1- RESUMO: O presente ensaio pretende demonstrar as diferenças e semelhanças entre o civil e o comom law, analisando-se os instrumentos utilizados por ambos para a obtenção de segurança jurídica. Destaca-se, ainda, a concepção errônea dos efeitos vinculantes no modelo proposto por parte da doutrina nacional, cuja lição de aplicação silogística dos precedentes está dissociada do conceito pós-positivista de sentença (civil law) e da Doutrina do Stare Decisis (common law). Por fim, dá-se ênfase ao importante papel a ser desempenhado pelos juízes para que não haja massificação das decisões.
Palavras-chaves: Civil e comom law – efeitos vinculantes - precedentes – silogismo – pós-positivismo.
2- INTRODUÇÃO
Acirram-se na doutrina as discussões sobre o modelo processual que deve ser adotado para que seja garantida a celeridade processual, a igualdade entre os jurisdicionados, a coerência e a previsibilidade do ordenamento jurídico, em especial das decisões judiciais.
Realmente, soluções díspares de questões cuja essência seja a mesma, num mesmo momento histórico, retiram do ordenamento jurídico a segurança que dele se espera como instrumento de regulação do tecido social.
O tratamento uniforme de todos os jurisdicionados constitui importante passo na estruturação das instituições, no alcance do equilíbrio econômico e na obtenção da paz social.
A grande questão que se coloca é como preservar a isonomia, mas ao mesmo tempo garantir previsibilidade às decisões judiciais, evitando-se a arbitrariedade e a insegurança?
Para alcançar esse objetivo, parte da doutrina processual, tem recomendado a adoção pelo direito processual brasileiro - que pertence ao sistema da civil law -, de institutos próprios do comom law, em especial o respeito aos precedentes.
Tal postura motivou o legislador a introduzir certos institutos no direito brasileiro para dotar de efeito vinculante as decisões dos Tribunais, especialmente o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça.
Dentre os institutos novos introduzidos em nosso sistema processual destacam-se: a súmula vinculante, a repercussão geral, a técnica dos recursos repetitivos, o julgamento monocrático do relator e a rejeição liminar de demanda repetitiva.
No presente estudo, procuraremos demonstrar que o fato de do modelo brasileiro pertencer ao civil law nunca impediu que os precedentes fossem respeitados no exercício do poder jurisdicional. E mais, que as mudanças encetadas pelo legislador em nada se assemelham ao modelo do stare decisis contemplado pelo common law, traduzindo, em verdade, modelo processual autoritário e incompatível com o estado democrático de direito.
3- DESENVOLVIMENTO
3.1.Breve histórico da evolução do civil law e do common law
O common law originário dos países anglo-saxões não possui data definida do seu nascimento. É que esse sistema abarca um desenvolvimento ininterrupto, acumulando ao longo dos séculos as diretivas essências à resolução do caso concreto.
Pode-se, contudo, indicar o direito inglês como seu idealizador. Na Inglaterra, nunca houve a adoção explicita da premissa ou da regra de que o julgamento de hoje deveria se basear no de ontem e nortear o de amanhã. Na verdade, a origem e o próprio significado do common law advém dos costumes gerais, geralmente observados pelos ingleses.
A evolução do common law pode ser dividida em três fases significativas. Na primeira fase, entendia-se que os juízes não criavam o direito, apenas reconheciam sua existência, diante da casuística que era levada a seu conhecimento. Vigora a teoria declaratória, pois o juiz declarava um direito preexistente (sob forma de costume), mas usa decisão era pressuposto para que o costume reconhecido fosse tratado como direito, ou seja, só o costume reconhecido judicialmente constituía direito.
Numa segunda fase, as decisões judiciais passaram, elas mesmas, a constituírem fontes imediatas do Direito, ao lado da equidade e da legislação. Trata-se da doutrina dos precedentes que reconhecia certa força obrigatória a uma linha de decisões anteriores sobre a matéria objeto de discussão.
Finalmente, em sua última e terceira fase, o common law evoluiu para a doutrina do stare decisis em que um único caso é tratado como obrigatório para os demais que lhe forem posteriores e que tenham a mesma essência.
