Sumário: 1. Introdução. 2. Breve histórico do advento dos direitos fundamentais. 3. Os direitos fundamentais e suas “gerações”. 4. A globalização e a internacionalização da proteção aos direitos fundamentais. 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Abordar o tema dos direitos humanos fundamentais implica, necessariamente, discutir uma certa concepção do homem. Por essa razão, os autores liberais, os autores marxistas, os autores do multiculturalismo ou os autores do pós-modernismo jamais chegaram a consenso algum, visto que cada um deles parte de uma premissa antropológica diferente. De fato, para definir o que é o direito do homem, há que se saber, antes de mais nada, o que é o próprio homem. Daí não ser possível atingir um consenso sobre o que sejam os direitos humanos, tendo em vista que tal concepção variará forçosamente conforme o tempo, o lugar e o estágio de civilização alcançado por determinado grupo social. Trata-se, com efeito, de um dos temas mais sensíveis do ponto de vista da filosofia: o homem e a natureza humana.
A temática dos direitos fundamentais é relativamente recente na história da Humanidade. A construção da teoria dos direitos fundamentais remonta ao século XVIII, com a Revolução Gloriosa na Inglaterra, reaparecendo com intensidade, um século mais tarde, com as Revoluções Francesa e Americana, sob a influência do Iluminismo. Antes disso, porém, é possível remontar no tempo para buscar uma “pré-história” dos direitos fundamentais.
2. BREVE HISTÓRICO DO ADVENTO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Não se mostra razoável falar em direitos fundamentais em Roma ou na Grécia Antiga. Trata-se de conceito absolutamente estranho ao pensamento político daquela época. No entanto, é possível localizar alguns institutos já existentes na Antiguidade que influíram na formação do conceito moderno de direitos fundamentais.
De fato, na Antiguidade Clássica, em certos autores gregos, vê-se uma certa preocupação com o homem. Os sofistas são um bom exemplo dessa preocupação. No século VI a.C, um sofista chamado Protágoras formulou a célebre frase segundo a qual "O homem é a medida de todas as coisas". Aliás, a disputa de Sócrates com os filósofos sofistas se baseava no fato de que Sócrates afirmava que havia uma verdade absoluta, ao passo que os sofistas defendiam o discurso, a argumentação, a ideia de que não há uma verdade absoluta. O que há é o ser humano. Logo, já na filosofia sofista vê-se uma espécie de “embrião” da concepção de direitos humanos.
Nos filósofos estoicos, também podemos encontrar uma fonte, ainda que remota, dos direitos humanos. Os estoicos manifestavam uma preocupação muito grande com a Humanidade e diziam que todos os homens compartilhavam a mesma natureza. Estoico famoso, o imperador Marco Aurélio foi um grande pensador.
Já no período medieval, o foco no homem como centro do universo foi perdido. Ainda há no advento do Cristianismo uma luz, na medida em que o Genesis preconizava a noção do homem feito à imagem e semelhança de Deus, o que, em tese, valorizaria a importância do homem. Apenas a partir do século XI é que essa temática vai ser retomada a partir das discussões sobre o direito de resistência, mas era uma visão bem diferente. Com efeito, começou-se a conceber a existência de certos privilégios, que deveriam constituir limites ao "poder estatal" (entre aspas, porque à época não existia o Estado tal como o concebemos hoje). De fato, na Idade Média, formou-se o costume segundo o qual, ao ser coroado, o rei fazia um juramento (o juras et libertates), comprometendo-se perante Deus a não agir despoticamente e a respeitar as prerrogativas e os privilégios (a palavra “direito” ainda não era usada) da sua gente. Esse conceito cristalizou-se num documento que muitos consideram até hoje ser a primeira constituição escrita: a Magna Carta inglesa de 1215. Importa notar que a Magna Carta não valia para todo cidadão. Com efeito, foi concebida originalmente como documento destinado apenas a certos estamentos: à nobreza e ao alto clero. A Magna Carta só começou a ser reconhecida como fonte de direitos para todo o povo pela doutrina de um jurista inglês (Lord Eduard Colk) datada do início do século XVII. É inquestionável, porém, que aquele documento histórico continha (e contém) normas da mais alta relevância para a formação da cultura jurídica moderna: a origem do devido processo legal (a regra do "the law of the land"), o princípio da legalidade (inclusive o da legalidade tributária - "no taxation without representation"), o princípio do juiz natural, entre outros.
