Resumo: O problema a ser investigado por este trabalho repousa sobre as alterações no regime de pagamento de precatórios, a partir da introdução do art. 97 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT. Vale ressaltar que essa mudança foi incorporada diante da promulgação da Emenda Constitucional nº 62/2009, julgada parcialmente inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de controle abstrato de constitucionalidade. Em que pese o dispositivo legal, objeto do presente estudo, ter sido declarado inconstitucional, o seu exame visa elucidar as possibilidades de se criarem meios legítimos de pagamento de precatórios pela Fazenda Pública.
Palavras-chave: Precatório; Receita Corrente Líquida; Leilão.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 O ART. 97 DO ADCT; 3 REGIME ESPECIAL MENSAL OU ANUAL; 4 INSTITUIÇÃO DO PAGAMENTO POR LEILÃO; 5 PREVISÃO DE NOVOS TIPOS DE SANÇÕES; 6 CONSIDERAÇÕES SOBRE O NOVO REGIME DE PAGAMENTO; 7 CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS.
1 INTRODUÇÃO
Dentre as mudanças inseridas pelo novo art. 97 do ADCT, ganham relevância as referentes à vinculação dos orçamentos dos entes federativos ao pagamento dos precatórios, ao prolongamento do prazo de pagamento para 15 anos e à instituição de leilões públicos, a fim de se liquidarem os débitos fazendários.
A finalidade expressamente consignada na proposta que originou a Emenda Constitucional nº 62/2009 foi equacionar o volume de precatórios não pagos pelos Estados e Municípios. O relatório da proposta reconhece que a situação dos entes federativos em relação ao endividamento de precatórios é bastante delicada, sugerindo-se, dessa forma, a criação de um meio que possibilite a vinculação dos seus orçamentos ao pagamento de débitos que se acumulam a cada ano.
O Plenário do STF, por maioria, em março de 2013, julgando as Ações Diretas de Inconstitucionalidade nos 4.357 e 4.425, declarou a inconstitucionalidade do regime especial previsto no art. 97 do ADCT, bem como o § 15 do art. 100 da Constituição Federal – CF –, além de outros dispositivos.
2 O ART. 97 DO ADCT
A EC nº 62/2009, além de modificar substancialmente o art. 100 da CF, fez incluir o art. 97 ao ADCT[1], criando um novo regime de pagamento de precatórios, com previsão de parcelamento até quinze anos, vinculações à receita corrente líquida dos entes federativos, bem como estabeleceu novas formas destes pagarem os seus débitos.
O art. 97, caput, do ADCT, permite aos Estados, Distrito Federal e Municípios que estejam em mora no pagamento de precatórios a adoção de um regime especial, que exclui o sistema de pagamento previsto pelo art. 100 da CF.
As regras contidas no mencionado artigo serão aplicadas enquanto não for editada lei complementar à CF dispondo sobre regime especial de pagamento. O novo §15 do art. 100, CF[2], confere essa possibilidade ao legislador infraconstitucional, que não poderá incluir a União em tal regime, devido à regularidade em que esta vem pagando os seus débitos. Outrossim, o regime poderá ser criado independentemente das regras contidas no texto constitucional, com vistas a regularizar o pagamento de precatórios vencidos e não pagos por aquelas respectivas pessoas jurídicas de direito público.
Enquanto não editada a aludida lei complementar, os Estados, Distrito Federal e os Municípios que, na data da publicação da EC nº 62/2009, estejam inadimplentes com precatórios já vencidos, como também os emitidos durante a vigência do próprio regime especial, relativos à administração direta e à indireta, farão esses pagamentos sem precisar observar o disposto no art. 100 da CF. Estarão, por conseguinte, adstritos às normas contidas no art. 97 do ADCT.
O mencionado artigo, ao prever a mora dos entes federativos, incluiu todos os débitos judiciais constituídos e ainda pendentes de pagamento no dia 09.12.2009 pelas Fazendas Públicas estaduais, distrital e municipais, sujeitando-se às mesmas regras os débitos futuros, constituídos durante o exercício do regime especial.