É na metade do século XIX que se reconhece um enrijecimento da doutrina do stare decisis. “No caso Beamish v. Beamish se estabeleceu expressamente a regra de que a House of Lords estaria vinculada pelos seus próprios precedentes.” [1]
O civil law, originário dos países de cultura romano-germânica, também pode ser dividido em três fases evolutivas. Em sua primeira fase, caracterizada pela inexistência de um poder central que fosse capaz de ditar normas, o direito vivenciou um sistema duplo: costumes que eram respeitados e repetidos pelos indivíduos na esfera não conflituosa; costumes que eram descobertos e repetidos pelos juízes na esfera judiciária.
Aos poucos o reconhecimento judicial de certos costumes elevou-os a categoria da autoridade judiciária, destacando-os da concepção de meros costumes, afinal se costume pressupunha consenso, por que havia litigiosidade? Nesses termos, pode-se concluir que os costumes dependiam de sua confirmação por uma autoridade judicial.
Com o florescer de um poder central, representado pela figura do monarca, o civil law evoluiu para a adoção de regras abstratas destinadas a reger a vida em sociedade.
Destaca-se, como importante marco do primeiro passo dessa concepção, a tentativa de sistematização de textos romanos ocorrida em Bologna no século XI. Naquela oportunidade desenvolveram-se os métodos de interpretação – gramatical, retórico e dialético. Essa fase é tida como origem da jurisprudência e de reconhecimento da relevância da doutrina nos países de civil law.[2]
A queda da figura do monarca com a revolução francesa incutiu severas transformações ao modelo do civil law. Houve um deslocamento do poder do monarca para o povo. Foram identificadas as três funções do Estado, mas na tripartição de poderes criou-se um Poder Judiciário fraco, por absoluta desconfiança.
Dessa concepção é que se formou o brocardo “o juiz é a boca da Lei”. Ora se a lei contém a vontade do povo, desrespeitá-la significaria afrontá-lo, o que não se admitia. Daí a ideia de que ao juiz competiria a mera subsunção do fato à norma. Na excepcionalidade de conflito, obscuridade ou lacuna legal, o magistrado deveria, obrigatoriamente, apresentar a questão ao legislativo para que fosse realizada uma “interpretação autorizada”.[3]
A ideia de que a jurisprudência constituía fonte imediata do direito era impensável, a tal ponto que Robespierre proclamou: “a palavra jurisprudência deveria ser apagada da nossa língua”.[4] A lei não demandava maiores interpretações, cabendo ao juiz “encaixar” o fato ao mandamento legal.
Finalmente, pode-se destacar, uma terceira fase na evolução do civil law que consiste na superação do paradigma de que ao juiz compete descobrir a vontade da Lei, para a aceitação de que a interpretação do texto normativo consiste num ato de produção do próprio direito.
Como bem assinalou Abboud: “toda a interpretação é ao mesmo tempo aplicação que culmina no ato produtivo da norma, que, por sua vez, não pode corresponder ao texto normativo que representa seu programa de norma”. [5]
Como se pode perceber, ambos os sistemas têm o mesmo objetivo racional de gerar segurança ao jurisdicionado. O common law através da cultura jurídica de respeito aos precedentes, “porquanto sua consolidação é fruto da evolução histórica, política e filosófica de determinada comunidade (...) sua criação não é fruto de imposição legislativa”.[6] O civil law, por sua vez, pretende gerar segurança e previsibilidade através da isonomia e da disposição prévia em Lei do texto normativo.
3.2.Efeito vinculante no civil law e no common law.
No common law é inegável a vinculação dos juízes aos precedentes, sem que haja contudo imposição legal para tanto. Trata-se em verdade de verdadeira conquista cultural daquela sociedade. “A ideia de que os juízes ingleses possam não respeitar precedentes é tratada com estranhamento pela doutrina, simplesmente porque esse comportamento não ocorre”. [7]
E esse compromisso de respeito ao precedente, nos termos do stare decisis, era tão forte que passou a gerar graves inconvenientes, porque muitas vezes perpetuava regras injustas ou inconvenientes que geravam a estagnação do próprio direito e da vida em sociedade. Diversas vezes os juízes, a despeito de não concordarem com o precedente, não ousavam desrespeitá-lo, ainda que proferissem voto (opinion) no sentido de alterá-lo.
