1. O que se entende por Leis-medida
Tal qual as leis de efeitos concretos, as chamadas “leis-medida” (Massnahmegesetze) seriam normas apenas em sentido formal, mas não em sentido material. Com efeito, as leis-medidas são editadas com a finalidade de disciplinar eventos ou interesses específicos, possuindo um elevado grau de concreção e individualidade, no que se contrapõem às leis em geral, que constituem preceitos primários, detentoras da natural abstração e generalidade próprias desta espécie normativa. Seus efeitos, ao tempo que atingem somente aquelas concretas situações motivadoras de sua edição, exaurem-se ao cumprirem sua finalidade, devendo sua teleologia sempre ser buscada partindo-se do contexto histórico vigente em sua gênese.
Na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF nº 153/DF, o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade da Lei nº 6.683/79, conhecida como “Lei de Anistia”, no que se refere à extensão da anistia aos agentes estatais repressores.
Ali o tema das leis-medida foi explorado com bastante percuciência pelo Ministro relator César Peluso, tendo ele registrado que “as leis-medidas são aquelas que disciplinam diretamente certos interesses, mostrando-se imediatas e concretas. Consubstanciam-se, em si mesmas, um ato administrativo especial[1]”. Afirmou ainda que “o poder legislativo não veicula comandos abstratos e gerais quando as edita, fazendo- na pura execução de certas medidas[2]”.
Como se observa, embora dotadas de imperatividade e normatividade, as leis-medida se aproximariam de um ato administrativo, não se dissociando da realidade histórica, cultural, axiológica e institucional que lhes motivou o nascedouro, o que deve ser levado em consideração pelo intérprete, que não pode tomar de paradigma os valores e conceitos hoje vigorantes. Assim, embora se saiba que, em regra, o texto não se confunde com a norma dele extraída, considerando que esta última sofre os influxos de um contínuo processo de adaptação e mutação, no caso específico das leis-medida esse texto cristaliza referencia a um dado contexto da realidade fática, razão porque tais normas não devem ser submetidas ao controle de constitucionalidade com parâmetro em Constituição posterior.
Nesse sentido, vale a pena trazer à colação o seguinte excerto extraído do julgamento da ADPF n° 153/DF, onde se pontuou o caráter de lei-medida da lei de anistia:
“(...) O significado válido dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos. Mas essa afirmação aplica-se exclusivamente à interpretação das leis dotadas de generalidade e abstração, leis que constituem preceito primário, no sentido de que se impõem por força própria, autônoma. Não àquelas, designadas leis-medida (Massnahmegesetze), que disciplinam diretamente determinados interesses, mostrando-se imediatas e concretas, e consubstanciam, em si mesmas, um ato administrativo especial. No caso das leis-medida interpreta-se, em conjunto com o seu texto, a realidade no e do momento histórico no qual ela foi editada, não a realidade atual. É a realidade histórico-social da migração da ditadura para a democracia política, da transição conciliada de 1979, que há de ser ponderada para que possamos discernir o significado da expressão crimes conexos na Lei n. 6.683. É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, “se procurou” [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento — o momento da transição conciliada de 1979. A Lei n. 6.683 é uma lei-medida, não uma regra para o futuro, dotada de abstração e generalidade. Há de ser interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada.
6. A Lei n. 6.683/79 precede a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes — adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 — e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura; e o preceito veiculado pelo artigo 5º, XLIII da Constituição — que declara insuscetíveis de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes — não alcança, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não afeta leis-medida que a tenham precedido. (...)”
