1-RESUMO: O presente ensaio analisa as mudanças no corpo social ensejadas pela Modernidade e o surgimento dos chamados direitos difusos e coletivos, destacando-se a necessidade de se realizar um deslocamento metodológico da titularidade do bem para a espécie de interesse a ser protegido.
Palavras-chave: Modernidade – direitos difusos e coletivos- novo paradigma – relação jurídica.
2- INTRODUÇÃO
Vivenciamos uma época em que se acirram as discussões sobre a existência ou não de um direito difuso e coletivo no plano material. A doutrina diverge sobre o tema. Em sua maioria, a doutrina processual considera a temática dos direitos difusos e coletivos dentro de uma classificação processual, de acordo com a causa de pedir e o pedido deduzido em juízo. Outros defendem sua existência no plano material. Há certo consenso de que os direitos individuais homogêneos constituem uma forma processual coletiva de defesa de direito individuais.
A questão é de importância fundamental porque orientará a escolha do contorno normativo que deverá ser dado a matéria para que ditos direitos alcancem sua concretização.
O direito surge de um processo histórico, dialético e cultural, daí porque a doutrina identifica gerações/dimensões de direitos fundamentais.
Os direitos de 1° geração/dimensão, tipicamente individuais, referem-se à liberdade, representam uma reação ao absolutismo monárquico. O Estado Liberal, fruto dessa concepção, assegura as chamadas liberdades públicas, e intervêm de forma restrita na sociedade. Seu papel resume-se em gerir as forças militares, a Justiça e alguns serviços públicos criados para facilitar o comércio e a instrução do povo.
Prepondera o egoísmo individual, há forte influencia jusnaturalista, pois o indivíduo precede o Estado. Dentre suas consequências negativas pode-se elencar a criação de conglomerados empresariais, desigualdade de riqueza e os processos cíclicos de desemprego.
Os direitos de 2ª geração/dimensão, categoria que se encontram alguns direitos coletivos, referem-se à igualdade, fundam o Estado do bem estar social, que assume uma atuação positiva caracterizada pelo aumento das políticas públicas na tentativa de superar a contradição entre igualdade política e desigualdade social, bem como os exageros do individualismo liberal e da socialização soviética. Predomina além da visão do “homem social”, o próprio grupo impondo-se sua valoração jurídica.
Os direitos difusos são identificados pela doutrina constitucional como direitos de 3ª geração/dimensão. Referem-se à fraternidade, à solidariedade, dotados de humanismo e universalidade, não se destinam apenas à proteção de interesses individuais ou de um grupo, mas ao progresso, à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.
“Materializam poderes de titularidade coletiva atribuída genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade, e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.” [1]
Não obstante, foi a doutrina processual italiana a primeira a identificar interesses que não se amoldavam na clássica distinção direito público/privado, constituindo, segundo essa visão, categoria nova – a dos diretos transinviduais.
Mauro Capelletti detectou o problema elaborando a seguinte indagação: “de quem é o ar que respiro”. Demonstrou que a summa diviso entre direito privado e púbico não atendia aos fenômenos da sociedade de massa. A dualidade dessa classificação, de origem kantiana, não era mais adequada como único critério de divisão do Direito.[2]
BARBOSA MOREIRA relata que “em 1976, graças a uma bolsa de estudos concedida pelo Instituto Ítalo-americano (ILLA), passei três meses em Florença, quando lá exercia sua fulgurante atividade intelectual esse autêntico renovador dos estudos processuais que foi Mauro Cappelletti. Naquela época, fervilhava na doutrina italiana o interesse pela problemática relativa à proteção dos interesses supra-individuais; raro era o dia, vejo-me tentado a afirmar, em que não se realizava um simpósio ou não se publicava um ensaio a respeito dela.” [3]
Nem todos reconhecem que os direitos difusos e coletivos constituem novo direito material. NERY e NERY sustentam que “o que qualifica o direito como difuso, coletivo, individual homogêneo é o conjunto formado pela causa de pedir e pelo pedido deduzido em juízo.” [4]
Em sentido contrário, BENJAMIN defende o abandono da clássica divisão dicotômica do Direito, pois “a verdade é que a vida do homem moderno não permite a partição dos valores que orientam sua existência em dois blocos perfeitamente distintos. Entre as modalidades individuais e públicas há uma crescente categoria de interesses e direitos intermediários e mistos que, não podendo ser classificados como exclusivamente públicos, ou como unicamente privados, apresentam-se como difusos, grupais coletivos ou passíveis de coletivização.” [5]
FIGUEIREDO identifica esses interesses pela sua titularidade. Afirma que os direitos difusos não escapam da noção de interesse público, já que “a consecução do interesse público primário, ressalvadas hipóteses excepcionais e cerebrinas, será sempre a consecução de interesses difusos.” [6]
Não há dúvidas de que o direito é uno, sua segmentação em matérias como o direito constitucional, civil, administrativo, penal, etc., visa, apenas e tão somente, facilitar a compreensão de certos institutos que lhes são peculiares. Em verdade, a divisão se dá em razão da função que certas regras e princípios desempenham dentro do ordenamento jurídico.
