inconstitucionalização dos critérios definidos pela Lei 8.742/1993. A decisão do Supremo Tribunal Federal, entretanto, não pôs termo à controvérsia quanto à aplicação em concreto do critério da renda familiar per capita estabelecido pela LOAS. Como a lei permaneceu inalterada, elaboraram-se maneiras de contornar o critério objetivo e único estipulado pela LOAS e avaliar o real estado de miserabilidade social das famílias com entes idosos ou deficientes. Paralelamente, foram editadas leis que estabeleceram critérios mais elásticos para concessão de outros benefícios assistenciais, tais como: a Leic10.836/2004, que criou o Bolsa Família; a Lei 10.689/2003, que instituiu o Programa Nacional de Acesso à Alimentação; a Lei 10.219/01, que criou o Bolsa Escola; a Lei 9.533/97, que autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a municípios que instituírem programas de garantia de renda mínima associados a ações socioeducativas. O Supremo Tribunal Federal, em decisões monocráticas, passou a rever anteriores posicionamentos acerca da intransponibilidade do critérios objetivos. Verificou-se a ocorrência do processo de inconstitucionalização decorrente de notórias mudanças fáticas (políticas, econômicas e sociais) e jurídicas (sucessivas modificações legislativas dos patamares econômicos utilizados como critérios de concessão de outros benefícios assistenciais por parte do Estado brasileiro).
5. Declaração de inconstitucionalidade parcial, sem pronúncia de nulidade, do art. 20, § 3º, da Lei 8.742/1993.
6. Reclamação constitucional julgada improcedente. (RECLAMAÇÃO 4.374/PE, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 18/04/2013
[1] A Lei 10.836/2004 criou o “Bolsa-Família” e, no seu artigo 1º, parágrafo único, unificou os programas e ações de transferência de renda do Governo Federal. Dessa forma, atualmente, os benefícios de caráter financeiro do Governo Federal consistem no Benefício de Prestação Continuada – BPC, o Bolsa Família – PBF, e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI.
[2] A superação de precedentes assemelha-se ao overruling do direito norte-americano. Cuida-se de técnica que permite rediscutir um posicionamento dominante (e vinculante) no tribunal, eventualmente substituindo-o por outro. Dada a preocupação com a segurança juridica inerente ao sistema da common law, essa modificação pressupõe robusta fundamentação e é de aplicação pouco usual (DANTAS, 2011, pp. 57-60). Em geral, tem efeitos para o futuro (prospective overruling) sendo extremamente rara a versão retrospectiva.
[3] A esse respeito, importa recordar inovações legais que afastam o recurso extraordinário de sua destinação original, qual seja, a de resolver conflitos intersubjetivos. No CPC, tem-se: arts. 481, p. único, e 482, §3º, art. 557, §1º-A e art. 741, p. único. Para análise completa, ver DIDIER JR. (2008), pp. 274-282.
[4] Em MENDES (2006), pp. 404-407, importante distinção entre a hipótese em estudo e o “apelo ao legislador”. Neste, o Tribunal “reconhece a situação como ainda constitucional, anunciando a eventual conversão deste estado de constitucionalidade imperfeita em numa situação de completa inconstitucionalidade” (p. 404). O apelo ao legislador, então, rejeita a inconstitucionalidade e tem caráter preventivo, coisa diversa da natureza mandamental da declaração de inconstitucionalidade sem nulidade.
[5] CÂMARA (2008, p. 431): “A rigor, o que pode aceitar como cientificamente correto é que a sentença condenatória pode ser objeto de uma subclassificação, dividindo-se em duas categorias: sentença condenatória executiva e sentença condenatória mandamental. (...) [é] mandamental a sentença condenatória cuja efetivação se dá, exclusivamente, pelo emprego de meio de coerção (ou seja, meios destinados a pressionar psicologicamente o demandando a fim de que este, pessoalmente, cumpra o comando contido na sentença).”
Procurador Federal. Formado em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia em 2002. Membro da Advocacia-Geral da União desde 2003<br>Atuação na representação judicial do INSS em Uberlândia/MG.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MIKHAIL, Fouad Degani. A declaração de inconstitucionalidade do §3º do art. 20 da Lei n. 8.743/93 - Breves apontamentos sobre o RE n. 567.985/MT e a Rcl. 4.374/PE Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jan 2014, 07:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38097/a-declaracao-de-inconstitucionalidade-do-3o-do-art-20-da-lei-n-8-743-93-breves-apontamentos-sobre-o-re-n-567-985-mt-e-a-rcl-4-374-pe. Acesso em: 23 dez 2024.
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