2. Controle concentrado de constitucionalidade das Leis-medida.
Pois bem; no que tange à questão do controle de constitucionalidade, verifica-se que a interpretação do Supremo inicialmente era no sentido de não serem passíveis de controle as leis-medida, forte na premissa de tratar-se de lei apenas no sentido formal, mas não no sentido material, verbis:
“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. DECRETO LEGISLATIVO N. 788, DE 2005, DO CONGRESSO NACIONAL. AUTORIZAÇÃO AO PODER EXECUTIVO PARA IMPLEMENTAR O APROVEITAMENTO HIDROELÉTRICO BELO MONTE NO TRECHO DO RIO XINGU, LOCALIZADO NO ESTADO DO PARÁ. ATO CONCRETO. LEI-MEDIDA. AUSÊNCIA DE ABSTRAÇÃO E GENERALIDADE NECESSÁRIOS AO CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE CONCENTRADO. INVIABILIDADE DA AÇÃO DIRETA. ARTIGO 102, INCISO I, "a", DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. Compete ao Supremo Tribunal Federal julgar originariamente a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual [artigo 102, I, "a", CB/88]. Os atos normativos que se sujeitam ao controle de constitucionalidade concentrado reclamam generalidade e abstração. 2. Não cabe ação direta como via de impugnação de lei-medida. A lei-medida é lei apenas em sentido formal, é lei que não é norma jurídica dotada de generalidade e abstração. 3. Ação direta de inconstitucionalidade não conhecida[3]”. (destaque do expositor)
A interpretação era a mesma da que sempre foi sufragada no tocante ao controle das leis orçamentárias, as quais, como se observa da ementa ilustrativa abaixo colacionada, emanada do STF, não poderiam ser alvo de controle abstrato de constitucionalidade em razão da inexistência de abstração, generalidade e imperatividade, verbis:
EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 0456, DE 23/07/99, DO ESTADO DO AMAPÁ (DIRETRIZES ORÇAMENTÁRIAS). EMENDA PARLAMENTAR A PROJETO DE LEI, MODIFICATIVA DOS PERCENTUAIS PROPOSTOS PELO GOVERNADOR, SEM ALTERAR OS VALORES GLOBAIS DA PROPOSTA. ATO DE EFEITO CONCRETO. INVIABILIDADE DO CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE. 1. Constitui ato de natureza concreta a emenda parlamentar que encerra tão-somente destinação de percentuais orçamentários, visto que destituída de qualquer carga de abstração e de enunciado normativo. 2. A jurisprudência desta Corte firmou entendimento de que só é admissível ação direta de inconstitucionalidade contra ato dotado de abstração, generalidade e impessoalidade. 3. A emenda parlamentar de reajuste de percentuais em projeto de lei de diretrizes orçamentárias, que implique transferência de recursos entre os Poderes do Estado, tipifica ato de efeito concreto a inviabilizar o controle abstrato. 4. Ação direta não conhecida[4]. (destaque do expositor)
Ocorre que, quanto a esse tema, a jurisprudência da corte mudou, sendo atualmente possível o controle de constitucionalidade das normas de efeito concreto. Nesse sentido, após alguns julgados em que a corte sinalizou no sentido da alteração do seu entendimento[5], em 2008 o tema foi novamente levado ao Supremo por ocasião da apreciação da constitucionalidade da medida provisória n. 405/2005, convertida na Lei 11.685/2008, através da AI de n° 4.048. Na ocasião, restou consignado de modo incisivo o novo entendimento da corte, no sentido da obrigatoriedade do cumprimento de sua missão constitucional de apreciar a constitucionalidade dos atos normativos, quer tenham caráter geral ou específico, concreto ou abstrato. Eis o ementário pertinente:
EMENTA: MEDIDA CAUTELAR EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA PROVISÓRIA N° 405, DE 18.12.2007. ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS. I. MEDIDA PROVISÓRIA E SUA CONVERSÃO EM LEI. Conversão da medida provisória na Lei n° 11.658/2008, sem alteração substancial. Aditamento ao pedido inicial. Inexistência de obstáculo processual ao prosseguimento do julgamento. A lei de conversão não convalida os vícios existentes na medida provisória. Precedentes. II. CONTROLE ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE DE NORMAS ORÇAMENTÁRIAS. REVISÃO DE JURISPRUDÊNCIA. O Supremo Tribunal Federal deve exercer sua função precípua de fiscalização da constitucionalidade das leis e dos atos normativos quando houver um tema ou uma controvérsia constitucional suscitada em abstrato, independente do caráter geral ou específico, concreto ou abstrato de seu objeto. Possibilidade de submissão das normas orçamentárias ao controle abstrato de constitucionalidade. III. LIMITES CONSTITUCIONAIS À ATIVIDADE LEGISLATIVA EXCEPCIONAL DO PODER EXECUTIVO NA EDIÇÃO DE MEDIDAS PROVISÓRIAS PARA ABERTURA DE CRÉDITO