A ponto de The Lord Chancellor, em 26.07.1966, declarar que a House of Lords poderia modificar seus próprios precedentes se isso lhes aprouvesse mais correto, flexibilizando a rígida versão do stare decisis, que até então vigorava.
A decisão foi bem vista pela doutrina inglesa. Naquela oportunidade assentou Neil Mac Cormick: “inquestionavelmente, esta mudança removerá os piores defeitos da regra do stare decisis, na medida em que regras incompatíveis ou injustas poderão ser reconsideradas. Mas não se trata, de modo algum, de uma reforma fundamental: é o velho sistema, com o que tinha de pior, retirado”.[8]
A possibilidade de superação do precedente é tratada como overruling e significa a erosão normativa da regra nele contida. Ainda, nos EUA, admite-se o antecipatory overrruling, quando os juízes de instancias inferiores alteração a regra, antevendo a imensa probabilidade de sua alteração numa corte superior. Mas isso se deve advertir não se dá repentinamente. Em geral o overruling é gradual, se dá ao longo de vários anos, quando se percebe a incompatibilidade de uma regra de sofreu diversos distinguishing. Afinal, de que adianta uma regra geral se sua aplicação é excepcional?
No stare decisis, além do overruling, que importa na superação total da regra anteriormente posta, dispõe-se do distinguishing que permite a não aplicação ao caso concreto do precedente pelo juiz porque este não se amolda com aquele que foi anteriormente tratado. Veja-se que esta concepção muito se aproxima da ideia esposada por Friedrich Muller no sentido de que o texto normativo somente é compreensível quando estiver ligado ao âmbito normativo (elementos não linguísticos - realidade social) e ao programa normativo (elementos linguísticos do processo concretizador).[9]
Além disso, a identificação da regra (rule), que é tratada como precedente constitui árdua tarefa interpretativa, sujeita ao contraditório das partes. Com efeito, não é o dispositivo da decisão que é elevado a condição de precedente. O que vincula a atividade jurisdicional é a ratio decidendi (direito inglês) ou holding (direito norte-americano).
Ratio decidendi constitui a essência da regra. Pode estar expressa ou implícita na decisão, mas é elemento indissociável para a compreensão do resultado do julgamento. Pode significar tanto a razão para a decisão quanto a razão para decidir, abrangendo questões fáticas ou jurídicas. Quando inaugurar um preceito normativo porque o caso é inédito no âmbito jurisdicional é chamada de rule.
Difere do obiter dicta conjunto de argumentos contidos na motivação do julgado, mas que não constituem seus fundamentos não ensejando qualquer vinculação. Trata-se do que é dito de passagem. A verificação do obiter dicta em face da ratio decidendi se dá pelo método de retirá-lo do bojo do julgamento e analisar se, ainda assim, obter-se-ia ao mesmo resultado. Simples na teoria, mas de extrema dificuldade na prática, porque demanda análise profunda dos julgados que às vezes contam com um número expressivo de palavras e de possibilidades interpretativas do que realmente ensejou o resultado do julgamento.
No civil law a ideia de vinculação ao decidido no julgado sempre esteve adstrita, em sua concepção original, ao controle concentrado de constitucionalidade, através da ação direta de inconstitucionalidade, nos moldes propostos por Hans Kelsen.
Kelsen pregava a equiparação da atividade jurisdicional à atividade legislativa. Enquanto o Poder Legislativo confeccionava normas gerais, o Poder judiciário elaborava normas individuais. E, na declaração de inconstitucionalidade a equiparação se dá forma plena, pois anular uma lei é estabelecer uma norma geral, pois a anulação tem o mesmo caráter geral de generalidade de sua elaboração.
Ocorre, contudo, que essa visão kelseniana foi superada, com razão, em alguns pontos, mas nunca se deveria ter abandonado a concepção de que o efeito vinculante deve ser restringindo à declaração de inconstitucionalidade. E a razão é óbvia, a retirada de um texto normativo do ordenamento jurídico vincula a todos.
