Resumo: A discriminação negativa, combatida pelo ordenamento jurídico nacional e internacional, é o preconceito exteriorizado a partir de diversos pretextos, entre eles raça, sexo, idade, religião, classe social, orientação política, orientação sexual etc. No âmbito trabalhista, a dispensa discriminatória por doença é modalidade de discriminação realizada pelo empregador contra seu empregado. Tem por consequências o direito à reintegração do trabalhador, com pagamento das verbas do período de afastamento, e a indenização pelos danos morais sofridos.
Palavras-chave: contrato de trabalho; discriminação; doença.
Como ensina José Claudio Monteiro de Brito Filho (2013, p. 61-62), dois modelos orientam o combate às práticas discriminatórias. O modelo repressor consiste em tipificar as condutas e aplicar sanções de cunho administrativo, civil e penal. Por sua vez, o modelo das ações afirmativas compreende adotar medidas para que as pessoas discriminadas integrem-se de modo pleno à coletividade. O primeiro modelo tem por objeto a discriminação negativa; o segundo, a positiva.
O presente estudo trata da discriminação negativa, que prejudica o indivíduo por ela atingido. Nas próximas linhas, tentar-se-á definir o fenômeno, discutir sua repulsa pelo ordenamento jurídico internacional e nacional, e analisar o caso específico da discriminação do empregado em razão de doença.
Mauricio Godinho Delgado (2000, p. 97-108) conceitua a discriminação como sendo “a conduta pela qual nega-se à pessoa tratamento compatível com o padrão jurídico assentado para a situação concreta por ela vivenciada.”
Dessa forma, em seu sentido negativo, a discriminação é o preconceito exteriorizado, que pretende justificar uma situação de agressão contra um grupo vulnerável ou a obtenção de uma vantagem em face do mesmo grupo.
Diz-se que a discriminação é direta quando fundada em prática ostensiva, política institucional ou política comercial, sem se esconder que o motivo do tratamento diferenciado do grupo vulnerável está ligado a uma condição própria. Por sua vez, há discriminação indireta se o tratamento diferenciado decorre de conduta aparentemente neutra, mas que de fato está ligada a alguma peculiaridade considerada pelo agressor como inferiorizante.
Ainda quanto à diferença entre discriminação direta e indireta, Alberto Emiliano de Oliveira Neto (2006) dispõe:
“Na forma direta, a discriminação é explícita, pois plenamente verificada a partir da análise do conteúdo do ato discriminatório. A discriminação indireta, por sua vez, é criação do direito norte-americano, baseada na teoria do impacto desproporcional (...). Esta modalidade se dá através de medidas legislativas, administrativas ou empresariais, cujo conteúdo, pressupondo uma situação preexistente de desigualdade, acentua ou mantém tal quadro de injustiça, ao passo que o efeito discriminatório da aplicação da medida prejudica de maneira desproporcional determinados grupos ou pessoas. Finalmente, a discriminação oculta, oriunda do direito francês, caracteriza-se pela intencionalidade (não encontrada na discriminação indireta). A discriminação oculta, outrossim, é disfarçada pelo emprego de instrumentos aparentemente neutros, ocultando real intenção efetivamente discriminatória.”
Nas relações de trabalho, as práticas discriminatórias encontram campo fértil, haja vista a desigualdade material entre o empregador e o empregado, parte hipossuficiente, que na maioria das vezes não tem condição de lutar sozinho contra as arbitrariedades do empregador.
A vedação à discriminação em geral vem prevista no artigo 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que impede, genericamente, distinções de “raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”, disposição com redação semelhante à do art. 2º do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Políticos.
Ainda, condenam a discriminação o artigo 2º, 2, do Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais (1966), o artigo 1º, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos (1969), sem mencionar tratados específicos, como, por exemplo, contra discriminação racial e contra a mulher.
