RESUMO: Pretende-se, neste trabalho, empreender uma breve discussão acerca da acessibilidade ao ensino em ao labor, das pessoas portadoras de deficiência, estabelecendo-se um paralelo entre os requisitos exigidos para a concessão do Benefício de Prestação Continuada - BPC, estabelecido pela Lei n. 8.742/93 (LOAS), que regulamentou o Artigo 203, V, da Constituição Federal, em confronto com as políticas públicas de proteção e inclusão dessas pessoas. O cerne da questão está em estabelecer o que se entende por incapacidade para, então, abordar as barreiras de acesso à educação e ao labor, negando ao cidadão a sua dignidade e a uma vida digna. Ao final, apresenta-se alguns julgados a demonstrar como a questão é enfrentada no judiciário.
PALAVRAS-CHAVE: DEFICIÊNCIA; ACESSIBILIDADE; SISTEMA EDUCAÇIONAL; MERCADO DE TRABALHO; LOAS.
ABSTRACT: It is intended, in this work, undertake a brief discussion about accessibility to education in the labor, persons with disabilities, settling a parallel between the requirements for the grant of the benefit of Continuing Provision-BPC, established by law No. 93/8,742 (LOAS), which regulated the Article 203, V, of the Federal Constitution, in confrontation with the public policies of protection and inclusion of these people. The crux of the matter is to establish what is meant by inability to address barriers to access to education and labor, denying the citizen his dignity and a decent life. At the end, some tried to demonstrate how the issue is tackled in the judiciary.
KEY-WORDS: DISABILITY; ACCESSIBILITY; EDUCAÇIONAL SYSTEM; THE LABOUR MARKET; LOAS.
SUMÁRIO. 1. Introdução. 2. Acesso ao Ensino e ao Mercado de Trabalho. 3. Conclusão.4. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Enquanto a Constituição Federal de 1988 prevê expressamente, em seu artigo 203, V, a garantia de um salário mínimo à pessoa com deficiência que comprove não possuir meios de prover sua própria manutenção (ou de tê-la provida pelos familiares), o mesmo texto constitucional lança mão, em diversas passagens, do dever de não discriminação (pelo Estado e pelos particulares) além da promoção e integração da pessoa portadora de deficiência à vida em sociedade.
A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em redação dada pela Lei nº 12.470/11, discrimina que, para fins da percepção do benefício constitucional acima mencionado (Benefício de Prestação Continuada – BPC), “considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (art. 20, § 2º, da LOAS). Ressalte-se que a redação original da LOAS, de 1993, e as sucessivas alterações, já tentavam prever, de forma descritiva, o que era “pessoa com deficiência” para fins do benefício constitucional.
Mas, atualmente, a LOAS fala em “barreiras”; barreiras externas que, para todos os fins, impedem a pessoa com deficiência (independente da gravidade de sua situação particular de saúde) de participar, plena e efetivamente, da vida social. Mas a Constituição Federal prevê a obrigação estatal e particular de destruir tais barreiras. Onde falham os preceitos constitucionais? Hoje, vinte e seis anos depois da Constituição, as barreiras foram mesmo destruídas? As políticas afirmativas têm sido suficientes?
2. ACESSO AO ENSINO E AO MERCADO DE TRABALHO
Apesar de datarem de 1940 as primeiras ideias para melhorar a vida das pessoas com deficiência, o I Ano Internacional das Pessoas Deficientes ocorreu apenas em 1981. Na esteira da Constituição de 1988, normas foram emanadas visando a eliminar (ou, pelo menos, minimizar) as dificuldades de acesso da pessoa com deficiência ao convívio em comunidade.
Em 1989, a Lei nº 7.853 cria um verdadeiro “mapa da mina” das ações necessárias à realização dos objetivos da Constituição na eliminação de barreiras. As medidas aplicam-se, na disposição da lei, nas áreas (i) da educação, (ii) da saúde, (iii) da formação profissional e do trabalho, (iv) de recursos humanos e (v) das edificações.