Ao direito constitucional, por exemplo, compete a função de interpretar e sistematizar os princípios e normas fundamentais do Estado[7]. Mas e o chamado direito difuso e coletivo? Deve ser encarado como novo ramo do direito? É possível categorizá-lo como uma nova espécie do direito material, ou, sua classificação e atém a forma de tutela admitida pelo ordenamento?
A resposta dessas perguntas passa obrigatoriamente pela análise do conceito do Direito, do papel a ser desempenhado e a forma através da qual regula o corpo social. Ainda, demanda análise detalhada das mudanças imprimidas ao corpo social e ao indivíduo pela revolução industrial.
3- DESENVOLVIMENTO
3.1.Direito: concepção, finalidade e forma.
O Direito, expressão do modo de vida e da cultura de um povo, é fruto do contexto histórico de seu tempo. Ideais fluidos, dotados de alto índice de abstração e subjetividade, como a Justiça e o bem comum, podem ser encarados como algumas de suas missões, desde que analisados sob o prisma valorativo do contexto social de determinada época.
Na Grécia Antiga, por exemplos, justo representava a virtude suprema, consubstanciada no fiel seguimento da Lei, fosse ela boa ou ruim. Em que pese caráter temporal e cultural do conceito de Justiça, pode-se extrair de qualquer cultura, uma preocupação com a correta aplicação da Lei, evitando-se arbitrariedades. Universalmente o conceito do justo está intimamente ligado com a ideia do proporcional.
É de Ulpiano[8] a definição de que justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi (justiça é a vontade constante e perpétua de dar a cada um o que é seu). O problema reside exatamente em materializar o devido a cada um, na proporção de seu merecimento.
Para nós, Justiça representa o acatamento pelas normas jurídicas dos valores sociais imperantes em determinada época e de outros que conduzirão a humanidade a formas mais avançadas de civilização. A partir dessa premissa, v.g., a escravatura nunca foi justa, apesar de ter sido contemplada em Lei.
Essencialmente, o Direito é um instrumento de regulação social que visa garantir a realização dos ideais humanos de ordem, justiça e bem comum. Além disso, controla o exercício do Poder, pode-se dizer, inclusive, que “o direito sem poder é vazio e o poder sem direito é cego.” [9]
Para tanto, o Direito vale-se do estabelecimento de relações jurídicas. Em verdade, determinadas relações são escolhidas por sua importância para o bom desenrolar do convívio em sociedade. Às vezes, “a norma jurídica reconhece e garante uma relação já preexistente in rerum natura (...), outras vezes, é a própria norma que instaura a própria relação.” [10]
3.2 Um novo paradigma: avanço tecnológico, vulnerabilidade, fragmentação do corpo social e novos preceitos éticos.
Nos direitos ditos difusos e coletivos a norma jurídica contemplou, dentre sua regulação, relação preexistente. De fato, brutais foram as mudanças ocorridas desde o final do século XIX até o início do século XXI. As relações sociais na modernidade se fragmentaram, a vida se dá em nichos, o indivíduo é mais especializado, os processos produtivos mais eficientes. Tudo ficou mais rápido, mais fácil, mas ao mesmo tempo mais urgente. Os índices de mortalidade despencaram e a expectativa de vida subiu vertiginosamente.
