O Conselho Nacional de Justiça foi introduzido no ordenamento jurídico pátrio através de Emenda Constitucional, mais especificamente a Emenda Constitucional nº 45/2004, que acrescentou o art. 103-B ao texto constitucional, cujo parágrafo quarto versa, in verbis:
§ 4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:
I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
II - zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União;
III - receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializados, sem prejuízo da competência disciplinar e correicional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada ampla defesa;
IV - representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou de abuso de autoridade;
V - rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados há menos de um ano;
VI - elaborar semestralmente relatório estatístico sobre processos e sentenças prolatadas, por unidade da Federação, nos diferentes órgãos do Poder Judiciário;
VII - elaborar relatório anual, propondo as providências que julgar necessárias, sobre a situação do Poder Judiciário no País e as atividades do Conselho, o qual deve integrar mensagem do Presidente do Supremo Tribunal Federal a ser remetida ao Congresso Nacional, por ocasião da abertura da sessão legislativa.
(grifo nosso)
A relevância do papel conferido pelo constituinte reformador ao Conselho Nacional de Justiça é brilhantemente sintetizada na passagem abaixo:
“O CNJ serve ao combate dos males que acometem o Poder Judiciário, a saber, a delonga em exercer a função jurisdicional e a ausência de transparência, decorrente de sua natureza tradicionalmente fechada. Seu mister é o de vigiar, tal e qual uma sentinela. O axioma que embasa essa criação é bastante conhecido e já apresentado aqui, a saber, a eficiência de determinado poder, bem como a sua lisura, é mais facilmente obtida por meio da existência de um órgão fiscalizador”[1].
Ao conferir a um órgão específico o controle da atuação do Poder Judiciário, a constitucionalidade do referido dispositivo desde logo passou a ser questionada, especialmente por magistrados. Várias foram as vozes a sustentar que o Conselho Nacional de Justiça representaria grave ameaça ao princípio da separação dos poderes, embora seja inegável que tal princípio venha sofrendo uma releitura no âmbito do constitucionalismo contemporâneo.
“No constitucionalismo contemporâneo, a significativa mudança no papel do Estado, que passou a intervir de forma muito mais intensa nas relações sociais e econômicas, levou a uma crise no princípio da separação dos poderes. (...) Porém, ao invés de simplesmente abandoná-lo, o novo constitucionalismo adotou leitura renovada do princípio da separação de poderes, aberta a arranjos institucionais alternativos, desde que compatíveis com os valores que justificam tal princípio. Tais valores, por outro lado, foram enriquecidos por novas preocupações, que vão além da contenção do poder, envolvendo a legitimação democrática do governo, a eficiência da ação estatal e a sua aptidão para a proteção efetiva dos direitos fundamentais”.[2]
A alegada violação ao princípio da separação dos poderes advinha do fato de que, na previsão de composição do Conselho Nacional de Justiça, há membros na origem alheios ao Poder Judiciário, dois dos quais indicados pelo Poder Legislativo. Havia um “receio inicial de que esse modelo poderia se tornar um insidioso estratagema para contornar a presença, no Conselho, de representantes submissos ao Legislativo ou comprometidos com seus quadros políticos. Vislumbrava-se, com razão, nesses pretensos membros da sociedade, a possibilidade de figurarem como um instrumento de pressão, em nome do Poder Legislativo, com vistas a incutir, quem sabe, no próprio Conselho Nacional de Justiça e no Poder Judiciário, o mal-afamado e nefasto clientelismo político”.[3]
Antes mesmo da criação do CNJ, o Supremo Tribunal Federal já havia se pronunciado, em mais de uma ocasião, pela impossibilidade de controle externo da magistratura em âmbito estadual, sob pena de violação ao princípio da separação dos poderes, cláusula pétrea constitucional (nesse sentido, vide ADIs nº 135/PB, 137-0/PA e 98-5/MT). Em todos os casos julgados, declarou-se a inconstitucionalidade de artigos de Constituições Estaduais que previam a criação de um Conselho Estadual de Justiça, destinado a exercer o controle da atividade administrativa e dos deveres funcionais dos magistrados. Posteriormente, tal entendimento foi sedimentado através da edição da Súmula nº 649, que dispõe que “é inconstitucional a criação, por Constituição Estadual, de órgão de controle administrativo do Poder Judiciário do qual participem representantes de outros Poderes ou entidades”.
A celeuma acabou sendo levada à apreciação do Supremo Tribunal Federal, por meio da ADI nº 3.367/DF, ajuizada em 09.12.2004 pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). Em seu bojo, arguiu-se a inconstitucionalidade do CNJ por afronta aos artigos 2º e 18 da CF/88, além de vício formal. Em 13.04.2005, o STF, por unanimidade, afastou a alegação de existência de vício formal de inconstitucionalidade e, no mérito, por maioria, considerou constitucional o Conselho Nacional de Justiça, o qual veio a ser instalado pouco tempo depois, em 14.06.2005.
Por ocasião do julgamento da referida ação, o Excelso Pretório “rejeitou a tese de afronta ao princípio da separação de Poderes, enfatizando que, tal como concebido, o Conselho Nacional de Justiça configura órgão administrativo interno do Poder Judiciário e não instrumento de controle externo”[4] (diferentemente dos precedentes que deram ensejo à Súmula nº 649), mesmo porque os membros que o compõem são, em sua maioria, membros do próprio Poder Judiciário.