No século XVII, foram elaborados outros documentos constitucionais ingleses, estes sim de caráter geral: o Bill of Rights Act, o Habeas Corpus Act, o Petition of Rights - os três documentos mais famosos do século XVII.
Sem embargo, nada disso pode ser considerado como direito fundamental ou direito humano, já que não prevalecia ainda a ideia de pessoa (que é uma concepção moderna). A personalidade estava ligada ao papel que cada pessoa desempenhava na sociedade. A visão de mundo prevalecente na época era o organicismo, que significava que o ser humano era visto tão-somente como um órgão do todo. O importante era o todo. A concepção organicista estava ligada à ideia de que órgãos diferentes do corpo humano desempenham funções diferentes. Alguns seriam mais nobres e importantes do que outros...
Tal visão de mundo não era nada antropocêntrica, pois não punha o homem no centro. O centro era a coletividade. A ruptura desta visão só viria a ocorrer na Era Moderna, por uma série de fatores, tais como a quebra da unidade religiosa (com a eclosão da Reforma), o advento do método científico e a valorização da razão em detrimento do misticismo. Em realidade, a consagração dos direitos humanos só se tornará viável – primeiro, na filosofia e, em seguida, no cenário jurídico - a reboque de um movimento muito mais profundo e muito mais amplo, que foi o Iluminismo.
Esse movimento filosófico tinha como premissa fundar todo o conhecimento humano na razão e criar um mundo antropocêntrico, um mundo cujo centro fosse o homem. Além disso, veio para questionar o modelo de governo então vigente: o Estado Absolutista, fundado na Teoria do Direito Divino, que sustentava que o poder político do monarca deitava raízes na própria vontade de Deus. De fato, com os iluministas, surge a ideia de que o Estado e a sociedade não eram uma realidade preexistente às pessoas. Defendiam, com isso, a concepção segundo a qual as pessoas é que decidiam formar um Estado, isto é, o Estado existia por causa das pessoas. Desta forma, passou-se a considerar que, para proteger o indivíduo (que voltou a ser visto como o centro de tudo), era necessário limitar o poder do Estado. Portanto, os direitos humanos surgem fundamentalmente para limitar o despotismo estatal, uma vez que, para os teóricos iluministas, o primeiro adversário dos direitos seria o próprio Estado Absoluto. Assim, o modelo de direitos fundamentais que se edifica no século XVIII é o modelo de direitos como mecanismo de contenção dos governantes em proveito da liberdade dos governados, os chamados direitos negativos.
3. OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E SUAS “GERAÇÕES”
Existem basicamente duas técnicas de proteção dos direitos fundamentais: uma técnica institucional - que está ligada à definição de competências e à separação de poderes, constituindo um arranjo institucional do Estado engendrado para conter o poder em benefício da liberdade. E o modelo de uma zona de imunidade pessoal oponível em face do poder e dos governantes.
Nesse modelo liberal inicial, nota-se uma diferença significativa entre as visões francesa, americana e inglesa, que constituem os três contributos mais importantes (um século depois viria a visão alemã). Na concepção inglesa, os direitos estavam ligados às tradições, considerando-se que eram direitos desde sempre presentes na sociedade, não havendo uma visão de ruptura com o mundo antigo, mas sim de resgate de tradições já ali presentes. Esse modelo desembocou no constitucionalismo costumeiro inglês. O modelo francês era o modelo do racionalismo extremo (certamente o mais influenciado pela ótica iluminista), afirmando que se deveria romper com o passado e desconfiar das tradições. O marco dessa visão é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Na visão americana, houve uma mesclagem dessas duas visões anteriores, ou seja, uma mistura entre tradição e cultura com um ingrediente muito importante: no modelo francês, o sujeito histórico da promoção dos direitos era o parlamento, já que os direitos seriam constituídos através das leis, sendo que as constituições serviriam como meras orientações. Entendia-se que o legislador não violaria os direitos, pois ele seria o garante desses direitos (daí surge o modelo de legicentrismo francês); já no modelo americano, não existia, a princípio, nenhuma confiança no legislativo, já que tinham como referência o legislativo inglês, visto como um mecanismo de opressão das colônias americanas. Afirmava-se – e aqui está a monumental importância do constitucionalismo americano para o mundo - que se deveriam criar mecanismos de proteção dos direitos fundamentais inclusive frente às maiorias de cada momento: é o caráter contramajoritário dos direitos, conferindo um papel mais relevante ao Poder Judiciário na tutela dos direitos contra eventual arbítrio do Poder Legislativo.