Em verdade, a introdução de técnicas originárias do controle difuso de constitucionalidade ao modelo de controle concentrado proposto por Kelsen, não levou em conta que o efeito vinculante, insito à declaração de inconstitucionalidade, não se coaduna com diversos tipos de decisões interpretativas, indo na contramão da própria distinção entre norma e texto normativo, pressuposto e razão de existência desses tipos de tutela jurisdicional.
Veja-se a interpretação conforme, por exemplo, o tribunal dentro de uma gama infindável de interpretações possíveis, em razão do caráter polissêmico do texto normativo, escolhe uma forma pela qual a interpretação do texto será constitucional. Ora, ao dotar de efeito vinculante essa decisão, tem–se que só essa interpretação é constitucional, as outras são rechaçadas, tidas como inconstitucionais.
Mas é possível esse exercício adivinhatório pelo Tribunal? Essa concepção não vai de encontro ao paradigma pós-positivista de decisão, para o qual os fatos que compõe o caso concreto integram a equação na tarefa de concretização da norma? É evidente que sim! Adiante, veremos que o mesmo erro está sendo cometido ao elevar ao status de precedente o julgamento de recursos repetitivos, os verbetes das súmulas vinculantes e a rejeições liminares das demandas repetitivas.
Em verdade, o que deve ser superado do positivismo legalista é a sua visão refratária do acesso hermenêutico ao direito, através do qual a interpretação deixa de ser um conhecimento meramente conceitual e passa a ser a experiência.[10] Nesta concepção o juiz deixa de ser apenas um investigador da vontade da lei e passa a ser, através da interpretação, elemento indispensável do processo de concretização do próprio direito.
Ao condicionar o Poder Legislativo como o único interlocutor da Justiça Constitucional, retira-se, do Tribunal Constitucional, a possibilidade de proferir sentenças interpretativas, reduzindo-o ao papel de mero legislador negativo.
Tal concepção não se amolda ao moderno papel a ser desempenhado pelo Poder Judiciário na esfera da justiça constitucional, através das sentenças chamadas interpretativas.
Em aprofundado exame da tipologia das decisões de inconstitucionalidade George Abbud traz a seguinte classificação[11]: 1- sentenças interpretativas em sentido estrito dividindo-se me: 1a- interpretação conforme à constituição ; 1b –arguição de nulidade sem redução do texto; 2- decisões manipulativas dividindo-se em: 2a – aditivas; 2b – substitutivas; 2c – declaração de inconstitucionalidade com pronúncia de nulidade; e 3- Limitativas: 3a – modulação de efeitos ex nunc; 3b - modulação de efeito pro futuro.
3.3.Supostos instrumentos de vinculação introduzidos no sistema brasileiro.
Ao que parece o legislador brasileiro adotou o dogma de que os institutos do civil law trazem como elemento indissociável a falta de previsibilidade e coerência das decisões, além de importarem grave afronta à isonomia. Criou-se a ilusão de que os institutos do common law, em especial a doutrina do stare decisis, constitui verdadeira tábua de salvação.
Em vista disso, introduziu-se no sistema brasileiro a súmula vinculante, a sistemática de julgamento de recursos repetitivos, a rejeição liminar de demanda repetitiva, aumentaram-se os poderes do relator e, ainda, propõe-se a objetivação do controle difuso de constitucionalidade.
Tudo, sob o argumento de que no Brasil os precedentes das cortes superiores não são respeitados, impondo-se sua obrigatoriedade através da força da Lei. Ocorre, contudo, que a sistemática proposta em nada se assemelha à doutrina do stare decisis, fugindo e muito de sua concepção oriunda do common law.
