O devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa são princípios basilares de um Estado Democrático de Direito, estando consagrados em nosso ordenamento jurídico no artigo 5º, LIV e LV, da Constituição Federal de 1988, in verbis:
Art. 5º. (...)
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
No processo penal brasileiro – justamente como consectário da observância desses princípios – ao acusado é garantida plena participação na prova produzida em juízo, ao contrário do que ocorre com a prova colhida no curso do inquérito policial, de caráter eminentemente inquisitorial.
Se por um lado é inquestionável a importância vital de tais garantias constitucionais para uma verdadeira democracia, por outro ângulo, a praxe forense tem demonstrado que a prova – notadamente a testemunhal – produzida sob seu manto comumente enfrenta sérias dificuldades, advindas de fatores sociais.
Este artigo – importa ressaltar de antemão – não pretende negar o imensurável valor das garantias constitucionais, grande conquista de um país até então oprimido pela ditadura. O que aqui se busca, tão somente, é expor as dificuldades enfrentadas pelos operadores do direito que lidam com o processo penal brasileiro, em especial o Ministério Público, quando conjugados, em um mesmo contexto, a necessidade de observância de tais garantias e a presença de determinados fatores/problemas sociais.
A prova que efetivamente atende aos anseios de um processo efetivamente justo é, insofismavelmente, aquela que é produzida em igualdade de condições por ambas as partes em litígio. O devido processo legal traz ínsito em si a ideia de um processo em que se assegurem às partes amplo exercício de defesa e de participação na produção das provas.
O inquérito policial, entretanto, de caráter essencialmente inquisitivo, acusatório, apresenta contornos diversos. Ali não há processo, mas tão somente um procedimento investigativo, cujos elementos e informações colhidas poderão subsidiar (ou não) a propositura de uma ação penal. Somente se instaurada a ação penal e, portanto, iniciado o processo penal, é que haverá obrigatoriedade de observância ao contraditório, nos exatos termos do artigo 5º, LV, da Constituição Federal.
Partindo dessas premissas e supondo-se a notitia criminis de um roubo, por exemplo, a autoridade policial, ao proceder à oitiva de supostas testemunhas oculares do delito, não está propriamente a produzir provas, mas tão somente a colher informações, as quais precisam apenas fornecer indícios de autoria, a fim de subsidiar o oferecimento de denúncia.
As provas, em verdade, são produzidas apenas no curso da ação penal, sob o crivo do contraditório. Por essa razão, a propósito, é que toda a prova testemunhal, isto é, todas as informações colhidas na fase do inquérito, devem ser repetidas no bojo do processo, vez que nessa seara o acusado – que anteriormente não participou das oitivas e tampouco teve a chance de se manifestar sobre seu teor – tem garantidos o pleno exercício de seu direito de defesa, participando, inclusive, das inquirições.
Atento às diferenças existentes entre os elementos colhidos na fase policial e aqueles que se colhe na presença do Estado-Juiz, o artigo 155 do Código de Processo Penal, com redação dada pela Lei nº 11.690/2008, versa que o juiz deve formar sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo proferir sua decisão unicamente com base nos elementos colhidos no inquérito. Convém transcrever o referido dispositivo, in verbis:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
Antes mesmo da alteração do texto do artigo, quando não estava explícita a vedação de utilização exclusiva das provas do inquérito, a doutrina já apregoava essa impossibilidade:
“A valoração dos elementos colhidos na fase do inquérito somente poderá ser feita se em conjunto com as provas colhidas no curso do processo judicial, pois, sendo o inquérito, meramente, um procedimento administrativo, de característica inquisitorial, tudo o que nele for apurado deve ser corroborado em juízo”.[1]
“Validade das provas colhidas no inquérito policial para a condenação do réu: se nítida é a sua função de garantir o indivíduo contra acusações injustificadas, servindo à sociedade como meio célere de busca e colheita de provas perecíveis – em regra, as periciais –, torna-se preciso registrar que não se deve utilizá-lo como fonte legítima de produção de provas, passíveis de substituírem o efetivo contraditório, que somente em juízo será realizado”.[2]
Na tramitação legislativa da citada Lei nº 11.690/2008, que conferiu a nova redação ao artigo, houve proposta de emenda do Deputado Federal Flávio Dino, objetivando fosse acrescentado ao final a expressão “e aquelas submetidas a posterior contraditório”, ao argumento de que a proposta original estaria a limitar os poderes instrutórios e a livre convicção do juiz. A emenda, contudo, foi rejeitada.
“A jurisprudência atual – inclusive da Suprema Corte – é no sentido da possibilidade de o juiz utilizar dados colhidos na fase inquisitorial como elemento de convicção, desde que conjugados com outros apurados mediante o contraditório no processo criminal. A proposta, de iniciativa da Associação Nacional dos Procuradores da República foi rejeitada, e teria sido, caso aprovada, a justificativa legal para empregar-se indiscriminadamente a investigação como arrimo da sentença”.[3]
Com efeito, não é nada razoável que, em um Estado Democrático de Direito, se deixe de conferir peso maior à prova produzida sob o crivo do contraditório. As provas do inquérito assumem, quando muito, um papel de complementaridade à prova produzida no processo penal.