A adoção da razão – alicerce da filosofia iluminista-, efetivamente havia cumprido parte de sua tarefa, elevando o homem a uma forma mais avançada de civilização. O primor pela racionalidade propiciou acelerado desenvolvimento científico culminando na revolução industrial.
Com a revolução industrial, o modelo sociedade agrária, baseado na cultura extrativista, na forte presença do Estado e da Igreja, foi substituído pelo modelo da sociedade de massa, de consumo.
E o impacto da sociedade de consumo na vida do indivíduo e do equilíbrio ecológico do meio ambiente foi enorme. Com o desenvolvimento dos meios de produção a humanidade, pela primeira vez em sua história, deixou de ter um papel de servidão em relação à natureza passando a controlar a cadeia produtiva e dela extraindo diversos benefícios.
São inegáveis os avanços que o desenvolvimento tecnológico propiciou em diversas áreas cruciais para a humanidade, como a produção, a saúde, o transporte, o saneamento, a alimentação, etc. Todos eles possibilitaram a erradicação de diversas doenças e certa fartura na quantidade de alimentos disponíveis, o que levou numa explosão demográfica por todo o planeta.
Se, antes a humanidade lutava para povoar o planeta, hoje o problema é inverso, há a real preocupação de que, em breve, os recursos naturais não serão suficientes para atender as necessidades vitais de todos.
O desenvolvimento da tecnologia estabeleceu verdadeiro um dilema tecnológico baseado na crença de que uma dificuldade tecnológica sé seria resolvida por outro dispositivo tecnológico, tornando-a um sistema fechado[11]. A filosofia da sociedade industrial recomendava o uso de determinada tecnologia pelo simples fato dela existir.Nesse mundo tecnológico não existe dependência entre fim e meio, sendo que o meio passa a ser mais importante que o fim.
Nas palavras de Zygmunt Bauman: “o ‘dilema tecnológico’ é, em penúltima análise, a declaração de independência dos meios dos fins; em última análise, o anúncio da soberania dos meios sobre os fins. ‘Tens carro, podes viajar’. A destinação não é nada, é o ter carro que importa. É estar em posição para tratar todos os lugares como destinos que conta- e a única coisa que conta”.[12]
Outro fator compõe essa equação. É que o acentuado desenvolvimento tecnológico não foi acompanhado do necessário desenvolvimento do senso de responsabilidade moral da humanidade.[13]
E isto colocou a humanidade e todos os seres vivos do planeta numa posição de acentuada vulnerabilidade. É que quanto maior a capacidade do homem construir, maior é sua capacidade de destruição e nesse momento, o homem pode destruir a si mesmo e o planeta em que vive.
O uso inadvertido da tecnologia foi identificado por Rachel Carson, em denúncia pioneira sobre os malefícios do uso do DDT para o controle de pestes nas plantações. Naquela ocasião se alertava da incompatível velocidade das criações sintéticas inventadas pelo homem e o necessário tempo de adaptação da natureza.
A imprevisibilidade nas consequências desse descompasso levou a autora a indagar-se sobre a pertinência do risco que a humanidade assumia. Ironizou: “como é possível que seres inteligentes tenham almejado controlar umas poucas espécies indesejadas por um método que contaminou todo o meio ambiente e trouxe a ameaça da doença e da morte inclusive da sua própria espécie?”[14]
A despeito dessa advertência, a humanidade deu seguimento à experimentação irresponsável e desenfreada de novas tecnologias, tudo com base na falsa ideia de melhoria da qualidade de vida.
Por todo o planeta, os desatinos egoístas na compreensão do modelo capitalista – lucro acima de tudo-, causaram danos gravíssimos à humanidade e ao meio ambiente, levando o planeta a situação limítrofe de escassez dos recursos naturais essenciais à manutenção do equilíbrio da própria vida.