Ademais, os precatórios parcelados na forma do art. 33 ou do art. 78 do ADCT e ainda pendentes de pagamento, ingressarão no regime especial com o valor atualizado das parcelas não pagas relativas a cada precatório, bem como o saldo dos acordos judiciais e extrajudiciais. A EC nº 62/2009 determinou a submissão de todos os créditos de precatórios pendentes de pagamento, ainda que já tenham sido objeto de parcelamento. A justificativa expressamente consignada no relatório da Il. Senadora Kátia Abreu, em parecer da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania sobre a PEC 12/2006, é de que "a exclusão de alguns tipos de precatórios fragiliza o sistema concebido para o regime especial", tendo em vista os inúmeros parcelamentos inadimplidos pelas Fazendas devedoras.
3 REGIME ESPECIAL MENSAL OU ANUAL
Os Estados, Distrito Federal e os Municípios poderão optar, por meio de ato do Poder Executivo, pelo regime especial mensal ou anual. O primeiro consiste em depósitos mensais, em conta especial, de valores correspondentes a percentuais incidentes sobre a receita corrente líquida. Nada obstante, o ente federativo poderá decidir pelo segundo sistema, que se perfaz através de depósitos anuais, ao longo de quinze anos, equivalente ao saldo total de precatórios devidos, dividido pelo número de anos restantes no regime especial. Segundo o art. 3º da EC nº 62/2009, esta escolha deverá ser feita até noventa dias contados da sua publicação, o que equivale até o dia 10.03.2009.
O sistema anual prevê o pagamento dos créditos inscritos em precatórios no prazo de quinze anos, devendo ser depositado em conta especial percentual correspondente, anualmente, ao saldo total dos precatórios devidos, acrescido do índice oficial de remuneração básica da caderneta de poupança e de juros simples no mesmo percentual de juros incidentes sobre a caderneta de poupança para fins de compensação da mora, diminuído das amortizações e dividido pelo número de anos restantes no regime especial de pagamento. Fica, ainda, excluída a incidência de juros compensatórios.
Optando pelo sistema de amortização mensal, os Estados, Distrito Federal e os Municípios deverão depositar mensalmente, em conta especial criada para tal fim, 1/12 (um doze avos) do valor calculado percentualmente sobre as respectivas receitas correntes líquidas, apuradas no segundo mês anterior ao mês de pagamento. A aplicação desse percentual poderá variar de 1% a 2%, dependendo do enquadramento previsto nos incisos I e II do §2º, do art. 97 do ADCT. Nos termos do §14 do mencionado artigo, este regime especial vigorará enquanto o valor dos precatórios devidos for superior ao valor dos recursos destinados ao seu pagamento.
De acordo com esse dispositivo, o Distrito Federal e os Estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, sujeitos ao regime especial, depositarão em conta especial um percentual de, no mínimo, 1,5% (um e meio por cento) sobre as respectivas receitas correntes líquidas, ao passo que os seus Municípios estarão sujeitos ao depósito de, no mínimo, 1% (um por cento) sobre as respectivas receitas correntes líquidas.
Por sua vez, os Estados das regiões Sul e Sudeste, cujo estoque de precatórios pendentes das suas administrações direta e indireta corresponder a até 35% (trinta e cinco por cento) do total da receita corrente líquida, e seus respectivos Municípios, cujo estoque de precatórios pendentes corresponder a mais de 35% (trinta e cinco por cento), estarão sujeitos ao depósito de, no mínimo, 1,5% (um e meio por cento) sobre as respectivas receitas correntes líquidas.
Já os Estados das regiões Sul e Sudeste que tiverem estoque de precatórios pendentes de suas administrações direta e indireta correspondente a mais de 35% (trinta e cinco por cento) da receita corrente líquida, poderão optar, por ato do Poder Executivo, pelo depósito em conta especial de, no mínimo, 2% (dois por cento) sobre as respectivas receitas correntes líquidas. Os Municípios dessas regiões e cujo estoque de precatórios pendentes corresponder a até 35% (trinta e cinco por cento) da sua receita, por sua vez, estarão sujeitos ao depósito de, no mínimo, 1% (um por cento) sobre as respectivas receitas correntes líquidas.