Na súmula vinculante autoriza-se que o Supremo Tribunal Federal defina a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre órgãos judiciários ou entre esses e a Administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questões idênticas.[12]
Na sistemática do julgamento de recursos repetitivos, o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça estão autorizados a decidir de uma só vez e para todos os outros casos, se determinada questão possui repercussão geral (requisito de admissibilidade do recurso extraordinário), ou, se determinada pretensão merece ser acolhida – quando se tratar de recurso especial.[13]
Na objetivação do recurso extraordinário, prega-se a extensão de institutos idealizados para o controle concentrado de constitucionalidade – transcendência dos motivos determinantes da decisão e inconstitucionalidade por arrastamento-, no controle difuso. Mais uma vez, institutos idealizados para a declaração concentrada de inconstitucionalidade são indevidamente transportados para o controle difuso e para todas as modalidades de sentenças interpretativas a ele inerentes.
Por fim, na rejeição liminar de demanda repetitiva, autoriza-se que o juiz de 1° grau, dispense a citação do réu e profira sentença, quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casso idênticos.[14]
3.4.Efeitos vinculantes no modelo proposto no Brasil e sua dissociação do conceito pós-positivista de sentença (civil law) e da Doutrina do Stare Decisis (common law)
Muitos propõem que o verbete da súmula vinculante incida de plano a todos os casos em que sua aplicação seja possível. Tratam a edição da súmula como a própria decisão que deve ser dada no caso concreto, o que efetivamente não se deve admitir.
É que a súmula vinculante constitui proposição normativa dotada de generalidade e abstração. Consubstancia, em verdade, o programa de norma idealizado para reger determinada matéria. Nessa condição, sua concreção depende do acesso hermenêutico do intérprete e do seu cotejo com o âmbito normativo, recorte da realidade social que o programa da norma criou par si como seu âmbito de regulamentação.
Essa tarefa impede a realização de mero juízo de subsunção, silogista, porque o juiz deve sempre trazer à baila os elementos não linguísticos para averiguar se naquela realidade incide o programa da norma.
E mais, a súmula vinculante não pode ser tratada como precedente, como pregam muitos doutrinadores. É que o precedente constitui ponto de partida na interpretação. Nele há profunda discussão do que é ratio decidendi e do que é obiter dictum. Aliás, o precedente não nasce com essa qualidade, é o futuro e a repetição de casso substancialmente idêntico, dentro de uma mesma realidade social, histórica e cultural que alçam uma decisão passada à qualidade de precedente judicial.
Respeitadas as opiniões em contrário, pretender qualificar a súmula vinculante como precedente significa ignorar séculos de construção doutrinária e jurisprudencial do common law. Ressalte-se, mais uma vez, o precedente constitui a evolução secular de um entendimento, ponto de partida da tarefa interpretativa e de concreção da norma, a súmula vinculante, no contorno que lhe pretendem imprimir, constitui entendimento relativamente novo sobre determinado tema, e que se apresenta como solução final e imediata, através de mero silogismo, para todos os casos aos quais ela poderia ser aplicada em tese.
O mesmo ocorre na sistemática de julgamento dos recursos repetitivos e na objetivação do recurso extraordinário. A superação do modelo positivista legalista, pelo acesso hermenêutico, que prega que o direito – o conteúdo da norma-, deva ser concretizado na singularidade de cada caso, diferenciando texto normativo e norma, impede a aplicação silogista do que foi decidido no julgamento do recurso representativo da controvérsia a todos casso assemelhados.
É claro que é extremamente válida a tentativa do legislador em dotar de coerência e previsibilidade o sistema processual. O que se questiona é forma pela qual a jurisprudência dos tribunais superiores e parte da doutrina querem imprimir ao instituto. O que representa verdadeiro retrocesso às conquistas do acesso hermenêutico ao direito.
Também não constituem precedentes no modelo do common law, porque nele o que menos importa é o resultado do julgamento. Como precedente importa ao common law as razões para decidir ou as razões para a decisão – ratio decidendi. Mais uma vez, confunde-se ponto de partida para a interpretação com ponto final de aplicação, porque no common law discute-se e muito se: 1- a regra que se pretende utilizar constituiu ratio decidendi no julgamento passado; 2- se estão presentes os mesmo elementos sociais, culturais e históricos que ensejaram a tomada daquela decisão.