Nascem, então, os primeiros direitos fundamentais, chamados de "direitos de primeira geração", que consagram as liberdades públicas e estabelecem limites para a atuação do poder estatal. São direitos cuja prestação consiste, via de regra, em uma abstenção por parte do Estado. Como exemplos clássicos, podem ser mencionados: a liberdade de religião (o Estado não escolhe a religião da pessoa e não persegue ninguém pela sua crença religiosa); a liberdade de Imprensa (o Estado não censura a livre manifestação dos meios de comunicação); a liberdade profissional (ao Estado não cabe definir a profissão de ninguém e esta não é definida pelo nascimento).
A visão que se tinha era a do Estado como um inimigo tendencial dos direitos do homem. Sustentava-se que, limitando-se o poder do Estado, preservava-se o homem. O que correspondia, do ponto de vista ideológico, ao liberalismo econômico, à fé no Estado mínimo - quanto menos Estado, mais os direitos do homem seriam respeitados. Esse liberalismo, não só político como econômico, engendrou o capitalismo. De fato, dificilmente teríamos assistido ao nascimento do modo de produção capitalista da forma como nós hoje o conhecemos não fosse a garantia da propriedade, a proclamação da igualdade formal das pessoas com a abolição dos privilégios estamentais, a racionalização dos direitos que vinha da abolição dos resquícios estamentais feudais e a contenção do poder dos monarcas absolutos, que asseguraram a segurança jurídica necessária para o tráfico mercantil. Esse modelo individual, cujo grande símbolo foram as codificações do século XIX, sedimentou as “regras do jogo” e possibilitou o florescimento do capitalismo.
Logo, a preocupação maior dos pensadores ditos liberais era a de limitar o poder do Estado. E para atingir tal desiderato, lançou-se mão de duas técnicas diferentes: a primeira foi a garantia de direitos concebidos como limites intransponíveis para a atuação do Poder Público: barreiras que deveriam imunizar a autonomia individual contra a ação do Estado. Na própria estruturação do Estado, foram arquitetados mecanismos de contenção do poder: separação dos poderes (permitindo que o poder freie o próprio poder) e federalismo (que permite a aproximação do poder do cidadão, que passa a melhor controlar a atuação do governante).
Além disso, até então, analisavam-se as relações políticas sob a perspectiva ex parte principe (quer dizer, a partir do príncipe, a partir de quem está no poder). Com o advento da concepção liberal, inverte-se a ótica sob a qual se analisavam as relações políticas e passa-se a enxergar tais relações ex parte populi, partindo da premissa do sujeito ao poder. Desloca-se o eixo do poder. O poder passa a ser concebido como um instrumento que serve a quem a ele está sujeito. Assim, o titular do poder é o povo, e não mais o príncipe. Ressurge a ideia de democracia, uma noção surgida no período axial grego, fase em que a civilização grega despontou, e que vai do século VI. a.C. até o século I d.C.
No entanto, nesta fase, ainda se verificava uma contradição insolúvel, uma vez que, apesar da abolição dos privilégios estamentais, da proclamação da igualdade formal entre os cidadãos, os direitos políticos ainda só eram reconhecidos para a burguesia. Historicamente, não é correto colocar os direitos políticos ao lado dos direitos individuais, pois os direitos políticos só viriam a se universalizar no século XX, com o reconhecimento do direito de voto e participação a grupos de indivíduos que antes estavam excluídos do processo político, tais como as mulheres, os trabalhadores pobres etc. Os direitos políticos são contemporâneos aos direitos sociais, e não aos direitos individuais...