Quando se trata de processo penal brasileiro, todavia, esse entendimento – embora irretocável – comumente traz uma implicação prática nefasta: a impunidade. O Brasil, infelizmente, é um país marcado por altos índices de criminalidade. As periferias das grandes cidades do país, não raro, são comandadas por traficantes e gangues de extermínio, que impõem regras a todos que ali vivem, na condição de um verdadeiro Estado paralelo.
Nesses locais, os crimes são frequentemente praticados à luz do dia e em locais públicos, o que faz com que, muito frequentemente, haja testemunhas oculares de sua prática. Logo após o fato, essas testemunhas, quer movidas pelo “calor do momento”, quer por indignação ou mesmo por sede de justiça, tendem a narrar o que viram e a apontar a autoria. Chegam inclusive a, por diversas vezes, fazer reconhecimento visual do investigado perante a autoridade policial.
Tais elementos colhidos no inquérito, ao serem repetidos e confirmados no bojo do processo, provavelmente conduziriam o magistrado à prolação de uma decisão condenatória. O que tem se verificado comumente na prática, contudo, é a produção de uma prova testemunhal visivelmente mais frágil perante o MM. Juiz e o acusado. Testemunhas que, por ocasião do inquérito, afirmaram veementemente ser o investigado o autor do delito, por exemplo, passam a negar seu conhecimento acerca da autoria do fato, porquanto ameaçadas pelo grupo criminoso que o acusado integra ou apenas imbuídas por um fundado receio de represálias.
A verdade é que a condenação, em muitos crimes, depende eminentemente da prova testemunhal, não só pela sua natureza, mas também pela estrutura deficitária dos institutos de perícia do país, que, em sua grande maioria, estão longe de se equiparar àqueles exibidos em seriados americanos. De outra banda, a adesão a programas de proteção a testemunhas é bastante diminuto, haja vista as enormes restrições que impõem sobre a vida da testemunha, que acaba preferindo negar em juízo tudo o quanto afirmou perante a autoridade policial e, assim, poder prosseguir sua vida normalmente, sem medo de retaliações.
O fato é que, quando essa prova produzida no processo não se mostra minimamente consistente, o desfecho inevitável é a absolvição. Ante a ausência de qualquer imputação de autoria ao acusado no bojo do processo, por parte das testemunhas, os elementos colhidos no inquérito jamais poderão servir de base exclusiva a uma condenação, por mais contundentes que sejam.
O devido processo legal e seus consectários – ampla defesa e contraditório – são conquistas inestimáveis da democracia estabelecida na Carta de 1988. É profundamente lamentável que sua observância e a preponderância da prova produzida sob sua égide contribua para a impunidade, ainda que por via absolutamente reflexa. O Estado precisa trabalhar arduamente. No entanto, o que demanda revisão não são as garantias constitucionais. É preciso, na verdade, trabalhar para pôr um fim a essa criminalidade que age sem temor algum e à sensação de insegurança da população, que se vê à míngua de qualquer proteção estatal. Só assim se poderá falar em um processo penal efetivamente comprometido com a verdade real e, em primeira análise, com a justiça.
“Afinal, quem não quer a Justiça? Quem não quer a Verdade? Contudo, não se trata de abandonar ou substituir essas bandeiras para sempre, mas, sim, de não colocá-las por sobre a Constituição”.[4]
REFERÊNCIAS:
CHOUKR, Fauzi Hassan. Modelos Processuais penais: apontamentos para a análise do papel do juiz na produção probatória. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Ativismo judicial e garantismo processual. Salvador: Editora Jus Podivm, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 5ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.
RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 11ª ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006.
VELLOSO, Adolfo Alvarado. O garantismo processual. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Ativismo judicial e garantismo processual. Salvador: Editora Jus Podivm, 2013.
[1] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. 11ª ed. rev., ampl. e atual. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2006, p. 71.
[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 5ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 76.
[3] CHOUKR, Fauzi Hassan. Modelos Processuais penais: apontamentos para a análise do papel do juiz na produção probatória. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Ativismo judicial e garantismo processual. Salvador: Editora Jus Podivm, 2013, p. 192.
[4] VELLOSO, Adolfo Alvarado. O garantismo processual. In: DIDIER JR., Fredie (Org.). Ativismo judicial e garantismo processual. Salvador: Editora Jus Podivm, 2013, p. 29.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Larissa Suassuna Carvalho. A prova testemunhal no processo penal brasileiro e as dificuldades de sua produção Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 fev 2014, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38236/a-prova-testemunhal-no-processo-penal-brasileiro-e-as-dificuldades-de-sua-producao. Acesso em: 23 dez 2024.
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