RESUMO: Em pleno século XXI se discute o papel da mulher na sociedade pela precariedade de políticas públicas no tratamento da questão do gênero. Em parte certamente a sociedade brasileira fruto do modelo Greco-romano e o fanatismo religioso-cristão aposta na figura masculina como provedora dos dons existenciais necessários a constituição familiar indissociável da função reprodutora feminina como instrumento da felicidade existencial. Pode parecer retrógrado esse discurso, mas ainda hoje encontramos religiões pelo Brasil e mundo afora que pregam o papel submisso da mulher na sociedade como dogma necessário à manutenção familiar e de “contribuintes fiéis” e seus descendentes, além da crença advinda da fé de que só haverá família mediante a união de um homem e uma mulher como escrito na Bíblia. Essa questão apesar de avanços dos movimentos feministas e da revolução silenciosa promovida ao longo do século XX, com a pílula anticoncepcional, o uso do biquine, o desquite, depois o divórcio, e hoje a união estável no campo jurídico ainda é objeto de sofrimento de muitas mulheres a não realização do matrimônio como um dogma tradicionalmente familiar cristão.
Palavras-chave: Ética dialógica; Pertencimento; Gênero; Família; Equidade; Direito.
INTRODUÇÃO
O Debate acerca dos conflitos de gênero são reflexos de um histórico de omissão da sociedade e do Estado em criar um espaço de diálogo pela promoção de novos mecanismos de promoção da igualdade material na esfera pública. Ainda que haja avanço indiscutível a partir da Constituição de 1988 com a isonomia formal e mecanismos legais de proteção aos direitos das mulheres, as grandes conquistas do movimento feminista no campo material advém da revolução silenciosa das mulheres na luta por direitos como proteção contra a violência doméstica, a igualdade salarial, direitos previdenciários decorrentes do reconhecimento da união estável, e do papel proeminente na constituição familiar como a chefia da família e mesmo a dupla jornada de trabalho não reconhecida pelo Estado e sociedade patriarcal.
Um ponto fora da curva diz respeito a PEC das domésticas e se inclui no rol de luta mais amplo contra a herança da própria escravidão (como agregada à casa grande). Essa luta pelo direito à igualdade material é histórica e coube a mulher as funções domésticas e reprodutoras, de cuidar do lar numa cultura cristã-patriarcal.
Hoje a mulher como chefe de família é objeto de análise pelo direito desde o reconhecimento da união estável com base nas relações de afeto e sua equiparação a entidade familiar. Outro debate atual diz respeito à participação política representativa e questão dos espaços públicos. Em tempos longínquos reservado ao homem, nesse sentido para além do debate da violência é preciso rediscutir formas de inserção política, social e cultural tendo como protagonistas mulheres e homens para um entendimento da sociedade no novo milênio. Espaço em que haja menos preconceito e se busque a felicidade na condição humana para além do casamento, da família, mas na superação da crise existencial da própria sociedade e se vislumbrem políticas públicas que permitam a superação do papel submisso da mulher na religião, nos costumes, na vida cotidiana. Haja vista temos um País, em especial nas grandes cidades, em que as mulheres superam o número de homens ao mesmo tempo em que são tratadas desigualmente nas relações de gênero inclusive por estereótipos de que precisa casar e reproduzir para obter a felicidade. Isso é resultado de dogmas morais e religiosos que conduz ao sofrimento humano. E passa pela discussão da liberdade sobre o corpo, a dignidade humana. Também a falta do debate acerca dos direitos e deveres de gênero numa sociedade em crise. A violência é produto histórico-cultural de negação do diálogo existencial e patrimonial da questão do gênero na sociedade contemporânea. Os casos de abuso no metrô em São Paulo, e no Rio são reflexos desse espaço público de não reconhecimento social inclusivo.
1. DIREITO, GÊNERO E EQUIDADE: ASPECTOS FORMAIS
A Constituição Federal como principal documento da isonomia formal assegura entre outros princípios do Estado Democrático de Direito: a cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, pluralismo político.