Portanto, no âmbito desses direitos ditos de primeira geração, já havia uma tensão perceptível. Daí a famosa discussão entre Rousseau e Benjamin Constant: Rousseau posicionava-se nitidamente contra a ideia de direitos individuais e liberdades públicas. Ele dava ênfase completa aos direitos políticos e afirmava que o importante é a soberania popular. Por sua vez, Benjamin Constant sustentava que essa era a liberdade dos antigos (Grécia) e dava ênfase ao espaço público. A liberdade dos modernos seria criar um espaço impenetrável pelo Estado, impedindo-o de molestar o exercício de certos direitos.
Como adiantamos, a garantia desses direitos individuais e políticos continha o germe de uma ruptura, pois essas liberdades públicas constituíam o solo sobre o qual floresceu o capitalismo. Capitalismo pressupõe liberdade jurídica, pressupõe o mínimo de liberdade (liberdade mercantil). Para que uma economia de mercado possa se desenvolver, é preciso que existam certas normas, certas abstrações, que garantam a estabilidade e a previsibilidade das relações jurídicas (princípio da legalidade, por exemplo). Com a ascensão da burguesia como classe política e econômica dominante, o capitalismo foi se exacerbando e chegou ao “capitalismo selvagem”, com o apogeu da Revolução Industrial. Vigia o constitucionalismo liberal, que garantia plena liberdade econômica, mas o modelo de produção daí advindo só aprofundou as desigualdades materiais e a situação de miséria das massas trabalhadoras. Percebeu-se que a “mão invisível do mercado” não solucionava estes problemas...
Nesse cenário, foram, então, surgindo críticas mais contundentes a esse constitucionalismo liberal, que tinha no “laissez faire”, no absenteísmo estatal, um de seus pilares. Críticas radicais, como aquela formulada por Karl Marx, que, em sua obra sobre a questão judaica, afirma que as liberdades propugnadas pela Revolução Francesa são um artifício, um manto para cobrir e dar legitimidade a uma dominação da burguesia sobre o proletariado. Ele sustenta que essas liberdades eram apenas formais, e que o que se desejava eram liberdades materiais, as quais só poderiam existir em uma sociedade sem classes, onde não houvesse dominação. Houve também críticas mais suaves, como a da Igreja Católica, que, no final do século XIX, publicou a famosa encíclica Rerum Novarum, atacando a exacerbação do capitalismo, o hedonismo e o consumismo que aquilo provocava. Defendia a ideia de que o Estado deveria intervir no domínio econômico, usando, pela primeira vez, a expressão hoje tão popularizada: justiça social.
Temos aqui duas realidades que devem ser levadas em consideração: de um lado, a extensão paulatina do direito de voto a parcelas cada vez maiores da população (ainda uma consequência da consagração positiva dos direitos de primeira geração) fez com que as demandas da população, inclusive das camadas mais pobres, pudessem ser canalizadas para o campo jurídico. De outro lado, a eclosão da Revolução Russa fez com que os governantes ocidentais percebessem que o estado de insatisfação social com as condições de vida em seus países, caso não apaziguado, poderia levá-los pelo mesmo caminho dos russos. A partir de então, foram fazendo concessões, atenuando os rigores do capitalismo, dando origem assim ao Estado do Bem-Estar Social, que impunha a consagração de um novo tipo de direitos. Direitos que exigiam uma intervenção maior do Estado no cenário econômico e no cenário social e que dependiam de um Poder Público mais ativo, menos absenteísta: saúde, educação, previdência (entre outros) passaram a fazer parte dos direitos fundamentais do cidadão.
Ademais, o Estado começa a interferir também no âmbito das relações privadas. Até então, numa visão puramente clássica, a opressão partia do Estado e o homem, deixado à sua própria sorte, teria assegurado seu caminho para a felicidade. Segundo tal concepção, ao Estado não caberia se imiscuir nas relações privadas. Essas relações eram disciplinadas sobretudo pelo Código Civil, que se assentava naqueles pilares da igualdade abstrata entre as partes. Mas o Estado, num determinado momento, passa a intervir nessas relações para proteger o mais fraco do mais forte, sabendo que a opressão também campeia na relação entre particulares (mercado). Surgem os direitos trabalhistas, o dirigismo contratual, as normas de direito privado de natureza cogente que impõem limites para a atuação dos atores de mercado, tudo isso em razão dessa nova concepção que germinou conjuntamente com a consagração dos chamados direitos de segunda geração: os direitos econômicos e sociais.