Assim, não há como aplicar imediatamente o que se decidiu no julgamento de um recurso repetitivo ou num recurso extraordinário qualquer, de forma silogística, imediata.
Por fim, vemos certa teratologia na rejeição liminar de demanda repetitiva – art. 285-A, CPC-, já que vai de encontro à concepção de que a norma constitui o cotejo entre programa normativo e âmbito normativo. Em verdade, não existe questão unicamente de direito e sim essencialmente de direito, o que não elimina a necessidade de análise da realidade social. Ainda, é impossível tratar como precedente a decisão de um mesmo juízo, como se ele regulasse realidade apartada das demais, muitas vezes decididas de forma distinta, na sala ao lado, por outro juiz de outro juízo.
3.5.O papel dos juízes e a nova sistemática processual.
Mais uma vez, o futuro da cidadania e a concretização do Estado Democrático de Direito, está nas mãos da magistratura, em especial dos juízes de 1° grau de jurisdição e dos Tribunais estaduais.
A disparidade das decisões sobre uma mesma realidade essencialmente idêntica não pode ser motivo de retrocesso no acesso hermenêutico ao direito, muito menos distorção dos institutos do common law, munindo o Tribunais Superiores de poderes que beiram ao autoritarismo judicial.
Em verdade, nos parece que o problema encontra-se na cultura jurídica do país e na falta de estrutura do Poder Judiciário. Estes são os pontos chaves que demandariam profunda reflexão, mas que ficam relegados ao esquecimento.
Realmente, engatinhamos quando assunto é respeito às decisões sedimentadas pelos tribunais. Como bem observa Marinoni “supôs-se que os juízes não devem qualquer respeito às decisões passadas, chegando-se a alegar que qualquer tentativa de vincular o juiz ao passado interferiria sobre o seu livre convencimento e sobre a sua liberdade de julgar. (...) Imaginar que o juiz tem o direito de julgar sem se submeter às suas próprias decisões e às dos tribunais superiores é não enxergar que o magistrado é uma peça no sistema de distribuição de justiça, e, mais do que isso, que esse sistema não serve a ele, porém ao povo”.[15]
Além disso, no Brasil é frequente a alteração brusca da orientação dominante dos tribunais superiores, o que evidencia, sem sombras de dúvidas, que nosso problema não está no sistema processual, mas sim na própria cultura jurídica do país.
Ao magistrado cabe o importante papel de identificar-se como parte do sistema de decisão, respeitando as questões sedimentadas no passado, ainda que delas discorde pessoalmente. Se estão presentes os mesmos elementos históricos, sociais e culturais, da época em que foi proferida a decisão passada, há a necessidade de se repeitar sua ratio decidendi.
Está aberta, é claro, a discussão daquilo que constituiria obiter dictum e ratio decidendi. Ainda assim, o magistrado poderá utilizar o instituto do distinguishing que permite a não aplicação ao caso concreto do precedente pelo juiz porque este não se amolda com aquele que foi anteriormente tratado.
A utilização do overruling, em nosso sentir, demandaria grave violação a direito fundamental, hipótese em que o juiz estaria autorizado a decidir de forma diversa daquela que fundou o precedente.
O que não se pode admitir, sob hipótese nenhuma, é aplicação silogística das decisões dos Tribunais Superiores, porque isso importaria na violação do conceito mais singelo de Justiça.
Remonta ao século II, a definição de Ulpiano[16] no sentido de que justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi - justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu.
Não se pode perder de vista, que o precedente constitui um padrão normativo, e, portanto, deve ser cotejado com a realidade social em que se pretende aplicá-lo. O efeito vinculante, introduzido pelas recentes modificações no modelo processual brasileiro, não deve importar na aplicação silogística do dispositivo daquelas decisões aos demais casos assemelhados.
Ao juiz, mais do que a ninguém, importa a tarefa de investigar se estão presentes as mesmas razões fáticas e jurídicas que motivaram que aquela questão fosse resolvida daquela maneira.
Por fim, deve-se deixar claro, que os problemas enfrentados no Brasil são causados pela falta de estrutura do Poder Judiciário e pela ausência de uma cultura jurídica de respeito às decisões do passado. Além disso, cumpre advertir, que o modelo que se pretende adotar em nada se assemelha à doutrina do stare decisis do common law, constituindo verdadeira distorção de seus institutos.
