1. Introdução
A cláusula “rebus sic stantibus” ou teoria da imprevisão é um instituto novo, ou melhor, trazido ao nosso ordenamento legal com advento do Código Civil de 2002 já que antes, tratava-se de cláusula implícita. Trata-se de meio pelo qual os contraentes se obrigam a executar o contrato até o final de sua duração, somente no caso de persistirem as condições econômicas vigentes ao tempo da celebração. Assim, quando ocorra uma alteração profunda da ordem vigente à época da celebração do contrato que leve a um desequilíbrio contrário à justiça, de modo que o rigoroso cumprimento conduza ao enriquecimento de uma parte em prejuízo da outra, o prejudicado pode invocá-lo em juízo, e, mais ainda, amparado agora na lei.
Partindo-se do conhecimento de contrato, verificamos que o mesmo, como negócio jurídico de cunho econômico expressivo de um acordo de vontades, tem por objeto o seu fiel cumprimento, ou seja, almeja a concretização do pactuado, devendo os contratantes para sua consecução se guiar pelos princípios fundamentais clássicos da teoria contratual, observando as disposições legais. Não podem, contudo, abandonar os preceitos de ordem pública e os bons costumes. Estes, limites clássicos à liberdade de contratar.
A materialização do pactuado se atinge pelo adimplemento da obrigação contratual, com a qual se extingue a obrigação e o objeto do contrato.
O adimplemento é o modo de extinção por excelência das obrigações. Ou seja, a execução é, essencialmente, o modo normal de extinção dos contratos.
O contrato, como todo e qualquer negócio jurídico, cumpre seu ciclo existencial. Nasce do mútuo consenso, sofre vicissitudes de sua carreira, e termina normalmente com o adimplemento da prestação[1], sendo executado pelas partes contratantes em todas as suas cláusulas.
Entretanto, nem sempre a positividade desse fato vem a ocorrer. O Código Civil de 2002 em muito contribuiu a respeito, dedicando todo um capítulo a extinção dos contratos (título V, capítulo II), inovando, já que no Código Civil de 1916, as normas relativas ao assunto, quando presentes, eram esparsas, tendo muitas vezes que se buscar na doutrina e até mesmo na jurisprudência a sua aplicação.
Ex positis, veremos que dentre as causas extintivas, o legislador, com o Código Civil de 2002, trouxe ao nosso ordenamento jurídico, nos arts. 478 a 480, a resolução do contrato por onerosidade excessiva, resolução esta já conhecida na doutrina e na jurisprudência, quando da vigência do Código Civil de 1916, como veremos a seguir.
2. Da resolução do contrato por onerosidade excessiva.
Por resolução do contrato decorrente por onerosidade excessiva, trazido expressamente no Código Civil de 2002, deve-se entender a oriunda do evento extraordinário imprevisível, que dificulte extremamente o adimplemento do contrato por uma das partes, ter-se-á a resolução contratual, por se considerar subentendida a cláusula rebus sic stantibus, de modo que o lesado poderá desligar-se da obrigação, pedindo ao juiz a rescisão do contrato ou o reajustamento das prestações recíprocas.
A Teoria da Imprevisão, ou Rebus Sic Stantibus, já era, na vigência do Código Civil de 1916 consagrada implícita nos contratos dos quais advinham circunstâncias propriamente imprevistas que podiam alterar ou rescindir a relação contratual, porque se tais circunstâncias pudessem ser previstas, seriam pactuadas de forma diferente.
A imprevisibilidade e a extraordinariedade precisam caminhar juntas para caracterizar a teoria da imprevisão, no ver de alguns doutrinadores. A não execução dos termos do contrato deve decorrer não da impossibilidade, mas de uma extrema dificuldade de realizar a atividade contratual, pois se falássemos em impossibilidade econômica estaríamos nos reportando ao caso de força maior. O cumprimento da obrigação precisa ser excessivamente oneroso, ou seja, deve haver um sacrifício econômico. Esta dificuldade excessiva faz com que seja conturbado o adimplemento da obrigação e não impossível. O vínculo contratual pode ser resolvido a requerimento da parte prejudicada e o juiz, desta forma, altera o conteúdo do contrato, restaurando o equilíbrio desfeito.