Com isso, ocorre um fenômeno de alteração de paradigma na relação do Estado com os direitos fundamentais. Se, no Estado Liberal, o adversário dos direitos fundamentais era o próprio Estado, no Estado Social o Estado passa a ser um agente de promoção dos direitos, sendo, muitas vezes, um instrumento necessário para a afirmação dos mesmos. Se, no modelo do Estado Liberal, os direitos eram abstenções, no Estado Social os direitos serão também direitos a ações, a prestações estatais, e isso mesmo nos direitos individuais. No modelo do Estado Liberal, a liberdade era vista como a ausência de constrangimentos e o foco eram as liberdades econômicas. Já no modelo do Estado Social, o conceito de liberdade vai se enriquecer, a ideia de liberdade exigirá pré-requisitos para que a ação individual se torne possível e a ideia de autonomia individual será enriquecida. Se a igualdade no Estado Liberal era puramente formal, a igualdade no Estado Social vai incorporar uma dimensão substantiva, a igualdade real. A solidariedade ganha um componente jurídico no Estado Social.
Os direitos de segunda geração, de alguma maneira, chocam-se com os direitos de primeira geração. Por quê? Os direitos de primeira geração pedem menos atuação do Estado a fim de garantir plena liberdade aos indivíduos; já os direitos de segunda geração impõem mais ação do Estado e limitam a liberdade (liberdade econômica, liberdade nos contratos etc), surgindo daí uma clivagem ideológica: para os teóricos marxistas, as liberdades públicas (direitos de primeira geração) não são relevantes, pois o que importa é a liberdade real das pessoas, que decorre de suas condições de vida, de subsistência, privilegiando os direitos sociais. Por outro lado, o bloco ocidental adotava discurso diametralmente oposto, segundo o qual o Estado demasiadamente grande geraria opressão, pois é ineficiente e impede o progresso do indivíduo.
Aquela visão da lei como centro vai cedendo espaço à visão da constituição como centro. As constituições passaram a conter grande quantidade de material axiológico, que se irradia para outros campos. O fortalecimento, nos países ocidentais, da jurisdição constitucional e a compreensão da constituição como centro do sistema levaram os direitos fundamentais para o dia a dia dos tribunais. No Brasil, essa visão dos direitos fundamentais desaguou na Constituição de 1988.
Devemos destacar que o surgimento dos novos direitos (de índole econômica e social) não é incompatível com a existência dos direitos preexistentes. Assim, a visão (que prevaleceu durante o período da Guerra Fria) segundo a qual se deveria escolher entre igualdade e liberdade mostra-se de todo equivocada. Ou seja, os direitos individuais e os direitos sociais são complementares, eles se retroalimentam e se potencializam reciprocamente. Os direitos individuais, de certa maneira, são uma garantia para os direitos sociais, e o contrário também acontece, destacando-se que, para usufruir das liberdades, é preciso desfrutar de um mínimo de condições de subsistência. Existe um mínimo sem o qual nem mesmo a fruição das liberdades se torna possível...
Observe-se que é impróprio falar de uma geração superando outra geração, dos novos direitos como sendo melhores ou mais importantes que os direitos anteriores. Aliás, a classificação dos direitos fundamentais por gerações é muito criticada por parte da doutrina, visto que pode induzir a uma compreensão equivocada. O direito ao meio ambiente nada tem de superior ao direito ao salário, que não tem nada de superior à liberdade de expressão... Não há que se falar aqui em hierarquia. O critério de classificação por gerações é meramente cronológico e refere-se apenas ao momento de positivação desses direitos.
A partir de meados da década de sessenta do século XX, começa-se a falar de outro tipo de direitos, que, na falta de termo melhor, podemos chamar de direitos de terceira geração.