Trata-se de constatação empírica, basta lembrar-se das duas bombas atômicas, do acidente de Chernobyl, de Bophal, da Guerra Fria, etc. Todos esses eventos mostraram que a existência da humanidade encontrava-se em risco. Era a primeira vez na história do homem que o indivíduo e sociedade encontravam-se totalmente vulneráveis.
E essa vulnerabilidade adveio da própria rapidez e extensão do alcance das mudanças patrocinadas pelo desenvolvimento tecnológico aliado ao retardatário desenvolvimento do senso moral da humanidade. Efetivamente a humanidade possuía reais condições de extinguir a si mesma e de interferir de maneira danosa nos processos biológicos essenciais ao desenvolvimento da vida no Planeta.
E a vida ao contrário do que se supõe é extremamente vulnerável. Sua preservação e êxito evolucionário pressupõe diversidade biológica. É a biodiversidade, conforme pondera Eward O. Wilson, a chave da preservação do mundo, pois “um local assolado por uma devastação passageira logo se recupera porque ainda existe bastante diversidade. Espécies oportunistas que evoluíram justamente para tais ocasiões correm para preencher os espaços vazios, dando início a uma sucessão que acabará por retomar a algo semelhante ao estado original do meio ambiente.” [15]
Enfim, chegou-se a conclusão que o modelo iluminista havia falhado em parte na tarefa a que tinha se proposto a solucionar. Afinal, como um modelo que prega a razão acima de tudo podia conviver com duas guerras mundiais, com holocausto, com o desenvolvimento de armas químicas e nucleares?
Ulrich Beck percebeu que a vulnerabilidade era componente essencial neste novo tecido social. A partir disso sustentou uma transição da sociedade industrial para a sociedade do risco. O risco, agora, além de fazer parte do jogo era abraçado pelo capitalismo que via nele campo inexplorado e fecundo para seu desenvolvimento.
Beck identificou que a fragmentação do trabalho implicava numa “cumplicidade geral e esta, por sua vez, uma irresponsabilidade generalizada.”[16] Mais que isso, constatou que os riscos eram globalizados, atingiam a todos indistintamente, inclusive aqueles que os haviam provocado, o que denominou efeito bumerangue.[17]
Analisou que a cumplicidade geral inviabilizava muitas vezes a identificação de responsáveis e de quem cobrar determinada medida preventiva. Todas essas indefinições acarretaram num certo vácuo político, pois “competentes para tanto são todos e ninguém”.[18]
O indivíduo também atravessou denso processo de modificação. Isso porque na mesma medida que o desenvolvimento tecnológico massificou a distribuição de informação, também requereu extrema especialização individual. O mercado passou a priorizar o conhecimento específico em determinada área ou segmento, em detrimento de uma visão mais geral.
A fragmentação de interesses tornou o indivíduo mais egoísta, incapaz de analisar a situação como um todo, como se a tecnologia lhe impusesse um cabresto. As pessoas tornaram-se mais imediatista, consequência do acelerado ritmo de vida imposto pela tecnologia que demanda respostas céleres.
Como consequência dessa fragmentação o indivíduo e o grupo social passaram a se preocupar com a defesa de interesses próprios e não mais da defesa do bem comum. Nessa fase da modernidade ou na pós-modernidade, bem comum importa na defesa de determinado interesse de determinada classe.
A felicidade está ligada a ideia de consumo. Feliz é o indivíduo que pode consumir os melhores produtos levando-se em conta o estilo de vida com os quais são relacionados. O prazer pessoal é o que mais importa e está relacionado com o estilo de vida identificado pela posse de determinado produto.
Essa visão fragmentada levou o indivíduo e o grupo social à defesa de interesses próprios e não mais à defesa do bem comum. A perda na persecução desses ideais comuns provocou “a atomização do composto social em indivíduos isolados – subdeterminados, desligados e movendo-se livremente”.[19]
A defesa do bem comum se dá de forma indireta apenas quando a defesa de determinado pessoal pressupõe a defesa de um interesse geral. Essa nova realidade ensejou verdadeira ruptura entre clássicas divisões sociais como o Estado e o indivíduo, o público e o privado, o nacional e o estrangeiro, etc.