Quanto à intervenção da justiça, o juiz pode intervir para reajustar as prestações contratuais (art. 480, CC/02), quando em situações que queiram rescindir o contrato (no caso de contratos comutativos, de execução continuada ou periódica), examinando se há onerosidade excessiva e se esta tem nexo causal com o fato imprevisível que a gerou. A sentença deve produzir efeitos retroativos entre as partes (art. 478, in fine, CC/02)
O Judiciário tem o dever de evitar a iniqüidade e de humanizar a lei, portanto tem a máxima legitimidade para tal mister. No entanto, deve-se frisar que rever o contrato não é substituir arbitrariamente à vontade das partes pela vontade judicial. O magistrado só pode reajustar a declaração de vontade em virtude de fato superveniente. Portanto, somente a superveniência de fatos imprevisíveis e imensamente onerosos permite a revisão contratual.
No tocante ao princípio da força obrigatória ou Pacta sunt servanda, observar-se que o contrato é lei entre as partes. Ou seja, tudo que está nele escrito não pode ser modificado; devendo, os pressupostos e requisitos de validade e os preceitos legais imperativos, serem observados. No entanto, a eqüidade, a boa-fé, a proibição do abuso de direito e tantas outras noções gerais podem, e agora mais ainda devem com a previsão expressa no Código Civil de 2002, levar o legislador a alargar exceção a este tão importante princípio da Força Obrigatória, fazendo com que situações imprevistas surgidas, permitam a revisão do contrato, principalmente, se a parte contratante se achar em situação de prejuízo decorrente do contrato.
Indubitavelmente, para que se possa corrigir o contrato, em caso de fatos imprevistos surgidos, deve ocorrer requisitos ou elementos que caracterizem a Teoria da Imprevisão, a saber:
a) "Vigência de um contrato de execução diferida ou sucessiva", ou seja, o contrato tem que ser de execução continuada, se prolongar no tempo;
b) "Alteração radical das condições econômicas objetivas no momento da execução, em confronto com o ambiente objetivo no da celebração", ou seja, alterações que ao momento da celebração contratual não sejam de modo algum previsíveis e que ocorram após o contrato celebrado;
c) "Onerosidade excessiva para um dos contratantes e benefício exagerado para o outro", ou seja, um contratante não pode se beneficiar em detrimento de prejuízo do outro, tem que haver uma equivalência (eqüidade) entre as partes, a qual é um requisito básico de qualquer contrato;
d) "Imprevisibilidade daquela modificação", pois qualquer fato que ocorra depois, não pode ser conhecido previamente.
De suma importância, ainda para a segurança dos contratantes, é o Princípio da Força Obrigatória, que aduz da imperativa necessidade, que se mune o contrato, pelo cumprimento do acordo firmado entre as partes. Esta necessidade imperiosa provém da importância jurídica da liberdade de convergência de vontades, onde há de se presumir a livre e consciente escolha de ambas as partes para a feitura do negócio.
Desse modo, outro princípio surge e consubstancia-se do Princípio da Força obrigatória: o chamado Princípio da Intangibilidade do conteúdo dos contratos, o qual traz em seu direcionamento, a decorrente impossibilidade de apreciação pelos pretórios ou desmotivação, para o adimplemento, por ato unilateral, podendo ser alterado de qualquer forma, apenas se sobrevier novo acordo de vontades.
Devido a natureza de sua constituição, o Princípio da Intangibilidade tomou força, visto que sua alteração unilateral ou por intervenção estatal feririam o Princípio da Autonomia da Vontade. A palavra dada era requisito impossibilitador da revisão contratual. Mesmo que o ato de adimplir o acordo gerasse dificuldades de sobrevivência para a parte, teria ela plena liberdade para desaprovar as obrigações adquiridas à época do acordo, sendo desnecessário, se a obrigação fosse onerosa demasiadamente, ou se o direito constituído não lhe retribuísse de forma justa.