Nessa última fase, o foco está na titularidade dos direitos coletivos, que são aqueles compartilhados por todo o grupo social (ou parte significativa dele), e não apenas por pessoas individualmente identificáveis. Em outras palavras, estão relacionados com direitos que, por sua natureza, não possuem titular exclusivo, mas são compartilhados pela coletividade, de tal sorte que não haveria como reconhecê-lo para um com a exclusão dos demais. Os exemplos mais notórios são o direito a um meio ambiente sadio e equilibrado, o direito à preservação do patrimônio histórico e cultural de determinado país, o direito ao desenvolvimento de um povo etc. Inclusive, essa geração de direitos permite a ideia da existência de titulares outros além dos indivíduos presentes, falando-se em direitos das gerações futuras.
O grande elemento complicador dessa nova “geração” de direitos se dá ao nível de sua efetividade. Sem garantia, o direito não é quase nada, constituindo mera proclamação retórica. De fato, os instrumentos processuais tradicionalmente estabelecidos pelos códigos partiram de premissas puramente individualistas. Tinham como eixo relações entre partes determinadas. A imagem arquetípica é o direito das obrigações: credor e devedor, partes perfeitamente identificadas. Toda a estrutura do processo foi construída a partir de pilares individualistas. Institutos processuais como interesse de agir, legitimidade de agir, limites da coisa julgada, tudo foi construído a partir dessas premissas individualistas.
Portanto, a fim de se tutelar essa nova categoria de direitos, é preciso mudar a mentalidade e criar novos instrumentos de tutela. Em nosso país, novos instrumentos de tutela foram criados (veja-se a Lei da Ação Popular ou da Ação Civil Pública), mas pensamos que a mentalidade ainda não mudou como deveria. Essa nova fisionomia do processo tem que levar em consideração situações onde existem devedores ou credores indeterminados, situações que não são equiparáveis àquelas situações privadas típicas e, para isso, é preciso que o juiz ou o operador do direito, de um modo geral, se dispa de certos preconceitos enraizados.
4. A GLOBALIZAÇÃO E A INTERNACIONALIZAÇÃO DA PROTEÇÃO AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Um outro aspecto referente à evolução dos direitos humanos deve ser assinalado: ele diz respeito ao fenômeno da globalização. Os direitos fundamentais nascem, sem exceção, como aspirações postas no plano social, sendo posteriormente positivados e escritos no ordenamento jurídico dos Estados (em regra, através de suas constituições). O processo de globalização também representou uma influência positiva sobre a proteção dos direitos fundamentais, já que a tendência globalizante abarcou parâmetros ligados à proteção em face do arbítrio do Estado. Com efeito, até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, prevalecia no âmbito do Direito Internacional o princípio da soberania absoluta dos Estados (concepção que deita raízes no Pacto de Westfália - século XVII). Assim, entendia-se que o que cada Estado fizesse internamente com os seus cidadãos, ainda que representasse grave violação aos direitos humanos, era questão que só dizia respeito a esse Estado, decorrendo diretamente da soberania a ele reconhecida na ordem internacional. Todavia, o grau de atrocidades cometidas pelo regime nazista gerou uma ruptura nessa concepção. A partir dali, surge como marco a "Declaração Universal dos Direitos do Homem" (1948) e inicia-se um processo de elaboração de declarações internacionais, pelas quais os Estados reconhecem a sua vinculação aos direitos humanos. Os direitos humanos passam a ser vislumbrados como limite para o Estado também na ordem internacional.
Cabe ressaltar que a Declaração de 1948 não era norma jurídica, uma vez que não foi elaborada como tratado, mas assumiu a força de norma jurídica pelo costume. Posteriormente, no ano de 1966, foram elaboradas duas normas de fundamental importância no processo de universalização dos direitos fundamentais: a Convenção sobre os Direitos Civis e Políticos e a Convenção sobre os Direitos Sociais e Econômicos, estas sim ius cogens do direito internacional. Além disso, nos planos regionais, assistimos a um fenômeno semelhante: a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950) e o Pacto de São José de Costa Rica (1969).
Assim, de acordo com essa nova concepção, a invocação do princípio da soberania não mais serve de fundamento válido para que o desrespeito aos direitos humanos fundamentais reste impune. Os direitos fundamentais estão acima da soberania. O Estado é meio; o fim é o homem. Não se pode usar a soberania contra o homem. Avanços foram feitos, mas ainda resta muito a fazer. É um processo lento. Por exemplo, ainda não há em nível mundial uma corte de direitos humanos: a Corte de Haia só julga ações entre Estados. É verdade que, em planos estritamente regionais, já temos alguns avanços: o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (Estrasburgo) e a Corte Interamericana na Costa Rica.