Na esfera pública, a invasão do capital financeiro denota a fragilidade do Estado que não mais exerce em caráter exclusivo o controle sobre o meio social. Não haveria categorias em choque, mas sim incluídos e excluídos. Evidenciam ainda, o enfraquecimento da ideia de soberania, uma vez que o capital circula livremente entre os países do planeta provocando sua bancarrota da noite para o dia.
De resto, o meio passa a ser independente do fim, ou seja, nada é realizado com o objetivo de se alcançar determinada finalidade, mas apenas para vivenciar determinada experiência (ex. assistir televisão, ir para a Lua, etc).
Todas essas mudanças levaram diversos pensadores a identificar o estágio atual como pós-modernidade, enquanto outros identificam esses fenômenos como uma fase subsequente da própria modernidade.
Para aqueles que identificam a existência da pós-modernidade as rupturas que demonstrariam sua existência em relação à modernidade seriam basicamente as seguintes: na modernidade haveria clara divisão entre os papéis do indivíduo e do Estado; entre o público e o privado, o primeiro com a destinação e primordial de garantir os direitos individuais e sociais; há ainda a ideia de confronto entre classes representado pela relação capital X trabalho; por fim está arraigada a ideia de soberania e de que os meios não existem sem os fins.
A pós-modernidade, por sua vez, caracterizar-se-ia pela invasão do capital financeiro tanto a esfera privada como na esfera pública. Na invasão da publicidade, na adoção de políticas orientadas para a resolução de problemas particulares, na tecnocracia, enfim tudo gravita em torno dos interesses particulares do indivíduo ou de determinado grupo social. [20]
O desenvolvimento tecnológico acelerado, o compartilhamento e incremento dos riscos, a extrema vulnerabilidade da sociedade, a dificuldade de se identificar os responsáveis por um dano difuso, trouxe à baila a necessidade de se pensar um novo modelo ético para ma modernidade, abandonando-se as ferramentas utilizadas na fase da “indústria de cabanas”.[21]
É correto afirmar que nossas ações atingem outras pessoas, mais ainda, compreender que nossas atitudes somadas com o poder da tecnologia tem efeito mais poderoso sobre as pessoas e sobre mais pessoas. E isso demanda uma ampliação da responsabilidade ética que não pode ficar presa à visualização dos efeitos da pratica ou omissão de determinada conduta. [22]
A noção de risco ao próprio Planeta e a condição humana trouxe o enfraquecimento da relevância do tempo, na medida em que o indivíduo deixou de se preocupar exclusivamente com si próprio e com seus pares para voltar suas atenções às futuras gerações.
Essa nova concepção ética demanda a realização de escolhas que assegurem direitos a outras nações e às futuras gerações. Há que se “visualizar os efeitos de longo termo do empreendimento tecnológico”. “Deve-se dar mais atenção à profecia de ruína do que à profecia da felicidade.”
As escolhas da sociedade devem ser pautadas abarcando essa nova realidade proporcionada pela tecnologia. Deve-se deixar de buscar o prazer, a experimentação de sensações a todo custo. Novos parâmetros devem ser contemplados nas decisões da sociedade.
A ética não deve ser pautada levando-se em conta apenas o indivíduo. Um prognóstico de felicidade deve ceder a um prognóstico de desastre. Essa nova ética deve conduzir as escolhas a analise de todos os possíveis reflexos que ensejarão. Ninguém pode renunciar o que não é seu, salvo separa evitar um mal, mas de forma alguma para usufruir um bem.
3.3 Deslocamento metodológico da titularidade do bem para a espécie de interesse: um novo paradigma.
A ciência jurídica atravessa uma crise. Isto, ao contrário do que possa aparentar à primeira vista, não constitui um retrocesso, mas uma oportunidade de avanço.