Absoluto era esse princípio, a começar pelos romanos, que diziam que o contrato faz das partes servas ("pacta sunt servanda") passando por seu apogeu, que se deu com o liberalismo econômico e o extremo individualismo dominante na doutrina jurídica que vigorava. Porém, com o passar dos tempos surgiram novos acontecimentos, como guerras, aos quais este princípio não se adequava por revelar-se injusto. O Direito, como algo dinâmico que é, passou a atenuar-lhe a força, preservando sua substância, mas dando-lhe certa relatividade. Passou-se a aceitar a intervenção judicial no conteúdo de certos contratos, desde que fosse em caráter excepcional, nos contratos de execução duradoura ou diferida, que atribuísse condição insustentável a uma das partes, impondo-lhe uma onerosidade excessiva.
Como justificativa às exceções à intangibilidade do contrato, a doutrina procurou ressurgir a cláusula "rebus sic stantibus”, hoje expresso no Código Civil de 2002, oriunda do Direito Canônico e que era considerada implícita nos contratos de duração e de execução diferida, estabelecendo que estes deveriam conservar o estado de fato existente no momento de sua formação. No entanto, constatou-se que não era apenas necessária a mudança do estado de fato existente na formação do vínculo, mas também que este fosse imprevisível para que pudesse haver intervenção judicial, modificando o conteúdo do contrato, ou resolvendo-o.
Trataremos aqui, da aplicação da teoria da Imprevisão pelos nossos tribunais quando da vigência do Código Civil de 1916, o qual não a consagrava explicitamente no corpo da norma.
Assim, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro julgou uma ação de procedimento ordinário. Esta ação visava à alteração de cláusula de periodicidade de reajustes de aluguel, em face dos altos índices inflacionários. Neste caso o Tribunal entendeu que sendo a inflação, no Brasil crônica e previsível, inaplicável é a teoria da imprevisão para justificar a modificação de obrigação pactuada.
O acórdão, relatado pelo Des. Mauro Fonseca (Ap. 6.251, j. 14-11-1991), destaca que, "inexistindo acontecimento determinante de radical alteração do Estado contemporâneo à celebração do contrato, acarretando onerosidade excessiva para uma das partes, não há que falar na teoria da imprevisão".
O Tribunal de Alçada do Rio de Janeiro, por ocasião do julgamento da Apelação n.443.657, em ação de devedor da empresa paulista Pergo Ind. e Com. De Moldados Ltda., que pedia resolução contratual pela ocorrência de fatores imprevisíveis, proferiu acórdão unânime, pela sua 2ª Câmara Cível, relatado pelo Juiz Alberto Tedesco, em que assim resume os pressupostos da teoria da imprevisão:
"Na justificação moderna da relatividade do poder vinculante do contrato, a idéia da imprevisão predomina. Exige-se que a alteração das circunstâncias seja de tal ordem que a excessiva onerosidade da prestação não possa ser prevista. Por outras palavras, a imprevisão há de ocorrer do fato de ser a alteração determinada por circunstâncias extraordinárias.
"As modificações por assim dizer normais do estado de fato existente ao tempo da formação do contrato devem ser previstas, pois constituem, na justa observação de Ripert, uma das razões que movem o indivíduo a contratar, garantindo-se contra as variações que trariam insegurança a suas relações jurídicas"
"Quando, por conseguinte, ocorre a relação da responsabilidade maior, econômica, ainda a ponto de trazer para o contratante muita onerosidade, mas que podia ser razoavelmente prevista, não há que pretender a resolução do contrato ou alteração do seu conteúdo. Nesses casos, o princípio da força obrigatória dos contratos conserva-se intacto. Para ser afastado, previsto é que o acontecimento seja ordinário e imprevisível. Mas não basta.
"Necessário ainda que alteração imprevisível do estado de fato determine a dificuldade de o contratante cumprir a obrigação, por se ter tornado excessivamente onerosa a prestação. A modificação quantitativa da prestação há de ser tão vultosa, que, para satisfazê-la, o devedor se sacrificaria economicamente. Chega-se a falar em impossibilidade. Pretende-se, até, criar a categoria da impossibilidade econômica, ao lado da física ou jurídica, para justificar a resolução do contrato; mas se a equiparação procedesse, estar-se-ia nos domínios da força maior, não cabendo, em conseqüência, outra construção teórica.