O conceito de receita corrente líquida é apresentado pelo §3º do art. 97, do ADCT, que entende ser esta o somatório das receitas tributárias, patrimoniais, industriais, agropecuárias, de contribuições e de serviços, transferências correntes e outras receitas correntes, incluindo as oriundas do §1º do art. 20, da CF, verificado no período compreendido pelo mês de referência e os 11 (onze) meses anteriores, excluídas as duplicidades. Serão, todavia, deduzidas nos Estados, as parcelas entregues aos Municípios por determinação constitucional e, nos Estados, no Distrito Federal e nos Municípios, a contribuição dos servidores para custeio do seu sistema de previdência e assistência social e as receitas provenientes da compensação financeira referida no §9º do art. 201 da CF.
A conta especial acima referida será administrada pelo Tribunal de Justiça local, para pagamento de precatórios expedidos pelos tribunais ou juízos das execuções. Sem embargo disso, os recursos nela depositados não poderão retornar aos Estados, Distrito Federal e Municípios devedores. Além do mais, pelo menos 50% (cinquenta por cento) de tais recursos serão utilizados para pagamento de precatórios em ordem cronológica de apresentação, respeitadas as preferências de créditos alimentares do mesmo ano e as de créditos alimentícios de idosos ou portadores de doença grave, até o triplo do limite para requisição de pequeno valor, para os requisitórios de todos os anos.
Nos casos em que não se possa estabelecer a precedência cronológica entre dois precatórios, conforme disposto no §7º, pagar-se-á primeiramente o precatório de menor valor.
4 INSTITUIÇÃO DO PAGAMENTO POR LEILÃO
Os entes federativos sob regime especial poderão destinar o restante dos recursos, mediante ato do Poder Executivo, para pagamento de precatórios por meio de leilão, ou para pagamento a vista de precatórios não quitados, em ordem única e crescente de valor por requisitório, ou ainda destiná-los a pagamento por acordo direto com os credores, na forma estabelecida por lei própria da entidade devedora, que poderá prever a criação e forma de funcionamento de câmara de conciliação.
Os precatórios, a partir da EC nº 62/2009, poderão ser legalmente quitados por meio de leilões, realizados por meio de sistema eletrônico administrado por entidade autorizada pela Comissão de Valores Mobiliários ou pelo Banco Central do Brasil. Nos termos do §9º do art. 97, ADCT, será admitida a habilitação de precatórios, ou parcela de cada precatório indicada pelo seu detentor, em relação aos quais não esteja pendente, no âmbito do Poder Judiciário, recurso ou impugnação de qualquer natureza.
No leilão, poderá ser feita, por iniciativa do Poder Executivo, a compensação com débitos líquidos e certos, inscritos ou não em dívida ativa e constituídos contra o devedor originário, pela Fazenda Pública devedora até a data da expedição do precatório, ressalvados aqueles cuja exigibilidade esteja suspensa, ou que já tenham sido objeto de abatimento nos termos do §9º do art. 100 da CF.
O leilão ocorrerá por meio de oferta pública a todos os credores habilitados, pelo respectivo ente federativo devedor, sendo realizado tantas vezes quanto necessário em função do valor disponível. A competição por parcela do valor total ocorrerá a critério do credor, com deságio sobre o valor desta. "Significa que deve receber aquele que oferecer um maior deságio, seguido, sucessivamente, pelos que forem oferecendo deságios vantajosos ao ente público devedor". (CUNHA, 2010, p. 353).
5 PREVISÃO DE NOVOS TIPOS DE SANÇÕES
O §10 do mencionado artigo, introduzido pela EC nº 62/2009, traz hipóteses de sanção à pessoa jurídica de direito público devedora que não faça, tempestivamente, a liberação dos recursos depositados em conta especial. O Presidente do Tribunal poderá determinar o sequestro de quantia nas contas de Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, até o limite do valor não liberado. Ademais, será constituído, alternativamente, em favor dos credores de precatórios daqueles entes federativos, direito líquido e certo, autoaplicável e independentemente de regulamentação, à compensação automática de débitos lançados contra os próprios credores. Restando saldo, ainda, em favor destes, o valor terá automaticamente poder liberatório do pagamento de tributos de Estados, Distrito Federal e Municípios devedores, até onde se compensarem.