Na área da educação, segundo o Perfil dos Municípios Brasileiros de 2011, publicado pelo IBGE, dos 5.565 municípios brasileiros, apenas 3.693 têm escola apta a receber pessoas com deficiência (66,4%). A pior situação está no Norte do país, onde menos da metade dos municípios tem escolas acessíveis a pessoas com deficiência (49,2%).
Da efetiva vida escolar, apenas 16% da população com algum tipo de deficiência (visual, auditiva, motora e mental/intelectual), em qualquer grau de comprometimento, frequenta a escola ou creche, segundo o Censo Demográfico 2010 do IBGE. Dos jovens entre 18 e 24 anos (idade universitária), 33,2% frequentam escola; porém, o Censo não nos permite verificar se são cursos de natureza profissionalizante ou de ensino básico tardio. Do universo das pessoas com deficiência, apenas 6,7% possuem ensino superior completo.
O ponto é que as dificuldades[1] de ensino das pessoas com deficiência refletem diretamente no acesso dessas pessoas ao mercado de trabalho e ao pleno emprego.
Em complemento à Lei nº 7.853/89, o Decreto nº 3.298, de 1999, traça diretrizes mais claras acerca da promoção da pessoa com deficiência no mercado de trabalho. O artigo 36 do mencionado Decreto repete e especifica o artigo 93 da Lei 8.213, de 1991[2], que estabelece a obrigação de contratar determinado percentual de empregados portadores de deficiência para empresas com cem ou mais empregados.
Apesar das formas de fomento ao acesso no mercado, em 2010, pelo Censo Demográfico do IBGE, apenas 46,2% da população com deficiência com dez anos ou mais possuía uma ocupação econômica (com ou sem vínculo de emprego). De maneira mais aproximada à realidade, entre as pessoas com deficiência entre 18 e 59 anos (média da idade laboral), 61,3% possuíam ocupação em 2010.
Mas qual é o critério de deficiência adotado pelo mercado de trabalho para fins de preenchimento das cotas? O critério certamente difere da LOAS. A “Lei de Cotas” fala em “pessoas com deficiência habilitadas”. A definição está no Decreto nº 3.298/99, que considera “pessoa portadora de deficiência habilitada aquela que concluiu curso de educação profissional de nível básico, técnico ou tecnológico, ou curso superior, com certificação ou diplomação expedida por instituição pública ou privada, legalmente credenciada pelo Ministério da Educação ou órgão equivalente, ou aquela com certificado de conclusão de processo de habilitação ou reabilitação profissional fornecido pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS” ou, também, “aquela que, não tendo se submetido a processo de habilitação ou reabilitação, esteja capacitada para o exercício da função” (art. 36, § 2º e 3º).
Nessa linha de definição, novamente, se demonstra a estreita relação entre o nível educacional da pessoa com deficiência e sua inserção no mercado de trabalho. Verdadeiramente, um empregado com deficiência, que necessite de adaptações arquitetônicas, tecnológicas, e outras, para laborar de maneira adequada é mais custoso aos empregadores comparado aos demais empregados.
A obrigação estabelecida em lei de preencher as cotas ainda deixa escapar a qualificação profissional; a pessoa portadora de deficiência deve ser habilitada profissionalmente para exercer o labor e para que a empresa cumpra os requisitos legais. No entanto, as barreiras de acesso à educação e profissionalização permanecem, como visto acima, nos dados sobre a vida escolar das pessoas com deficiência.