Quanto às relações de emprego, o art. 1º da Convenção n. 111 da OIT[1], ratificada pelo Brasil, traz como discriminação “toda distinção, exclusão ou preferencia fundada na raça, cor, sexo, religião, opinião política, ascendência nacional ou origem social”. Confira-se o inteiro teor de referido artigo:
Artigo 1º: 1. Para os fins desta Convenção, o termo “discriminação”, compreende: a) toda distinção, exclusão ou preferência, com base em raça, cor, sexo, religião, opinião política, nacionalidade ou origem social, que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou de tratamento no emprego ou profissão; b) qualquer outra distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito anular ou reduzir a igualdade de oportunidade ou tratamento no emprego ou profissão, conforme pode ser determinado pelo País-membro concernente, após consultar organizações representativas de empregadores e de trabalhadores, se as houver, e outros organismos adequados.
Na ordem interna, sabe-se que impedir qualquer forma de discriminação é um dos objetivos do Estado brasileiro (CF, art. 3º, IV). No campo trabalhista, o Estado brasileiro, quando garante que não haja conduta discriminatória, concretiza o princípio do valor social do trabalho (CF, art. 1º, IV). O inciso XXX do art. 7º da CF proíbe discriminação no emprego por motivo de “sexo, idade, cor ou estado civil”. Vale lembrar que não são essas as únicas hipóteses vedadas de discriminação, pois o rol é meramente enunciativo, como se extrai do princípio da isonomia do caput do art. 5º da CF, e da cláusula de abertura do seu § 2º. Por sinal, o art. 3º, IV, veda expressamente “quaisquer outras formas de discriminação”.
No plano infraconstitucional, tem-se que a Lei 9029/95 criminalizou diversas práticas discriminatórias no contexto trabalhista:
Art. 2º Constituem crime as seguintes práticas discriminatórias:
I - a exigência de teste, exame, perícia, laudo, atestado, declaração ou qualquer outro procedimento relativo à esterilização ou a estado de gravidez;
II - a adoção de quaisquer medidas, de iniciativa do empregador, que configurem;
a) indução ou instigamento à esterilização genética;
b) promoção do controle de natalidade, assim não considerado o oferecimento de serviços e de aconselhamento ou planejamento familiar, realizados através de instituições públicas ou privadas, submetidas às normas do Sistema Único de Saúde (SUS).
Pena: detenção de um a dois anos e multa.
(...)
Vários motivos são adotados como razão discriminatória: raça, sexo, idade, religião, classe social, orientação política, orientação sexual etc. O preconceito racial é um dos mais recorrentes:
Ementa: RECURSO DE REVISTA. PRELIMINAR DE NULIDADE POR NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. Constatado que a v. decisão regional está fundamentada exatamente no depoimento da testemunha que a reclamada pretendia ver examinado, não procede a alegada nulidade por negativa de prestação jurisdicional. Intactos, pois, os artigos 458 do CPC , 832 da CLT e 93 , IX , da Constituição Federal . Recurso de revista não conhecido. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DISCRIMINAÇÃO RACIAL. Comprovado o excesso do poder diretivo da reclamada, bem como o ato ilícito decorrente de discriminação racial praticada por seu empregado, resulta devida a reparação. O preconceito racial não é tolerado e deve ter inibição pela indenização reparatória contra o infrator do princípio constitucional que reza a igualdade. O sofrimento decorrente da discriminação racial, embora não possa ser mensurada a dor, faz necessário que o julgador determine o valor a ser pago pelo empregador pelo sofrimento causado ao empregado. Busca-se imputar ao empregador uma pena pelo ato ilícito e ao empregado atenuar o sentimento de injustiça. Decisão que tem fundamento o princípio da não discriminação racial não deve ser reformada. (...)
(TST - RR 167500-63.2008.5.04.0232, data de publicação 22/02/2013)
A discriminação laboral pode ocorrer antes mesmo de existir relação de emprego (fase pré-contratual), no curso do trabalho (incluindo a dispensa) e inclusive após o término da relação de emprego (fase pós-contratual).
