Sumário: 1. Introdução: o conceito de Constituição e sua importância para a emancipação política do Brasil e a formação do Estado Brasileiro.
A Constituição, assim como outros instrumentos legais de um país, pode ser considerada uma lei, mas não é uma lei como as demais que abundam no arcabouço jurídico nas nações. É tida por Lei Maior; a Lei Fundamental de um Estado.
Em sua acepção geral a palavra constituição está ligada à idéia de modo de ser de alguma coisa. Dessa forma, a Constituição de um Estado, basicamente, fixa a forma do Estado e do governo, lança as bases da organização política e administrativa; e promove a garantia de direitos fundamentais inerentes a todos os cidadãos.
Pode-se afirmar que a Constituição é o instrumento jurídico que funda o Estado.
Na clássica lição de Maurice Hauriou:
“A Constituição é o conjunto de regras relativas ao Governo e à vida de uma comunidade estatal, encaradas sob o ponto de vista fundamental de sua existência. Esse conjunto de desdobra em regras relativas à organização social essencial, isto é, à ordem individualista e às liberdades individuais, em regras relativas à organização política e o funcionamento do Governo.” (HAURIOU Apud HORTA, p. 54/55).
Na conceituação mais analítica e contemporânea de José Afonso da Silva:
“A constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, a forma de seu governo, o modo de aquisição e exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado.” (SILVA, p. 39/40)
Fica, pois, clara a relevância do estudo das Constituições dos Estados, não só de seu texto, mas da forma e das circunstâncias em que foi criada, assim como da sua aplicação; para que se possa melhor compreender a história das nações.
No caso específico da Constituição de 1824, essa importância é ainda maior, pois se trata da primeira Lei Fundamental de uma nação que acabava de surgir e que tentava se consolidar como Estado independente.
A “Constituição Política do Império do Brazil” é, sem dúvida, “o primeiro grande documento normativo pós-independência” (WOLKMER, p. 84); tendo grande importância para a emancipação política do Brasil e a formação do Estado Brasileiro, portanto, seu conteúdo e história são fundamentais para se conhecer um pouco do Brasil que nascia.
2. A convocação da Assembleia Constituinte
Antes de tratarmos da Assembleia Constituinte e de sua convocação, temos de verificar os fatos relativos à organização política do Brasil ocorridos anteriormente. Não se pode ignorar que “o princípio de uma ordem representativa e constitucional de união das Províncias antecede a Independência.” (BONAVIDES, p. 39).
Diante das solicitações da elite paulista, em 16 de fevereiro de 1822, e sob a inspiração do então ministro José Bonifácio de Andrada e Silva, o Príncipe Regente D. Pedro, por meio de um decreto, convocou o Conselho de Procuradores Gerais das Províncias. Em maio do mesmo ano, uma representação do Senado da Câmara do Rio de Janeiro postulava a formação de uma Assembleia Geral das Províncias do Reino. “Demonstrava-se assim o rápido amadurecimento das aspirações constitucionais no seio da consciência brasílica.” (BONAVIDES, p. 41).
A questão foi levada ao Conselho de Procuradores que, de forma unânime, apoiou a convocação da solicitada assembleia. Foi assim, fruto do consenso no conselho, com a concordância do Príncipe Regente, que nasceu o decreto de 3 de junho de 1822, que estabelecia a convocação da “Assembleia Luso-Brasiliense” ou, como também a denomina aquele texto legal, “Assembleia Geral e Constituinte”.
“O decreto de 3 de junho de 1822 era a medida de constitucionalização do Brasil, e antecedia o ato de independência, consumado em 7 de setembro.” (BONAVIDES, p. 42)
Nos termos da instrução de 19 de junho do mesmo ano, de lavra de José Bonifácio, a Assembleia compunha-se de 100 deputados provinciais, eleitos pelo voto direto. Mas o processo eleitoral foi muito lento, sendo que, na abertura dos trabalhos, a Assembleia contava apenas com 52, dos 90 deputados que efetivamente tomariam posse. “Em sua essência, esses indivíduos representam as elites política e intelectual do Império em construção.” (NEVES, p. 90)
Dos constituintes, 45 eram formados em direito, sendo 22 desembargadores; 7 em cânones; 3 em medicina; 19 padres, sendo 1 bispo; 7 militares, sendo 3 marechais e 2 brigadeiros. 19 deles haviam sido eleitos antes da Assembleia brasileira para as Cortes de Lisboa.
3. Os trabalhos da Assembleia Constituinte
Em 3 de maio de 1823 foi realizada a sessão de abertura da Assembleia Geral Constituinte e Legislativa.
Em seu discurso de abertura, D. Pedro I deixou clara a posição em que se colocava, isto é, acima da dos representantes das províncias, tendo afirmado: “espero que a Constituição que façais, mereça a minha imperial aceitação” (BONAVIDES, p. 49), e que “juraria a “liberal Constituição” se digna do Brasil e de seu imortal defensor, ou seja, dele próprio” (NEVES, p. 89).