Veja-se a importância do assunto na jurisprudência recente da Justiça do Trabalho, que constantemente se defronta com a temática do preenchimento das cotas quando empresas fiscalizadas e autuadas pelos órgãos competentes alegam não cumprir a disposição legal por “ausência de qualificação ou interessados na vaga” (grifos nossos):
AGRAVO EM AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA. AUTO DE INFRAÇÃO. INOBSERVÂNCIA DA REGRA DO ARTIGO 93 DA LEI Nº 8.213/91. O Tribunal Regional, soberano na análise do conjunto probatório, deliberou que a reclamada não tem o número mínimo de empregados com deficiência, exigido no artigo 93 da Lei nº 8.213/91, porque não há, na localidade, quantidade suficiente de trabalhadores, nessa condição, interessados nas vagas. Nesse contexto, ao declarar a nulidade do auto de infração lavrado contra a empresa, o Tribunal Regional não ofendeu a literalidade do preceito acima referido, tampouco violou o artigo 626 da CLT. Agravo a que se nega provimento. (TST, 7ª Turma, Ag-AIRR-29100-25.2009.5.05.0194, Relator Ministro Pedro Paulo Manus, DeJT - 15/2/2013).
RECURSO DE REVISTA - NULIDADE DO AUTO DE INFRAÇÃO. MULTA ADMINISTRATIVA POR DESCUMPRIMENTO DO DISPOSTO NO ARTIGO 93 DA LEI Nº 8.213/91. AÇÃO AFIRMATIVA. RESERVA DE VAGAS A BENEFICIÁRIOS DE AFASTAMENTO PREVIDENCIÁRIO REABILITADOS OU PESSOAS PORTADORAS DE DEFICIÊNCIA, HABILITADAS. IMPOSSIBILIDADE DE PREENCHIMENTO POR FALTA DE INTERESSADOS SUFICIENTES. O art. 93 da Lei nº 8.213/91 tem por escopo a inserção no mercado de trabalho de beneficiários de afastamento previdenciário reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, por meio da reserva de um percentual dos cargos a serem preenchidos, nas empresas com cem empregados ou mais, para essas pessoas, evitando-se a discriminação no âmbito das relações trabalhistas. Todavia, tendo o Regional consignado que a Autora diligenciou, ainda que sem sucesso, na tentativa de cumprir as exigências previstas no art. 93 da Lei nº 8.213/91, mediante divulgação de processo seletivo em jornais locais e de encaminhamento de correspondências às organizações e entidades de apoio aos portadores de deficiência, a empresa não pode ser responsabilizada pelo não comparecimento de profissionais habilitados para o exercício da função interessados em participar do processo seletivo. Recurso de Revista não conhecido. (TST, 8ª Turma, RR -153500-13.2008.5.20.0006, Relator Ministro Márcio Eurico Vitral Amaro, DEJT 10/09/2012).
AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECURSO DE REVISTA - INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA - MULTA - NÃO PREENCHIMENTO DAS VAGAS DESTINADAS A PORTADORES DE DEFICIÊNCIA. O art. 93 da Lei nº 8.213/91 fixa os percentuais (2% a 5%) de reserva de cargos a portadores de deficiência ou reabilitados que toda empresa com mais de cem empregados deverá observar. Todavia, depreende-se da lei que a reserva dessas vagas não é a qualquer portador de deficiência, e sim para aqueles trabalhadores reabilitados ou os portadores de deficiência que possuam alguma habilidade para o trabalho, ou seja, cuja deficiência permita o exercício de uma atividade laboral. A partir dessa premissa de direito, o Tribunal Regional, com base no conjunto fático-probatório dos autos, concluiu que ficou devidamente comprovado que a empresa tentou cumprir os ditames legais, mas não logrou êxito em face da dificuldade de encontrar trabalhadores que atendessem às condições necessárias ao preenchimento das vagas destinadas aos portadores de deficiência, motivo pelo qual anulou o auto de infração e a respectiva multa imposta à empresa. (...). (TST, 2ª Turma, AIRR-260600-66.2007.5.02.0023, Relatora Ministra Maria das Graças Silvany Dourado Laranjeira, DeJT - 7/12/2012)
Obviamente que, em determinadas localidades, haverá escassez de pessoas com deficiência para o preenchimento das vagas de emprego, bem como, em outras, haverá tamanha dificuldade de locomoção (falta de pavimentação adequada, ausência de transporte público adaptado, etc.) que as pessoas com deficiência não terão sequer possibilidade de concorrer às vagas. Em algumas situações ainda, a pessoa se deslocará (não sem dificuldade), para concorrer a uma vaga que exige qualificação que ela não possui, pois não teve acesso à escola, ao material, ao curso ou ao profissional capacitado para ensiná-la. E as barreiras persistem.