A dispensa discriminatória por doença é modalidade de discriminação realizada pelo empregador contra seu empregado e que ocorre na fase contratual, acarretando seu suposto término. Costuma ser indireta, pois o empregador não admite que a dispensa se deu por motivo de saúde, defendendo-se com o argumento da liberdade de demitir conferida pelo livre exercício da atividade econômica (CF, art. 1º, IV, e art. 170) e na previsão expressa de indenização compensatória (CF, art. 7º, I).
Ocorre que a faculdade de dispensar o empregado não permite dispensa discriminatória de nenhum tipo, situação que torna o ato nulo. No caso particular de doença, a perda do posto coincide com o momento em que o trabalhador é mais dependente do emprego.
Nesse contexto, ressaltando a função social do contrato de trabalho (CC, art. 421) como contraponto do direito potestativo de dispensa, merece transcrição a seguinte ementa do TRT da 2ª Região:
DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. NULIDADE DA RESCISÃO.
O direito potestativo do empregador de resilir unilateralmente o contrato de trabalho, não é absoluto, encontra-se mitigado pela função social do contrato; bem como princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, dentre eles a dignidade da pessoa humana. A alegação de desconhecimento da gravidade da doença, não descaracteriza o ato discriminatório, basta o fato da doença, independentemente da gravidade, para configuração da discriminação. A conduta se torna mais reprovável diante de doença grave. Inteligência dos artigos 1º, III e 3º, IV, da CF e art. 1º da Lei 9.029/95. DANO MORAL. O dano moral ocasiona lesão na esfera personalíssima do titular, violando sua intimidade, vida privada, honra e imagem, implicando numa indenização compensatória ao ofendido. E, segundo a melhor doutrina, desnecessária a prova do dano moral, pois, a esfera atingida da vítima é a subjetiva, tal seja, seu psiquismo, sua intimidade, sua vida privada, gerando dor, angústia, entre outros sentimentos de indignidade. Basta a prova do fato ilícito, potencialmente gerador do dano moral. Comprovado o ato da ré cabe indenização pelo dano moral causado.
(TRT/SP - 02232004520095020070 (02232200907002009) - RO - Ac. 4ªT 20110631140 - Rel. IVANI CONTINI BRAMANTE - DOE 27/05/2011).
O TST, em 2012, adotou, na súmula 443, a presunção de conduta discriminatória na despedida de empregado com doença grave e estigmatizante, gerando o consequente direito à reintegração:
SÚM-443. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À REINTEGRAÇÃO - Res. 185/2012, DEJT divulgado em 25, 26 e 27.09.2012
Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego.
Vale reproduzir uma ementa de julgado do TST, anterior à edição da súmula, que decidiu pela reintegração do empregado discriminado, reconhecendo a presunção a seu favor:
Ementa: RECURSO DE REVISTA. REINTEGRAÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DO VIRUS HIV. PRESUNÇÃO DE DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Presume-se discriminatória a ruptura arbitrária, quando não comprovado um motivo justificável, em face de circunstancial debilidade física causada pela grave doença em comento (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - AIDS) e da realidade que, ainda nos tempos atuais, se observa no seio da sociedade, no que toca à discriminação e preconceito do portador do vírus HIV. A AIDS ainda é uma doença que apresenta repercussões estigmatizantes na sociedade e, em particular, no mundo do trabalho. Nesse contexto, a matéria deve ser analisada à luz dos princípios constitucionais relativos à dignidade da pessoa humana, à não-discriminação e à função social do trabalho e da propriedade (art. 1º , III , IV , 3 º IV, e 170 da CF/88 ). Não se olvide, outrossim, que faz parte do compromisso do Brasil, também na ordem internacional (Convenção 111 da OIT), o rechaçamento a toda forma de discriminação no âmbito laboral. É, portanto, papel do Judiciário Trabalhista, considerando a máxima eficiência que se deve extrair dos princípios constitucionais, a concretização dos direitos fundamentais relativamente à efetiva tutela antidiscriminatória do trabalhador portador de doença grave e estigmatizante, como a AIDS. Pesa ainda mais a presunção de discriminação, no caso concreto, o fato de a Reclamada cessar o contrato de emprego com base em teste de produtividade, no qual o Reclamante certamente seria prejudicado em virtude do debilitado estado de saúde e do tratamento a que se submetia, ainda que tivesse sido facilitado pela Reclamada. Recurso de revista conhecido e provido.