Outra hipótese de sanção, em caso de não liberação tempestiva dos recursos correspondentes, consiste na possibilidade do chefe do Poder Executivo responder na forma da legislação de responsabilidade fiscal e de improbidade administrativa. Além disso, enquanto perdurar a omissão, a entidade devedora não poderá contrair empréstimo externo ou interno, ficando impedida de receber transferências voluntárias. Igualmente, a União deverá punir o ente federativo devedor, retendo os repasses relativos ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal e ao Fundo de Participação dos Municípios. Este valor retido deverá ser depositado nas contas especiais referidas no §1º, abertas especificamente para pagamento dos precatórios, não podendo o dinheiro ser retornado aos entes públicos.
Ressalvada a hipótese de não liberação dos recursos correspondentes à satisfação dos créditos pelo regime especial, os Estados, Distrito Federal e os Municípios devedores que estiverem realizando pagamentos conforme este regime, nos termos do §13 do art. 97 do ADCT, não poderão sofrer sequestro de valores.
O regime especial introduzido pela EC nº 62/2009 prevê a exclusão de grande parte das normas contidas no art. 100 da CF. No entanto, estas voltarão a ser observadas pelo ente federativo devedor adepto ao sistema mensal, quando o valor dos precatórios restar inferior ao dos recursos destinados ao seu pagamento. Caso a escolha tenha sido pelo sistema anual, este se findará com o final do prazo de quinze anos, quando voltará a ser aplicado o art. 100 da CF.
6 CONSIDERAÇÕES SOBRE O NOVO REGIME DE PAGAMENTO
A EC no 62/2009 instituiu uma sistemática alternativa e transitória de liquidação das dívidas públicas, objeto de precatório judicial, que não tenham sido devidamente pagas. A referida Emenda, conforme o relatório da Il. Senadora Kátia Abreu, em parecer sobre a PEC nº 12/2006, da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, tem como finalidade expressa a seguinte:
Fica clara, portanto, a impossibilidade de muitos estados e municípios pagarem sua dívida de precatórios judiciais em curto espaço de tempo.
[...]
Seria desejável que os orçamentos dos estados e municípios permitissem a vinculação de maior volume de recursos ao pagamento de precatórios. A realidade, entretanto, é bem diferente.
A tentativa de equacionar o volume de precatórios não pagos pelos Estados, Distrito Federal e Municípios revela-se ambígua até mesmo neste relatório quando há o reconhecimento de que "mesmo vinculando os limites da receita corrente líquida previstos nesta PEC, não será possível liquidar todo o estoque de precatórios em atraso no prazo de quinze anos. A limitação imposta apenas cria um outro problema a ser resolvido daqui a quinze anos".
Marçal Justen Filho (2007, p. 164), em estudo sobre as mudanças no regime de pagamento dos precatórios, expostas na PEC nº 12/2006, entende haver os seguintes efeitos jurídicos derivados: a eliminação do dever de alocar recursos suficientes para a liquidação integral dos precatórios, a indeterminação dos montantes a serem alocados, a indeterminação quanto à data do pagamento, a eliminação da ordem cronológica de pagamentos e a redução indireta do valor real das dívidas estatais, visto que os créditos poderão ser liquidados mediante a oferta de um "desconto".
Alguém poderia afirmar que as inovações da PEC apenas refletiriam a incorporação pelo Direito de uma situação de fato já existente.
O argumento consistiria em que a Fazenda Pública já não paga as suas dívidas e, por isso, a PEC apenas estaria formalizando essa situação de fato, prevendo uma solução para que – ainda que danosa para os credores – seria menos nociva do que a continuidade do atual cenário.
Esse tipo de raciocínio é despropositado e descabido no plano das normas constitucionais.
O ponto fundamental reside em que qualquer alteração da disciplina constitucional deve ser examinada, em primeiro lugar, sob o prisma da sua compatibilidade com o sistema jurídico. Existem princípios e regras constitucionais que não comportam revogação ou modificação: a afirmativa de que, "na prática", esses princípios e regras não são observados, não autoriza a sua supressão da Constituição. (JUSTEN FILHO, 2007, p. 165-166).
A obrigatoriedade de se observar a ordem cronológica de inscrição dos precatórios demonstrou a moralização que o sistema de pagamento alcançou ao longo do tempo. A sua previsão em sede constitucional, desde 1934, significa a garantia de que o Estado deve pagar os seus débitos observando-se os princípios constitucionais, ínsitos ao Estado Democrático de Direito. Este, por sua vez, abrange o valor democrático do acesso à justiça, que pressupõe o acesso a uma justiça justa e efetiva. Isso não poderia ser diferente ao modo de executar os débitos contra a Fazenda Pública.