Também, deve-se desmistificar a ideia de que os institutos do civil law não propiciam previsibilidade, isonomia e coerência na aplicação do ordenamento jurídico. Como vimos, ambos os sistemas pregam os mesmos objetivos, utilizando para tanto, instrumentos diferentes em sua forma, mas que em muito se assemelham em sua essência, porque sempre trazem à baila o cotejo das razões de aplicação daquela regra – seja o texto normativo ou a ratio decidendi-, com a realidade social, histórica e cultural que lhe é adjacente.
Em ambos os sistemas não há massificação na produção das decisões. A Justiça não é tratada por números, como se fosse uma indústria de produção em série, mas pela qualidade das decisões judiciais. E para isso, deveríamos investir em estrutura e qualificação do Poder Judiciário, mas parece que esta a pauta não interessa aos detentores o Poder.
4. REFERÊNCIAS.
ABBOUD, Georges,
___________in Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. 1ª Ed.. São Paulo: RT, 2012;
___________in Precedente judicial versus jurisprudência dotada de efeito vinculante – Direito Jurisprudencial. 1ª Ed. São Paulo: RT, 2012;
AMARAL, Francisco.
___________in Direito Civil – Introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008;
D. N. MacCormic.
___________in Can Stare Decisis be Ablolished?, Juridical Review 11/198, 1966, apud WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito – Direito Jurisprudencial. 1ª Ed. São Paulo: RT, 2012
MARINONI, Luiz Guilherme.
___________in Precedentes obrigatórios. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2011;
MULLER, Friedrich.
___________in Teoria estruturante do Direito, 2ª Ed. São Paulo: RT, 2009;
NERY, Nelson Júnior; NERY, Rosa Maria de Andrade,
___________in Leis Civis Comentadas, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010;
___________in Código de Processo Civil Comentado e legislação extravagante, 11ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010;
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim.
___________in Precedentes e evolução do direito – Direito Jurisprudencial. 1ª Ed. São Paulo: RT, 2012
[1] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito – Direito Jurisprudencial. 1ª Ed. São Paulo: RT, 2012. pág .21.
[2] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito – Direito Jurisprudencial. 1ª Ed. São Paulo: RT, 2012. pág .24.
[3] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2011, pág. 59.
[4] Idem, pág 25.
[5] ABBOUD, Georges, Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. 1ª Ed.. São Paulo: RT, 2012, pág. 68.
[6] ABBOUD, Georges. Precedente judicial versus jurisprudência dotada de efeito vinculante – Direito Jurisprudencial. 1ª Ed. São Paulo: RT, 2012. pág .514.
[7] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito – Direito Jurisprudencial. 1ª Ed. São Paulo: RT, 2012. pág .39.
[8] D. N. MacCormick, Can Stare Decisis be Ablolished?, Juridical Review 11/198, 1966, apud WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Precedentes e evolução do direito – Direito Jurisprudencial. 1ª Ed. São Paulo: RT, 2012. pág .41.
[9] MULLER, Friedrich, Teoria estruturante do Direito, 2ª Ed. São Paulo: RT, 2009.
[10] ABBOUD, Georges, Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. 1ª Ed.. São Paulo: RT, 2012, pág. 60.
[11] Idem, págs 165/302.
[12] Artigo 103-A, § 1°, da Constituição Federal.
[13] Artigo 543-A e artigo 543-B, do Código de Processo Civil, respectivamente.
[14] Artigo 285-A, do Código de Processo Civil.
[15] MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2ª Ed. São Paulo: RT, 2011, pág. 65
[16] AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pág. 16.
Procurador do Estado de São Paulo, especialista em Direito Ambiental pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo -ESPGE-SP, mestrando em interesses difusos e coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEVKOVICZ, Rodrigo. O papel dos juízes e o efeito vinculante Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 mar 2014, 11:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38522/o-papel-dos-juizes-e-o-efeito-vinculante. Acesso em: 23 dez 2024.
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