"A onerosidade excessiva não implica, com efeito, a impossibilidade superveniente de cumprir a obrigação, mas apenas dificulta, embora extremamente, o adimplemento. Porque se trata de dificuldade e não de impossibilidade. Decorre importante conseqüência, qual seja a de necessidade de verificação prévia, que se dispensa nos casos de força maior.
"Portanto, quando acontecimentos extraordinários determinam radical alteração no estado de fato contemporâneo à celebração do contrato, acarretando alterações imprevisíveis, das quais decorre excessiva onerosidade no suprimento da obrigação, o vínculo contratual pode ser resolvido ou, a requerimento do prejudicado, o juiz altera o conteúdo do contrato, restaurando o equilíbrio desfeito. Em síntese apertado: ocorrendo anormalidade da álea que todo contrato depende do encerra, pode-se operar sua resolução ou a redução das prestações." (ADV, n.. 59.631.)
No tocante aos requisitos temos:
"À aplicação da teoria da imprevisão exigem-se requisitos mínimos: imprevisibilidade, existência de lesão, inimputabilidade, inocorrência de mora." (TACivSP; Ap.480094, rel Juiz Artur Marques, j. 26.5.1997.)
4. Considerações finais.
Ante o exposto, verificamos que, mesmo já tendo sido reconhecida na doutrina e jurisprudência na vigência do Código Civil de 1916, o legislador, com o advento do Novo Código Civil, trouxe de forma explícita a resolução do contrato por onerosidade excessiva, esta caracterizada pela superveniência de um evento que embaraça e torna dificultoso o adimplemento da obrigação de uma das partes, proveniente ou não de imprevisibilidade da alteração circunstancial, impondo manifesta desproporcionalidade entre a prestação e a contraprestação, com dano significativo para uma parte e conseqüente vantagem excessiva para a outra, em detrimento daquela, a comprometer, destarte, a execução eqüitativa do contrato.
Dito isto, temos que a cláusula rebus sic stantibus, que já era subentendida nos contratos e agora mais ainda, pode ser definida como a cláusula que permite a revisão das condições do contrato de execução diferida ou sucessiva se ocorrer em relação ao momento da celebração mudança imprevista, razoavelmente imprevisível e inimputável às partes nas circunstâncias em torno da execução do contrato que causem desproporção excessiva na relação das partes, de modo que uma aufira vantagem exagerada em detrimento da desvantagem da outra.
Ocorre que este princípio não pode ser encarado isoladamente, sem que se leve em conta a necessária segurança jurídica e, acima de tudo, o princípio da força obrigatória que vimos no capítulo anterior.
Aliás, pode-se dizer que estes princípios (pacta sunt servanda e rebus sic stantibus), mais que contrapostos, se completam, porque o alcance de um só vai até o do outro.
A teoria da imprevisão, por isto, é aceitável como limitadora da força obrigatória. Permite a alteração do contrato sem ferir a autonomia da vontade, porque só se muda o que não está adstrito à manifestação volitiva (imprevisibilidade).
5. Bibliografia
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo, Saraiva, 1998. v. 3.
FIUZA, Ricardo. Novo Código Civil comentado. São Paulo, Saraiva, 2003.
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro, Forense, 1978. v. 3
VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 3. ed. São Paulo, atlas, 2003. v. 2.
[1]SILVA PEREIRA, Caio M. Instituições de direito Civil.. 4ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1978. v. 3.
Procuradora Federal em exercício na Procuradoria Federal junto à Fundação Universidade Federal do Tocantins - UFT.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: NASCIMENTO, Patricia Bezerra de Medeiros. A resolução do contrato por onerosidade excessiva: breve comparativo entre disposições do Código Civil de 1916 e o Código Civil de 2002 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 jan 2014, 07:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38114/a-resolucao-do-contrato-por-onerosidade-excessiva-breve-comparativo-entre-disposicoes-do-codigo-civil-de-1916-e-o-codigo-civil-de-2002. Acesso em: 23 dez 2024.
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