Asseverou-se na oportunidade, ainda, que o próprio CNJ havia aprovado proposta de emenda que impunha aos membros do Conselho os mesmos impedimentos e restrições impostos aos magistrados, donde se infere a plena integração do órgão na estrutura do Poder Judiciário. Pontuou-se, ademais, que o CNJ não exerce função jurisdicional, mas seus atos estão sujeitos a controle judicial pelo STF (art. 102, I, r, CF/88). Igualmente se afastou a alegação de ofensa ao pacto federativo, tendo em vista o perfil nacional do Poder Judiciário, característica fortemente apresentada pela própria Carta Magna.
Vale citar alguns trechos do voto do relator, Ministro Cezar Peluso, in verbis:
“Sob o prisma constitucional brasileiro do sistema da separação dos Poderes, não se vê a priori como possa ofendê-lo a criação do Conselho Nacional de Justiça. À luz da estrutura que lhe deu a Emenda Constitucional nº 45/2004, trata-se de órgão próprio do Poder Judiciário (art. 92, I-A), composto, na maioria, por membros desse mesmo Poder (art. 103-B), nomeados sem interferência direta dos outros Poderes, dos quais o Legislativo apenas indica, fora de seus quadros e, pois, sem laivos de representação orgânica, dois dos quinze membros.
(...)
O preceito que a estabelece não inova coisa alguma na ordem constitucional, em cujo contexto guarda, com ruidosa clareza, menor extensão lógica e índice muito mais modesto de participação doutro Poder no processo de escolha de membros do Poder Judiciário, do que, por exemplo, o velhíssimo modelo do art. 101, § único, da Constituição da República, o qual defere ao Chefe do Poder Executivo competência exclusiva para nomear todos os integrantes desta Casa!
(...)
Representa expressiva conquista do Estado democrático de direito, a consciência de que mecanismos de responsabilização dos juízes por inobservância das obrigações funcionais são também imprescindíveis à boa prestação jurisdicional.
(...)
Entre nós, é coisa notória que os atuais instrumentos orgânicos de controle ético-disciplinar dos juízes, porque praticamente circunscritos às corregedorias, não são de todo eficientes, sobretudo nos graus superiores de jurisdição.
(...)
Nem embaraça a conclusão, o fato de que tenham assento e voz, no Conselho, membros alheios ao corpo da magistratura. Bem pode ser que tal presença seja capaz de erradicar um dos mais evidentes males dos velhos organismos de controle, em qualquer país do mundo: o corporativismo, essa moléstia institucional que obscurece os procedimentos investigativos, debilita as medidas sancionatórias e desprestigia o Poder.
(...)
O Conselho não anula, reafirma o princípio federativo”.[5]
As discussões em torno do CNJ, contudo, não se findaram com o julgamento da ação acima mencionada. Prova disso é a interposição da ADI nº 4638, igualmente intentada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), em ataque a dispositivos da Resolução nº 135/CNJ, que disciplina o procedimento administrativo disciplinar aplicável aos magistrados e dá outras providências.
O julgamento foi concluído pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal em 08 de fevereiro de 2012. Na ocasião, dentre outros pontos, os Ministros decidiram, por maioria de votos (6 x 5), que o CNJ pode iniciar investigação contra magistrado independentemente da atuação da corregedoria do respectivo tribunal que ele integra, sem necessidade de fundamentar a decisão. Em outras palavras, “portanto, o CNJ, no exercício de suas atribuições correcionais, atua originariamente (primariamente) e concorrentemente com as Corregedorias dos tribunais, podendo, assim, instaurar, independentemente da atuação das Corregedorias locais, procedimentos administrativos disciplinares aplicáveis aos magistrados”.[6]
Esse decisum é bastante emblemático, pois nele se traduz e se ratifica o entendimento do Supremo de que a atuação do CNJ – tendo poderes para investigar magistrado de maneira autônoma e independente – para além de não representar qualquer ofensa ao princípio da separação de poderes, configura medida legítima e salutar ao Estado Democrático de Direito.
De fato, a despeito da irresignação de significativa parte da magistratura brasileira – o que é em grande parte explicado pelo repúdio e aversão que parcela da carreira possui de submeter-se a efetivo controle –, o fato é que a jurisprudência da Suprema Corte pôs fim a várias discussões e questionamentos que recaíam sobre o Conselho Nacional de Justiça e sua conformidade à Constituição, confirmando a sua importante relevância para garantia da lisura na atuação do Poder Judiciário brasileiro.
REFERÊNCIAS:
LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 17. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013.
MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012.
TAVARES, André Ramos. Manual do poder judiciário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012.
[1] TAVARES, André Ramos. Manual do poder judiciário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 166.
[2] SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 433/434.
[3] TAVARES, André Ramos. Manual do poder judiciário brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 168/169.
[4] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 35.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Acórdão na ADI nº 3367/DF. Relator: PELUZO, Cesar. Publicado DJ 17.03.2006. Disponível em http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/ paginador.jsp?docTP=AC&docID=363371. Acessado em 11.02.2014.
[6] LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 17. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 862.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARROS, Larissa Suassuna Carvalho. O Conselho Nacional de Justiça e a superação das discussões em torno de sua constitucionalidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 17 fev 2014, 07:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38385/o-conselho-nacional-de-justica-e-a-superacao-das-discussoes-em-torno-de-sua-constitucionalidade. Acesso em: 23 dez 2024.
Por: WALKER GONÇALVES
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