(TST - RR 317800-64.2008.5.12.0054; Data de publicação: 10/06/2011)
Configurada a discriminação, segue o dever do empregador de reparar o dano moral. O dano moral é o dano não patrimonial à dignidade e à personalidade. É reconhecido expressamente na CF, art. 5º, V e X. Consoante o art. 186 do CC, o dano, ainda que exclusivamente moral, é consequência de um ato ilícito, e ao ofensor cabe o dever de repará-lo, como dispõe o art. 927 do mesmo instrumento.
A compensação pecuniária é a forma de reparação própria do dano moral, haja vista a impossibilidade de restituição das coisas ao estado anterior. No caso do empregado discriminado, a reintegração ao posto de trabalho não indeniza o desgaste psíquico por ele sofrido.
A jurisprudência, há muito, vem no sentido de impor a compensação de danos morais, como se vê nas seguintes ementas de julgamentos realizados há mais de 10 anos:
AIDS - DISCRIMINAÇÃO - DANOS MORAIS. O trabalhador, portador do vírus HIV, que passou a ser tratado pelo superior hierárquico de "a coisa" e "estorvo", em virtude de doença de que padece, faz jus à indenização por danos morais sem qualquer margem de dúvidas. É inafastável a repugnância que nos toma conta quando sabemos existir em nossa sociedade, muitas vezes próximas ao nosso convívio, pessoas com mentalidade tão medíocre e comportamento tão desumano e pequeno, ocupando cargos e dirigindo vários subordinados. Estes, sim, são portadores dos males do século, a falta de solidariedade e respeito pelo ser humano. Recurso provido por unanimidade
(TRT-24 - ROMS 01594-1997-777-24-00-7; Data de publicação: 26/06/1998)
Ementa: DANO MORAL. AIDS DISCRIMINAÇÃO. DANO MORAL. CAINDO POR TERRA A ALEGAÇÃO DA RECLAMADA DE QUE DESCONHECIA O PROBLEMA DE SAÚDE DO AUTOR E RESTANDO PATENTE A OCORRÊNCIA DA DISCRIMINAÇÃO EXTREMAMENTE VELADA, HÁ QUE SE CONCORDAR COM A CONDENAÇÃO EM DANOS MORAIS.
(TRT-1 - 00438-2001-073-01-00-1; Data de publicação: 18/08/2003)
Conclui-se, a partir dos fundamentos expostos e da consulta à jurisprudência, que o padrão normativo e jurisdicional atual de confronto das condutas discriminatórias nas relações de emprego é bem contundente. No caso de dispensa do empregado por motivo de doença, lhe é devida a reintegração, acompanhada do pagamento das verbas do período de afastamento, além da compensação pelo dano moral.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRITO FILHO, José Claudio Monteiro de. Ações afirmativas. 2ª ed. São Paulo: Ltr, 2013.
DELGADO, Mauricio Godinho. Proteções contra discriminação na relação de emprego. In: VIANA, Márcio Túlio; RENAULT, Luiz Otávio Linhares (Coords.). Discriminação: estudos. São Paulo: LTr, 2000, p. 97-108.
OLIVEIRA NETO, Alberto Emiliano de. O princípio da não-discriminação e sua aplicação às relações de trabalho. In: Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1176, 20 set. 2006. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/8950>. Acesso em: 22 fev. 2014.
NOTA
[1] Disponível em <http://www.ilo.org.br>.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rodrigo Bezerra. Dispensa discriminatória por doença do empregado Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 mar 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38636/dispensa-discriminatoria-por-doenca-do-empregado. Acesso em: 30 set 2024.
Por: Eduardo Armelindo Rizzo
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Por: JILMARA DE SOUZA DANTAS
Por: Leonardo de Sales Dias
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