O presente artigo pretende analisar a não-recepção da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688, de 03 de Outubro de 1941) pelo atual ordenamento jurídico-constitucional, à luz dos princípios do devido processo legal substantivo e da intervenção mínima do Direito Penal.
Nesse passo, conforme Guilherme de Souza Nucci (in: Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. São Paulo: RT, 2008. p. 140), a Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei nº 3.688, de 03 de Outubro de 1941) é totalmente inconstitucional (leia-se: não foi recepcionada pela Constituição Federal). Vejamos:
“Princípio penal da intervenção mínima e contravenção penal: o princípio da intervenção mínima ou da subsidiariedade significa que o Direito Penal, no âmbito de um Estado Democrático de Direito, deve intervir minimamente na vida privada do cidadão, vale dizer, os conflitos sociais existentes, na sua grande maioria, precisam ser solucionados por outros ramos do ordenamento jurídico (civil, trabalhista, tributário, administrativo etc.). A norma penal incriminadora, impositiva de sanção, deve ser a ultima ratio, ou seja, a última hipótese que o Estado utiliza para punir o infrator da lei. Logo, o caminho ideal é a busca da descriminalização, deixando de considerar infração penal uma série de situações ainda hoje tipificadas como tal. Exemplo maior do que nós defendemos é a Lei das Contravenções Penais. Seus tipos penais são, na maioria absoluta, ultrapassados, vetustos e antidemocráticos. Promovem formas veladas de discriminação social e incentivam a cizânia dentre pessoas, que buscam resolver seus problemas cotidianos e superficiais, no campo penal. Pensamos que não haveria nenhum prejuízo se houvesse a simples revogação da Lei das Contravenções Penais, transferindo para o âmbito administrativo determinados ilícitos e a sua punição, sem que se utilize da Justiça Criminal para compor eventuais conflitos de interesses, como, por exemplo, uma ínfima contrariedade entre vizinhos porque um deles está com um aparelho sonoro ligado acima do permitido (art. 42, III, LCP). Ao longo dos comentários, pretendemos demonstrar a inadequação desta lei, bem como os tipos penais que se tornaram, em face da nova Constituição Federal de 1988, inaplicáveis, pois inconstitucionais.”
Mesmo referido doutrinador entendendo pela inconstitucionalidade, a melhor técnica recomenda a terminologia “não-recepção” pela nova ordem constitucional, eis que a Lei de Contravenções Penais é anterior à Constituição Federal de 1988.
Nesse passo, a norma prevista em qualquer dispositivo da Lei de Contravenções Penais, apesar de formalmente devidos, são materialmente (conteúdo) indevidos. Seu conteúdo é inconstitucional, e não sua forma (que respeitou o devido processo legal legislativo-constitucional, da época).
Contudo, apesar de respeitar o devido processo legal formal, não respeita o devido processo legal em sua dimensão material ou substantiva (conteúdo).
O princípio da proporcionalidade está intimamente ligado, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal, ao substantive due processo of law, ou seja, à dimensão material do devido processo legal.
Nesse sentido:
A essência do ‘substantive due process of law’ reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade. (ADI-MC 1063 – DF – Rel. Min. Celso de Mello)
O princípio da proporcionalidade alberga três subprincípios: a) necessidade; b) adequação; c) proporcionalidade em sentido restrito.
Uma norma que não é proporcional é inconstitucional, eis que fere de morte a dimensão subjetiva do devido processo legal.
Uma norma é necessária quando capaz de atingir seu objetivo, que, no caso da Lei das Contravenções Penais, é evitar certas condutas sociais.
Uma norma é adequada quando tem mais bônus do que ônus, ou seja, quando é, dentre as várias hipóteses possíveis, a medida menos gravosa para atingir determinado objetivo. A Lei de Contravenções Penais é, dentre as várias medidas possíveis para se evitar determinadas condutas, uma das mais gravosas.
Nesse sentido, Flávia D’urso (in: Princípio Constitucional da Proporcionalidade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2007. p. 67):
“(...) o meio empregado pelo legislador deve ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. O meio é adequado, quando com seu auxílio se pode promover a resultado desejado; ele é exigível, quando o legislador não poderia ter escolhido outro igualmente eficaz, mas que seria um meio não prejudicial ou portador de uma limitação menor perceptível a direito fundamental (...)”