O regime especial por depósitos anuais, no prazo de quinze anos, é compreendido por Leonardo José Carneiro da Cunha como uma afronta ao princípio constitucional da duração razoável do processo, haja vista não ser compatível com um processo justo, que ofereça resultados efetivos num prazo razoável. Como é afirmado na ADI nº 4.357, o parcelamento de débitos em quinze anos é "verdadeira zombaria, galhofa que se faz ao jurisdicionado e ao próprio Poder Judiciário". Ademais disso, a mencionada ADI assevera que o Poder Público não pode impor ao jurisdicionado a forma e o tempo em que o pagamento vai ocorrer, tendo em vista que o precatório nada mais é do que a garantia constitucional de cumprimento das decisões judiciais.
A nova moratória conferida aos entes estatais representa ao credor da Fazenda Pública a sujeição a mais um prazo, para então ter adimplida aquela obrigação constante de decisão judicial já transitada em julgado. A confiança legítima que se deve ter frente aos atos públicos, segundo Leonardo José Carneiro da Cunha, põe-se em risco, porquanto o princípio da boa-fé deixa de ser atendido, em razão de ausência de conteúdo ético na atuação do ente federativo devedor.
Para que se atenda à boa-fé e à confiança, garantindo-se um mínimo de conduta ética e de estabilização nas relações jurídicas, é preciso que se continue a conferir primazia à coisa julgada, afastando-se qualquer instabilidade ou desconfiança nas decisões proferidas pelo Judiciário, cuja função e atividade devem ser fonte de segurança, respeito e confiabilidade por parte dos jurisdicionados. (CUNHA, 2010, p. 359).
Ao instituir o regime especial por depósitos mensais, o legislador fixou percentuais que variam entre 1% e 2%, incidentes sobre as receitas correntes líquidas dos entes fazendários. O montante das condenações judiciais não é observado, pois as alocações de recursos serão promovidas segundo o critério de uma porcentagem sobre a receita. "Portanto, a elevação das condenações passará a ser algo indiferente. Sucessivas, reiteradas e vultosas condenações não trarão consequência alguma" (JUSTEN, 2009, p. 1).
Nas palavras da ADI nº 4.357,
com efeito, a consignação direta ao Poder Judiciário das dotações orçamentárias e dos créditos abertos ao pagamento de precatórios, bem como a intenção do constituinte derivado de frustrar esses pagamentos devidos, e já reconhecidos pela autoridade da decisão judicial, não podem ser passíveis de contingenciamento, daí a inconstitucionalidade do dispositivo ao limitar a receita destinada ao pagamento de precatórios aos percentuais de receita líquida dos entes federativos (art. 97, §2º, incisos I, alíneas ‘a’ e ‘b’, e II, alíneas ‘a’ e ‘b’), sendo claro que os valores devem compreender a integralidade dos precatórios devidos, justamente para que até o final do exercício seguinte se opere o pagamento daqueles apresentados até 1º de julho.
Diante do exposto, percebe-se que o regime especial por depósitos mensais, em percentuais fixos, tem sido criticado pelo fato destes estarem previamente, e de forma abstrata, estabelecidos no art. 97 do ADCT, sendo este, ao lado de outros dispositivos, declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal.
Ademais disso, a vinculação de 50% (cinquenta por cento) dos recursos destinados ao pagamento de precatórios na ordem cronológica, deixando os valores restantes para realização de leilões, ou pagamento a vista por ordem única e crescente de valor por precatório, como também para acordo direto com os credores, configura um desrespeito aos postulados da coisa julgada, da segurança jurídica e ao princípio da ordem cronológica de apresentação dos precatórios. Segundo o entendimento esposado na mencionada ADI,
é dizer, de outro modo, que aquele que não optar em abrir mão de parte de seu crédito e pretender recebê-lo integralmente acaba sendo castigado pela punição restritiva da limitação orçamentária, sobretudo pela redução dos recursos disponíveis para pagamento de seus direitos reconhecidos em sentença judicial [...].
Para Leonardo José Carneiro da Cunha, a situação se agrava quando o ente público adota o regime por depósitos mensais, seguindo-se da alienação por leilão com oferta pública do valor. Nesse caso, os credores que oferecerem maior deságio serão priorizados, e o regime somente se encerrará quando o valor dos precatórios devidos for inferior ao dos recursos vinculados ao seu pagamento.