Da mesma forma, os direitos humanos vão se incorporando à política (veja-se o caso da Turquia, que se vê obrigada a aprimorar o respeito aos direitos humanos como condição de adesão à União Europeia). A sociedade internacional começou a ser mais exigente e os governos passaram a ouvir a chamada “opinião pública internacional”, a qual encontra eco na rede mundial de computadores (Internet) e na imprensa livre internacional, tudo isso contribuindo para a universalização dos direitos humanos. Peguemos o caso do Brasil: signatário do Pacto de São José de Costa Rica desde 1992, mas inicialmente refratário à ideia de submeter-se à Corte Interamericana de Direitos Humanos, passou a aceitar a jurisdição daquela Corte em1998.
Uma interessante questão relacionada à internacionalização dos direitos fundamentais diz com o debate interminável entre os universalistas e os multiculturalistas. De fato, nesse tema verifica-se a existência de duas correntes principais: a primeira, de tendência naturalista, sustenta que o homem é um só, independentemente da origem ou do meio onde vive. Para ela, a cultura, embora exerça relevante influência sobre o comportamento e os valores do homem, não é o que define a natureza humana. Já os chamados multiculturalistas afirmam que os direitos humanos possuem uma matriz cultural e criticam o fato de que os direitos que a comunidade internacional tenta impor possuem uma matriz de origem europeia (advinda do Iluminismo) e que sociedades que nenhuma relação tiveram com o movimento do Iluminismo (Oriente Médio, China, Sudeste Asiático etc.) devem ser tratadas de forma distinta. Para essa corrente de pensamento, a universalização dos direitos humanos apresenta um lado repressor e pode ser identificada como uma espécie de neocolonialismo, de colonialismo cultural, pois que tenta impor valores eminentemente ocidentais a sociedades que não partilham daquela tradição comum.
Seja como for, a realidade é que o argumento multiculturalista, muito embora nobre na sua aspiração de respeitar as diferenças culturais entre os povos, tem servido, no mais das vezes, como escudo para aqueles Estados que violam em massa os direitos humanos e que relutam em se sujeitar ao controle da comunidade internacional.
O fato é que o problema da universalização da tutela dos direitos humanos apresenta uma série de dificuldades práticas, sendo uma delas a heterogeneidade cultural existente no mundo. Uma outra barreira são os mecanismos de tutela – como dissemos, não há hoje uma força internacional que obrigue determinado Estado a observar de forma cogente os direitos fundamentais. Hoje já se concebem as chamadas intervenções humanitárias, mas ainda constata-se uma seletividade muito grande em relação a tais intervenções. Exemplificativamente, sabe-se que os Estados Unidos sempre toleraram os abusos cometidos pelas ditaduras militares na América Latina e não hesitaram em intervir militarmente quando seu interesses geopolíticos e econômicos se viram ameaçados (Cuba em 1961, Granada em 1984 etc.).
5. CONCLUSÃO
Por todo o exposto, verifica-se que a trajetória de consagração dos direitos humanos fundamentais não foi linear nem no tempo, nem no espaço, pois apresentou - e ainda apresenta! - variações quanto ao seu conteúdo e à velocidade de seu reconhecimento e proteção nos mais diversos países. Ainda há muito a fazer, mas parece que o paulatino fenômeno da universalização verificado nas últimas décadas torna o futuro alvissareiro nessa área.
BONAVIDES, Paulo. Direito Constitucional, 8ª edição. São Paulo: Malheiros, 1999
FILHO, Manoel Gonçalves Ferreira. Direitos Humanos Fundamentais, 14ª edição. São Paulo: Saraiva, 2012
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 13ª edição. São Paulo: Malheiros, 1997
Procurador Federal. Coordenador da Coordenação para Assuntos de Consultoria da Procuradoria Federal na Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOSQUEIRA, Bruno Alves. Direitos fundamentais: breves anotações sobre suas origens históricas e filosóficas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 25 fev 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38469/direitos-fundamentais-breves-anotacoes-sobre-suas-origens-historicas-e-filosoficas. Acesso em: 23 dez 2024.
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