Uma norma é proporcional em sentido restrito quando for razoável. Certamente, considerando que outros ramos do Direito poderiam evitar a prática das condutas proibitivas previstas na LCP, prever prisão simples privativa de liberdade para tais condutas é totalmente desproporcional.
Sobre o tema, Flávia D’urso (in: Princípio Constitucional da Proporcionalidade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2007. p. 68):
“Esse subprincípio é também conhecido como justa medida, porquanto estabelece uma correspondência entre o fim a ser alcançado por uma disposição normativa e o meio empregado que seja juridicamente melhor possível.”
No mais, tal Decreto-Lei também deixa de observar o Princípio da Intervenção Mínima do Direito Penal.
Isso em virtude de o Direito Penal não se prestar para promover a tutela de todas as lesões ao bem jurídico. Para isso, existem os outros ramos do Direito, ficando sua intervenção limitada aos casos em que há lesão jurídica relevante. É o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, composto da subsidiariedade e fragmentariedade.
Um Direito Penal subsidiário é aquele que só pode intervir quando os outros ramos do Direito não forem capazes de prevenir e repelir a prática do ato ilícito.
A fragmentariedade do Direito Penal, por sua vez, significa que o mesmo somente atua quando a conduta e o resultado (lesão ou perigo concreto de lesão) forem relevantes. Assim, não é qualquer conduta ou lesão que admitem a aplicação de sanções penais, precisando que sejam relevantes.
A soma da fragmentariedade e subsidiariedade resulta no que chamamos princípio da intervenção mínima.
Veja-se que não é outra a lição de Rogério Grego (In: Direito Penal do Equilíbrio. Editora Impetus. 5ª Edição p. 03):
“Desta forma, a orientação constante do trabalho será dirigida, primeiramente, a retirar do nosso ordenamento jurídico-penal todas as contravenções penais, que fogem à lógica do Direito Penal do Equilíbrio, uma vez que se a finalidade deste é a proteção dos bens mais relevantes e necessários ao convívio em sociedade, incapazes de serem protegidos tão-somente pelos demais ramos do ordenamento jurídico; e se as contravenções penais são destinadas à proteção dos bens que não gozam do status de indispensáveis, no sentido que lhe empresta o Direito Penal, a única solução seria sua retirada da esfera de proteção por este último.”
Nesse palmilhar, considerando ser a Lei de Contravenções Penais medida inadequada e desarrazoada para prevenir e punir determinadas condutas, ferindo o princípio da proporcionalidade, que por sua vez lanceia o princípio do devido processo legal substantivo, maculando também o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, é certo que ela não encontra amparo na Constituição da República Federativa do Brasil, devendo ser declarada não-recepcionada pela nova ordem constitucional.
Anote-se, por oportuno, que recentemente o Supremo Tribunal Federal deu sinais de que está atento a tais fatores quando, após ser provocado pela altiva Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, declarou não-recepcionado pela Constituição Federal de 1988 o artigo 25 da Lei de Contravenções Penais, que considera como contravenção o porte injustificado de objetos como gazuas, pés-de-cabra e chaves michas por pessoas com condenações por furto ou roubo ou classificadas como vadios ou mendigos. Segundo o ministro Gilmar Mendes, relator do processo, o dispositivo da LCP é anacrônico e não foi recepcionado pela CF por ser discriminatório e contrariar o princípio fundamental da isonomia (Recurso Extraordinário –RE - 583523).
Assim, o Decreto-Lei nº 3.688, de 03 de Outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), em nosso entendimento, não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 e, por tal razão, de rigor que passemos a questionar a aplicabilidade de tais normas no atual ordenamento jurídico, que consagra os princípios do devido processo legal substantivo e da intervenção mínima do Direito Penal,
Defensor Público no Estado de São Paulo. Colaborador do Núcleo Especializado de Combate à Discriminação, Racismo e Preconceito. Especialista em Direito Constitucional (UnP). Pós-graduando em Direito Processual Civil (Univem)<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BASOLI, Lucas Pampana. Da não-recepção da Lei de Contravenções Penais pelo atual ordenamento jurídico-constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 fev 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38409/da-nao-recepcao-da-lei-de-contravencoes-penais-pelo-atual-ordenamento-juridico-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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