Portanto, o Imperador condicionava a validade da Lei Maior à sua aprovação pessoal. Na verdade a fala do monarca trouxera o início da dissolução da Assembleia, que entrava em crise no dia de sua instalação.
“A atuação da Assembleia Constituinte foi notável, quer no campo legislativo, quer na elaboração constitucional, não somente pela revelação de tantas figuras de saber e probidade, como pelo interesse de resolver os problemas nacionais.” (BONAVIDES, p. 83)
Nos 8 meses de trabalho da Assembleia, foram sancionados 6, de 38 projetos de lei; elaborados 241 pareceres pelas comissões; bem como aprovados 24 artigos para a Constituição. A atividade foi bastante intensa, especialmente, se considerarmos que se tratava de um Parlamento sem qualquer experiência ou tradição em uma nação onde tudo ainda estava a se fazer, inclusive em termos legislativos.
4. A crise e a dissolução da Assembleia Constituinte
Iniciados os trabalhos a maior polêmica se deu em torno das atribuições que caberiam aos poderes Executivo e Legislativo; numa disputa entre a maior centralização de poderes nas mãos do Imperador - posição conservadora – e a concessão de mais atribuições ao parlamento – posição liberal.
Além dessa, outras questões debatidas colocam frente a frente os adeptos do “partido português”, conservadores, e do “partido brasileiro”, mais liberais; além de outros grupos, como os “brasilienses”, considerado mais exaltados ou mesmo democratas. Vale ressaltar que esses não eram propriamente partidos políticos como hoje conhecemos, mas uma forma de classificar as pessoas e as ideias por elas defendidas nesse momento da história do Império. Os “portugueses”, ligados às tradições políticas lusitanas, defendiam a manutenção do maior poder possível nas mãos do Imperador, com claro viés absolutista e conservador. Enquanto os “brasileiros” - entre os quais estavam José Bonifácio e os outros dois irmãos Andrada na Assembleia: Antônio Carlos e Martin Francisco - buscavam dar força ao Legislativo, sob a inspiração das ideias liberais, mas sem abandonar a monarquia.
Foi esse o período no qual o Imperador aproximou-se de amigos pessoais, todos portugueses e defensores dos ideais conservadores do “partido português”. “Nesse meio tempo, D. Pedro I tirara José Bonifácio do governo e cercara-se de áulicos portugueses.” (CARVALHO, p. 22)
As discussões que dividiam a Assembleia foram parar nos jornais, controlados pelos diversos grupos ali representados. Os irmãos Andrada criaram “O Tamoio” no qual faziam oposição aos democratas e aos portugueses absolutistas, chamados “pés-de-chumbo”. O diário democrata, denominado “Sentinela da Liberdade à Beira-mar da Praia Grande”, fazia graves críticas aos oficiais portugueses no exercito brasileiro. Por fim, o “Correio do Rio de Janeiro”, “O Espelho” e o “Diário do Governo” opunham-se aos anteriores, defendo o pleno poder imperial.
Àquela altura “os ânimos da Assembleia se haviam elevado a uma temperatura muito alta” (BONAVIDES, p. 65).
A gota d’água foi o caso do espancamento do boticário David Pamplona Corte Real, nascido em Portugal, mas adepto do ideário brasileiro, por dois oficiais militares portugueses. O primeiro apresentou o requerimento à Assembleia pedindo “aquelas providências que exige a segurança pública, e individual dos Cidadãos Brasileiros, atacada só porque são reconhecidos por Brasileiros.” (BONAVIDES, p. 59).
Em discursos inflamados os irmãos Antônio Carlos e Martins Francisco saíram em defesa da vítima, contra a ação dos oficiais portugueses. Esses, por sua vez, apoiados por seus colegas de armas, representaram ao Imperador, pois se sentiam ultrajados pela forma como foram tratados os portugueses na Assembleia e nos jornais.
D. Pedro I convocou a tropa aquartelada no Campo de São Cristóvão, o que promoveu grande apreensão dos deputados liberais da Assembleia, que decidiu manter-se em sessão permanente até a solução da questão. Após uma sequencia de troca de ofícios entre os Poderes, que se seguiu pela madrugada, foi convocado o Ministro do Império, Villela Barbosa, para dar explicações.
“A presença de Villela no augusto recinto em nada iria alterar o processo que já se estava executando materialmente: o fechamento da Constituinte. (...) Lá fora, rugia a tempestade militar. D. Pedro, à frente das tropas, cercava o edifício da Constituinte.” (BONAVIDES, p. 77 e 79)
Após a leitura do decreto de 12 de novembro de 1822 que determinou o fechamento da Assembleia Constituinte, nada restou aos deputados fazer. Alguns poucos foram presos, incluindo os Andrada, que foram exilados pouco tempo depois.