É que a ciência, a despeito de passar a impressão de que sua evolução se dá linearmente, de forma cumulativa, progride pela ruptura de paradigmas, por verdadeiras revoluções do pensar. “É antes uma reconstrução da área de estudos a partir de novos princípios, reconstrução que altera algumas das generalizações teóricas mais elementares do paradigma bem como seus métodos e aplicações.” [23]
Isto porque, o modelo clássico de regulação da sociedade através de relações jurídicas está baseado na relação entre indivíduos definidos e existentes, capazes que adquirirem direitos e contraírem obrigações.
O problema é que esse modelo não se amolda com perfeição a essa nova realidade, marcada pela fragmentação e vulnerabilidade da sociedade, pelo compartilhamento dos riscos, pela atomização do indivíduo e pela ausência de titulares definidos sobre determinados bens, como, por exemplo, o meio ambiente ecologicamente equilibrado.
Perceba-se que no contexto da relação jurídica os sujeitos ocupam determinada situação jurídica, que lhe impõe determinado dever – comporta-se de certo modo-, ou um poder- exigir que outrem se comporte de determinado modo.
“Dado que ao poder de um corresponde o dever de outro, a relação jurídica surge como correlação de duas situações jurídicas de sentidos opostos e de igual conteúdo”.[24] Há, em verdade, grande preocupação pela identificação dos sujeitos - para todo credor existe um devedor-, só para aquele que o ordenamento confere personalidade jurídica é que se atribuem direitos. Apenas em casos excepcionais é que a ciência jurídica reconhece direitos para quem não tenha personalidade jurídica, como para os entes despersonalizados para o nascituro, cuja proteção pressupõe seu nascimento em curto espaço de tempo.
O sistema normativo de proteção foi concebido para tutelar as relações entre indivíduos, mas a modernidade implica numa proteção macro, porque as relações passaram a ser multilaterais envolvendo diversos segmentos da sociedade, o risco agora é de todos.
E mais, a dicotomia público/privado não é suficiente para a perfeita regulação desse novo contexto social. É que, essa classificação baseia-se, de acordo com a corrente doutrinária que se adotar, no sujeito que é titular do bem, ou, no regime jurídico a ele imposto, ou no interesse em sua proteção.
Tomando-se o critério do sujeito como premissa, estar-se-ia diante de direto público toda vez que o Estado fosse um dos sujeitos da relação jurídica, o restante estaria enquadrado no direito privado. A despeito de sua precisão, referido critério não traz os contornos de cada instituto, o que enfraquece sua valia metodológica.
SUNDFELD prefere o critério do regime jurídico para classificar entre direito público ou privado. Trata-se de visão formalista voltada para “as normas jurídicas e para o modo como elas regulam as situações de que cuidam (isto é: para o regime jurídico por elas criado).” [25]
Nessa concepção, regime jurídico de direito público caracteriza-se pela existência das diversas prerrogativas e deveres próprios do Estado. SUNDFELD[26] elenca os seguintes princípios gerais como formadores do regime jurídico de direito público: autoridade pública; submissão do Estado à ordem jurídica; função, igualdade dos particulares perante o Estado; devido processo; publicidade; responsabilidade objetiva e igualdade das pessoas políticas.
Ambos os critérios titularidade e regime jurídico, não abarcam dentro de si a problemática dos direitos difusos e coletivos. Seja porque, os direitos de titularidade do Estado não são difusos ou coletivos, uma vez que o Estado detém personalidade jurídica própria, seja porque o regime jurídico público ou privado a que se submete determinado direto não serve para sua compreensão como difuso ou coletivo.
O critério do interesse, também, não funciona com exatidão na delimitação entre público e privado. Parece claro que nem todo direito público será um direito coletivo ou vice-versa. Muitos direitos coletivos não se revestem de relevância social, o que não os torna públicos. Ainda que se adotasse o critério do interesse, nem todos os direitos coletivos destinam-se à proteção da sociedade. Alguns deles referem-se a determinado fragmento dela, sem expressão suficiente a justificar a intervenção estatal, ou interessar a sociedade como um todo. Imagine-se, por exemplo, o direito de informação a respeito dos acessórios de um carro de luxo. Trata-se, sem sobra de dúvidas, de um direito difuso, mas que não apresenta nenhuma relevância social.