Claramente, não se trata, aqui, daquelas pessoas que possuem tamanho grau de comprometimento de sua saúde que estão plenamente incapacitadas para qualquer tipo de labor; essas pessoas e suas famílias devem ser amparadas pela Assistência Social do Estado, nos melhores ditames da Constituição Federal de 1988. Mas aquelas pessoas com deficiência que, ainda hoje, estão no “limbo” das políticas públicas de integração e promoção; são perfeitamente independentes e ativas, mas encontram seu caminho obstruído por barreiras que o Estado não dá conta de remover.
3. CONCLUSÃO
A louvável intenção da Constituição Federal de 1988, em eco com toda a sociedade nacional e internacional, em eliminar as barreiras e fomentar a adaptação e integração das pessoas com deficiência à sociedade (e vice-versa), vinte e seis anos depois, ainda derrapa.
No intuito de resguardar a todos uma vida digna, garantiu às pessoas com deficiência, sem especificá-las, o pagamento de um salário mínimo. E, ao mesmo tempo previu a necessidade e obrigação das políticas positivas em favor dessas pessoas (acesso à educação, saúde, emprego). No desdobramento constitucional, porém, a lei responsável por garantir o benefício assistencial (LOAS) abarcou sob sua definição todas as pessoas com deficiência que, independente do grau de comprometimento intrínseco da deficiência, foram excluídas da participação em sociedade por barreiras que lhe impedem o acesso ao convívio comum.
Diante da realidade ainda hoje visualizada, pode-se dizer que a LOAS foi realista; em especial no tocante à educação e, consequentemente, ao pleno emprego das pessoas com deficiência, as barreiras que permanecem prejudicam a própria existência digna dessas pessoas, que não conseguem meios de prover o próprio sustento.
O problema, porém, vai além. Hoje sob a guarda da assistência social no tocante ao quesito financeiro[3], as barreiras de acesso produzem resultado muito mais devastador na autoestima dessas pessoas: um cidadão digno não precisa apenas comer e vestir; ele precisa enxergar a si com dignidade e possibilidade de realizar-se pessoalmente, seja através da sua formação educacional ou profissional.
4. REFERÊNCIAS
IBGE, Censo Demográfico 2010;
IBGE, Perfil dos Municípios Brasileiros de 2011.
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) / Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD) / Coordenação-Geral do Sistema de Informações sobre a Pessoa com Deficiência, Cartilha do Censo 2010 – Pessoas com Deficiência, Texto: Luiza Maria Borges Oliveira, Brasília: SDH-PR/SNPD, 2012.
UNESCO, Inclusão digital e social de pessoas com deficiência: textos de referência para monitores de telecentros, Brasília: UNESCO, 2007.
[1] Entenda-se aqui dificuldades como as “barreiras de acesso”, dos mais diversos tipos (estrutural, interpessoal, etc.), que, de forma externa, impedem as pessoas com deficiência de gozar o pleno acesso ao ambiente escolar. A palavra dificuldades como empregada no texto não se refere aos problemas de aprendizagem pessoais advindos da própria deficiência.
[2] Apelidada de “Lei de Cotas”.
[3] Considere-se, ainda, que parte da população com deficiência sequer possui acesso ao sistema da Assistência Social do Estado para lhe prover o benefício.
Advogado, Mestrando em Direito Previdenciário na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FREITAS, Luiz Gonzaga da Cunha. A atual situação do acesso das pessoas com deficiência aos sistemas educacional e laboral - as barreiras e a legislação em vigor Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 18 fev 2014, 06:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38393/a-atual-situacao-do-acesso-das-pessoas-com-deficiencia-aos-sistemas-educacional-e-laboral-as-barreiras-e-a-legislacao-em-vigor. Acesso em: 23 dez 2024.
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