Por meio de uma proclamação aos brasileiros, D. Pedro I justificou sua ação arbitrária, afirmando que grupos radicais estavam disseminando o ódio entre portugueses e brasileiros e tentando reduzir os poderes do Imperador. Alegou, também, que os trabalhos da Constituinte eram por demais lentos e que apresentaria, em pouco tempo, um novo projeto de Constituição, “duplamente mais liberal”, a ser submetida a uma nova Assembleia.
5. A outorga da Constituição
A promessa de convocação da nova Assembleia nunca foi cumprida, mas em 25 de março de 1824 foi outorgada a “Constituição Política do Império do Brazil”.
Sua elaboração foi conferida a um Conselho de Estado, formado por dez pessoas: João Severino Maciel da Costa, Luiz José de Carvalho e Melo, Clemente Ferreira França, Mariano José Pereira da Fonseca, Francisco Villela Barbosa, Barão de Santo Amaro, Antônio Luiz Pereira da Cunha, Manuel Jacinto Nogueira da Gama e José Joaquim Carneiro de Campos. Esse último, ex-membro da Assembleia Constituinte e ministro demissionário na crise da sua dissolução, foi o grande responsável pelo novo texto.
O projeto do Conselho de Estado foi elaborado com base em um rascunho entregue por D. Pedro I, que na verdade não passava do projeto da Assembleia Constituinte, elaborado por Antônio Carlos Andrada Machado.
“Embora a Carta que viria a ser outorgada em 25 de março de 1824 não diferisse em muito da proposta discutida pelos constituintes na Assembleia, antes de sua dissolução, ela continha uma diferença fundamental: não emanava da representação da nação, mas era concedida pela magnanimidade do soberano.” (NEVES, p. 93)
Outra diferença fundamental está na organização do Estado, uma vez que o projeto de Antônio Carlos, na esteira do pensamento de Montesquieu, previa a divisão tríplice do poder – Executivo, Legislativo e Judiciário; já Constituição outorgada previu, além daqueles, o Poder Moderador, uma novidade que marcou profundamente a formação do Estado Brasileiro, promovendo uma grande concentração de poderes nas mãos do Imperador.
Após a outorga iniciou-se a fase mais demorada para se promover a legitimação da Carta, qual seja: a aprovação pelas Câmaras Municipais, principal centro de poder local do Império, onde a boa recepção foi a regra.
6. Conclusões.
A Constituição do Império é, sem dúvida, filha do Imperador. É retrato da personalidade das ações contraditórias que marcaram a vida do primeiro monarca brasileiro. Se por um lado D. Pedro I era um liberal, influenciado pelos ideais das revoluções burguesas, de outro era um absolutista dentro da tradição dos Bragança.
Sobre a personalidade e as ações de D. Pedro I, afirmam Lúcia Maria Bastos Pereira Neves e Humberto Fernandes Machado:
“Exprimia, assim, uma curiosa duplicidade, bastante comum na época, entre o soberano ilustrado, partidário das novas ideias liberais, e a tradição absolutista, que não admitia poder superior ao do monarca. Ambiguidade que marcaria sua trajetória posterior, de déspota, na abdicação do trono brasileiro em 1831, a soberano responsável pela vitória do liberalismo em Portugal, três anos depois. E que marcara, não menos, sua atuação anterior.” (NEVES, p. 84).
São muitas as atitudes liberais de D. Pedro I, mas também frequentes são os arroubos autoritários. Essa contradição pode ser vista nos atos e fatos que cercaram a Constituição de 1824. Convocou uma Assembleia Constituinte, mesmo antes da independência, mas a dissolveu pela força oito meses depois, antes de findos os trabalhos. Defendia na abertura Assembleia Constituinte uma Constituição liberal, mas que deveria ser submetida à sua aprovação. Outorgou a Constituição, mas submeteu-a à aprovação das Câmaras Municipais.
7. Fontes
BONAVIDES, Paulo e ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 6ª Ed. Brasília : OAB Editora, 2004.
CARVALHO, José Murilo de. A Monarquia Brasileira. Rio de Janeiro : Ao Livro Técnico, 1993.
HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte : Del Rey, 1995.
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das, e MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro : Nova Fronteira. 1999.
SILVA, José Afonso da. Direito Constitucional Positivo. 15ª Ed. São Paulo : Malheiros, 1998.
WOLKMER, Antônio Carlos. História do Direito no Brasil. 2ª Ed. Rio de Janeiro : Forense, 2002.
Constituição Política do Império do Brazil de 1824. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm
Procurador Federal; Subprocurador da Procuradoria Federal no Estado de Minas Gerais; Especialista em Direito Processual pela PUC/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: REZENDE, Marcus Vinícius Drumond. O nascimento da primeira constituição do Brasil Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 fev 2014, 09:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38209/o-nascimento-da-primeira-constituicao-do-brasil. Acesso em: 23 dez 2024.
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