É certo que a proteção de alguns direitos coletivos estará revestida de relevância pública, mas isso não os torna públicos. Há diferença entre o caráter público e relevante do direito e sua proteção, mesmo porque toda proteção de um direito tem caráter público, ainda que se trate de direito privado. Ora, não há como negar a relevância pública na proteção da posse, ainda que a ação possessória se dê entre particulares.
Em verdade, a classificação de um direito como difuso ou coletivo não exclui a dicotomia público e privado. Trata-se de realidade simultânea não excludente. Para nós é possível a existência tanto de um direito público difuso como de um direito privado difuso.
O critério do interesse, apesar de não ter grande valia para a delimitação entre público e privado, tem papel fundamental na identificação dos direitos difusos e coletivos. Ao se tratar do interesse em jogo, coloca-se de lado a titularidade como ponto de partida da identificação da espécie do direito. É claro que sempre haverá um titular, ainda que seja a coletividade, mas isso não é o foco para a classificação e para a estruturação da norma jurídica.
A necessidade de regulação específica e autônoma dos direitos transindividuais advém de sua própria essência. É que certas situações de fato, juridicamente protegidas, só existem em seu todo, não são passíveis de fragmentação, e desde seu nascimento interessam a uma coletividade. Não importa a titularidade, mas sim o interesse que se pretende proteger.
Por esse motivo os poderes e os deveres, as pretensões e as obrigações, as ações e exceções, as prerrogativas e as sujeições, não seguem o modelo bilateral clássico. Nos interesses transindividuias não importa quem é o titular do bem. Como o interesse ultrapassa as fronteiras da titularidade e de seus contornos normativos usuais - possibilidade de dispor, de fruir, renunciar, ceder, transacionar-, não faz sentido partir desse parâmetro para compreender essa nova classificação de cunho material.
Mais importante do que a definição sobre a titularidade do bem, é a definição do interesse a ser protegido. Ainda que o bem seja particular, nele pode residir um interesse difuso, autorizando-se a todos exercer um poder em relação a seu titular, sem que necessariamente haja bilateralidade na relação entre proprietário e coletividade.
Esse deslocamento metodológico, colocando o interesse como ponto central da discussão representa o abandono de uma concepção liberal, voltada a proteção do indivíduo, do titular, do proprietário, etc. para a adoção de outro sistema, preocupado com a proteção de valores. Isso parece ser o mais adequado quando se trata desses interesses que não pertencem a ninguém exclusivamente, mas afetam a todos, inclusive às futuras gerações e as outras formas de vida.
4 CONCLUSÃO
Sem dúvida nenhuma vivemos numa sociedade muito diferente daquela que havia 150 anos atrás. Em que pese essas brutais alterações nas relações sociais, o direito permaneceu de certa forma estagnado a concepções que remontam o império romano.
O modelo concebido para a estruturação da relação jurídica, que disciplina as relações entre sujeitos determinados, impondo-lhes direitos e deveres bilaterais e correspondentes, não funciona muito bem na sociedade de massa, por que nela todos são vulneráveis e compartilham os riscos, nela a identificação de responsáveis é de difícil realização, nela há extrema fragmentação do corpo social e atomização do indivíduo que é chamado atuar em diversos segmentos ao mesmo tempo.
Vivemos num mundo mais complexo em que não adéqua com perfeição o modelo relacional entre sujeitos definidos, cujos poderes e deveres sejam mútuos e de fácil apreensão.
A mudança da realidade social impõe mudança ao próprio Direito. Esse novo paradigma, deve colocar de lado a titularidade do bem jurídico, superando da ideia de que o direito serve apenas para tutelar relações intersubjetivas. Mais do que isso, em nosso sentir, o Direito deve buscar a tutela de valores - valores da humanidade e não do indivíduo.
Essa percepção, inclusive, pode ser a inspiração da atribuição de força normativa aos princípios, que em termos bem simples, constituem valores. E toda tutela jurídica de um valor exprime um interesse difuso.