EXTRAORDINÁRIO. Interpretação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea "d", da Constituição. Além dos requisitos de relevância e urgência (art. 62), a Constituição exige que a abertura do crédito extraordinário seja feita apenas para atender a despesas imprevisíveis e urgentes. Ao contrário do que ocorre em relação aos requisitos de relevância e urgência (art. 62), que se submetem a uma ampla margem de discricionariedade por parte do Presidente da República, os requisitos de imprevisibilidade e urgência (art. 167, § 3º) recebem densificação normativa da Constituição. Os conteúdos semânticos das expressões "guerra", "comoção interna" e "calamidade pública" constituem vetores para a interpretação/aplicação do art. 167, § 3º c/c o art. 62, § 1º, inciso I, alínea "d", da Constituição. "Guerra", "comoção interna" e "calamidade pública" são conceitos que representam realidades ou situações fáticas de extrema gravidade e de conseqüências imprevisíveis para a ordem pública e a paz social, e que dessa forma requerem, com a devida urgência, a adoção de medidas singulares e extraordinárias. A leitura atenta e a análise interpretativa do texto e da exposição de motivos da MP n° 405/2007 demonstram que os créditos abertos são destinados a prover despesas correntes, que não estão qualificadas pela imprevisibilidade ou pela urgência. A edição da MP n° 405/2007 configurou um patente desvirtuamento dos parâmetros constitucionais que permitem a edição de medidas provisórias para a abertura de créditos extraordinários. IV. MEDIDA CAUTELAR DEFERIDA. Suspensão da vigência da Lei n° 11.658/2008, desde a sua publicação, ocorrida em 22 de abril de 2008[6]. (destaque do expositor)
Ocorre que, embora se identifique uma semelhança entre os dois segmentos normativos, notadamente a falta de generalidade e abstração que as aproxima de um ato administrativo, é preciso pontuar que entre as duas há uma relação de gênero e espécie: as leis-medida seriam uma determinada espécie de lei de efeitos concretos. Com efeito, as leis-medida se destacam das demais leis de efeitos concretos no tocante ao parâmetro histórico-interpretativo, na medida em que não se dissociam de um determinado contexto cultural, axiológico e institucional que lhes motivou o nascedouro.
3. Conclusão
Conclusivamente, com base em suas peculiaridades conceituais e à luz da jurisprudência do STF sobre o tema, pode-se dizer que não se faz possível o controle de constitucionalidade das leis-medida com fulcro na Constituição atualmente vigente, mas apenas naquela vigente à época de sua edição. Tais considerações devem ser levadas em conta quando do controle de constitucionalidade por meio da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental, já que esta modalidade de ação inaugura no ordenamento jurídico pátrio a possibilidade de controle abstrato de constitucionalidade de atos normativos anteriores à Constituição.[7]
Notas:
[1] Voto proferido pelo Ministro Relator Eros Grau na ADPF n. 153/DF, pub. no DJe 145, divulgação 05/08/2010, publicação 06/08/2010, ementário 2409-1.
[2] Idem
[3] STF, ADI 3.573/DF - DISTRITO FEDERAL. Relator(a): Min. CARLOS BRITTO Relator(a) p/ Acórdão: Min. EROS GRAU Julgamento: 01/12/2005. Órgão Julgador: Tribunal Pleno, DJ 19-12-2006.
[4] ADI 2057 MC / AP – AMAPÁ. Relator(a): Min. MAURÍCIO CORRÊA, Julgamento: 09/12/1999, Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Pub no DJ 31-03-2000.
[5] Cf. nesse sentido, na ADI 2925, onde a corte discutiu se a lei orçamentaria 10.640/2003, que determinou a desvinculação de parte das receitas a serem arrecadadas com a CIDE Combustíveis seria constitucional, onde a corte decidiu que no caso especifico a norma teria densidade normativa abstrata suficiente para ser objeto de controle concentrado de constitucionalidade.
[6] ADI 4048 MC / DF - DISTRITO FEDERAL. Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Julgamento: 14/05/2008, Órgão Julgador: Tribunal Pleno. Pub. no DJe-157 DIVULG 21-08-2008.
[7] CUNHA JR, Dirlei da. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Capítulo publicado em Ações Constitucionais. Organizador: Fredie Didier Jr. Salvador: Jus Podvm, 2012, p. 615-616.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da Uniao. Pos-graduado em Direito Publico pela Anhanguera/UNIDERP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: PAZ, Samuel Mota de Aquino. Controle Abstrato de Constitucionalidade das Leis-medida Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 fev 2014, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38418/controle-abstrato-de-constitucionalidade-das-leis-medida. Acesso em: 27 dez 2024.
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