Nas lições do mencionado professor, a instituição do regime especial termina por violar o princípio constitucional da moralidade, insculpido no art. 37 da CF. A moralidade administrativa deixa de ser observada quando descumprida determinada decisão, bem como frustrada uma expectativa legítima criada pela própria Administração.
7 CONCLUSÃO
A destinação prevista de percentuais sobre a receita corrente líquida das entidades federativas, de forma prévia e abstrata, pode impactar nas finanças dos entes federados, dadas as suas peculiaridades. Além disso, o pagamento total da dívida distancia-se ainda mais do credor, já que serão necessários 15 anos de pagamento, quando a opção não for pela quitação por leilão.
Resta evidenciado que as significativas mudanças trazidas pela EC no 62/2009 objetivam, primordialmente, fazer a fila de precatórios andar, flexibilizando a ordem cronológica, com impactos na isonomia entre credores e na liquidação integral da dívida, conforme decisão transitada em julgado.
O precatório, por sua vez, não deixa de ser um efeito jurídico de determinada ordem judicial, decorrente de atos processuais pretéritos que levaram à sua expedição. Dispor sobre os efeitos de atos processuais perfeitos e acabados, todavia, termina por afrontar o ato jurídico perfeito, que se encontra previsto na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, em seu art. 6º, §1º. Nada obstante, o direito adquirido e a coisa julgada, previstos no art. 5º, inciso XXXVI, da CF, passam a ser descumpridos com a EC nº 62/2009, fazendo com que se violem cláusulas pétreas imutáveis pelo poder constituinte derivado.
Esta Emenda foi declarada parcialmente inconstitucional pelo STF, em face das suas implicações com os princípios constitucionais, a exemplo da razoável duração do processo, moralidade, Estado de Direito, ato jurídico perfeito e direito adquirido. Com isso, o art. 97 do ADCT, bem como o § 15 do art. 100, da CF, foram declarados inconstitucionais, de modo a revelar os limites a serem observados na sistemática de pagamento dos precatórios.
REFERÊNCIAS
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. A Fazenda Pública em juízo. 8 ed. rev. e atual. São Paulo: Dialética, 2010.
JUSTEN FILHO, Marçal. Emenda dos precatórios: calote, corrupção e outros defeitos. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, nº 34, dez./09. Disponível em: <http://www.justen.com.br/informativo>. Acesso em: 03 mar. 2010.
_________. Estado Democrático de Direito e responsabilidade civil do Estado: a questão dos precatórios. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, ano 5, n. 19, p. 159-208, jul./set. 2007. Disponível em: <http://www.justen.com.br/informativo34/artigos/marcal.pdf>. Acesso em: 03 mar. 2010.
[1] Art. 97. Até que seja editada a lei complementar de que trata o § 15 do art. 100 da Constituição Federal, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios que, na data de publicação desta Emenda Constitucional, estejam em mora na quitação de precatórios vencidos, relativos às suas administrações direta e indireta, inclusive os emitidos durante o período de vigência do regime especial instituído por este artigo, farão esses pagamentos de acordo com as normas a seguir estabelecidas, sendo inaplicável o disposto no art. 100 desta Constituição Federal, exceto em seus §§ 2º, 3º, 9º, 10, 11, 12, 13 e 14, e sem prejuízo dos acordos de juízos conciliatórios já formalizados na data de promulgação desta Emenda Constitucional. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 62/2009).
[2] § 15. Sem prejuízo do disposto neste artigo, lei complementar a esta Constituição Federal poderá estabelecer regime especial para pagamento de crédito de precatórios de Estados, Distrito Federal e Municípios, dispondo sobre vinculações à receita corrente líquida e forma e prazo de liquidação. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009).
Advogado, Pós-graduado em Direito do Estado pelo Instituto Excelência (PODIVM), Graduado em Direito pela Universidade Salvador - UNIFACS.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FILHO, Ricardo Barreto Prata. Breves anotações sobre o ART. 97 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 01 abr 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38844/breves-anotacoes-sobre-o-art-97-do-ato-das-disposicoes-constitucionais-transitorias. Acesso em: 27 dez 2024.
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