Além disso, o rompimento da noção de tempo e espaço definidos, já que se garante direitos às futuras gerações, implica na adoção de escolhas que levem em conta a vulnerabilidade da própria humanidade em face dela mesma, fugindo da concepção deque todo dever enseja um direito correspondente.
O Direito, portanto, mais do que instrumento de regulação das relações entre os indivíduos deve ser concebido como garantidor de valores axiológicos, que exprimam as conquistas morais da humanidade, como a solidariedade, o altruísmo e a benevolência. [27]
Talvez, os chamados direitos difusos e coletivos sejam a matriz propulsora dessa nova concepção de ordenamento jurídico.
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[1] STF, Pleno, MS 22164/SP, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 1, de 17/11/95, p. 39206.
[2] ABELHA RODRIGUES, Marcelo. Elementos de Direito Ambiental – Parte Geral. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, pág. 30.
[3] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Prefácio à obra Ações Coletivas no direito comparado e nacional de Aluisio Gonçalves de Castro Mendes. São Paulo: RT, 2002. págs. 9-10.
[4] NERY, Nelson Júnior; NERY, Rosa Maria de Andrade, in Leis Civis Comentadas, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, pág. 341.
[5] BENJAMIN, Antônio Herman V., Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, pág. 1297.
[6] FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin. Curso de Direito Ambiental. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, pág. 37/38.
[7] SILVA, José Afonso da; in Curso de Direito Constitucional, 15ª ed. São Paulo: Malheiros, 1998, pág. 36.
[8] AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pág. 16.
[9] MARTINEZ, Gregorio Peces-Barba, Derecho e Derechos Fundamentales, p.17. Javier de Lucas (coord), Introducción a la Teoria Del Derecho, p.120, apud AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. 7ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pág. 13.
[10] LUMIA Giuseppe. Elementos de teoria e ideologia do Direito. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, pág. 100.
[11] BAUMAN, Zygmunt. Ética Pós-moderna. 1ª Ed. São Paulo: Paulus: 1997, pág. 211.
[12] BAUMAN, Zygmunt, ob. cit., págs 215/216.
[13] CARSON Rachel. Primavera silenciosa. 1° Ed. São Paulo: Gaia, 2010, pág. 15.
[14] CARSON Rachel. Primavera silenciosa. 1° Ed. São Paulo: Gaia, 2010, pág. 23/24.
[15] WILSON, Edward O. Diversidade da vida. 1ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, pág 22.
[16] BECK, Ulrich. Sociedade de risco. 1ª Ed. São Paulo: Editora 34, 2010, pág.39.
[17] BECK, Ulrich. ob.cit., pág. 44.
[18] BECK, Ulrich. ob.cit., pág. 59.
[19] BAUMAN, Zygmunt. ob.cit, pág. 220.
[20] BAUMAN, Zygmunt. ob.cit, págs. 42/43.
[21] BAUMAN, Zygmunt. ob.cit, págs. 248.
[22] BAUMAN, Zygmunt. ob.cit, págs. 248.
[23] KUNH, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5ª Ed. São Paulo: Perspectiva S/A, pág 116.
[24] LUMIA Giuseppe. ob. cit, pág.105.
[25] SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, págs 131/132.
[26] SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 3ª ed. São Paulo: Malheiros, 1997, pág. 142.
[27] Recentemente foi proibida a farra do boi, sob o argumento de que, ainda que se tratasse de uma manifestação cultural, a Constituição Federal, em hipótese alguma, protegeria a crueldade. Vê-se que o Direito tutelou um valor da humanidade e não bem ou um titular em específico.
Procurador do Estado de São Paulo, especialista em Direito Ambiental pela Escola Superior da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo -ESPGE-SP, mestrando em interesses difusos e coletivos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo -PUC-SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LEVKOVICZ, Rodrigo. A modernidade como novo paradigma para a evolução da ciência jurídica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 mar 2014, 06:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38537/a-modernidade-como-novo-paradigma-para-a-evolucao-da-ciencia-juridica. Acesso em: 23 dez 2024.
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