Essas considerações principiológicas do art. 1º ao 4º da Carta Constitucional são essenciais no entendimento do gênero na constituição de existência digna para todos independente do sexo, mas como condição humana. Daí a necessidade da rediscutir os modelos tradicionais do Estado de Direito calcado na tradição patriarcal e matrimonial para as relações de afeto, solidariedade, inclusão, pluralismo.
Entre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil a própria ideia de construção de uma sociedade livre, justa e solidária, superação da discriminação de sexo, idade, entre outras formas diz respeito ao tratamento social e humanitário às minorias que se encontram em vulnerabilidade histórica entre as quais as mulheres vítimas da violência simbólica e física. Entendemos a solução pacífica e a prevalência dos direitos humanos no âmbito externo e interno como caminho para superação das assimetrias existenciais. Afinal a raça humana é una.
Nossa Constituição está assentada sobre raízes da herança das revoluções francesa e americana quando garante o tratamento isonômico entre homens e mulheres independente de qualquer natureza, tendo como norte o direito a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Esse rol taxativo está expresso no art. 5º, I como direitos e garantias fundamentais:
“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”; (CRFB/1988)
Por sua vez o art. 7º, e seus incisos assegura entre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais a proibição de diferença salarial, além de outros que visem à melhoria de sua condição social. Numa clara alusão a isonomia entre homens e mulheres e o reconhecimento do déficit histórico no tratamento da questão de gênero. Como a licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; licença-paternidade, nos termos fixados em lei; proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei;
No capítulo da previdência social art. 201 e seus incisos encontramos a proteção à maternidade, especialmente à gestante. Além do direito a pensão por morte do segurado, homem ou mulher, cônjuge ou companheiro e dependentes não podendo ser inferior ao salário mínimo.
A própria ampliação dos direitos das domésticas por meio da PEC 72 de 2013 constantes no parágrafo único do art. 7º é resultado do reconhecimento de injustiças sociais com mulheres pobres, e vítimas de exploração histórica pela herança da casa grande e senzala de outros tempos e que acabam por gerar um déficit democrático no tratamento isonômico com os demais trabalhadores de outras profissões. Tais como salário mínimo salário, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo; garantia de salário, nunca inferior ao mínimo, para os que percebem remuneração variável; décimo terceiro salário com base na remuneração integral ou no valor da aposentadoria; proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa; duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos; remuneração do serviço extraordinário superior, no mínimo, em cinquenta por cento à do normal; gozo de férias anuais remuneradas com, pelo menos, um terço a mais do que o salário normal; licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; licença-paternidade, nos termos fixados em lei; aviso prévio proporcional ao tempo de serviço, sendo no mínimo de trinta dias, nos termos da lei; redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; aposentadoria; reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos; além de atendidas as condições estabelecidas em lei e observada a simplificação do cumprimento das obrigações tributárias, principais e acessórias, decorrentes da relação de trabalho e suas peculiaridades, os previstos nos incisos I, II, III, IX, XII, XXV e XXVIII, bem como a sua integração à previdência social. (CRFB/1988, Art. 7º, parágrafo único).
No tocante a questão de gênero a Constituição Federal trouxe avanços marcantes sob o aspecto formal ao tratar da nova concepção de família pela sua ampliação e da responsabilidade decorrentes do poder familiar, tendo por base as relações afetivas. Vejamos:
“Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.
§ 1º - O casamento é civil e gratuita a celebração.
§ 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei.
§ 3º - Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.
§ 4º - Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.
§ 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher.
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
§ 8º - O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. (CRFB/1988).
Nesse sentido como forma de combater a violência doméstica foi criada a Lei Maria da Penha, por meio da Lei 11.340/2006. O artigo 1º dispõe o objetivo da lei: “[...] cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8o do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar”. (LEI 11.340 de 07/08/2006)
2. GÊNERO E A LUTA PELO RECONHECIMENTO PARA ALÉM DAS LEIS
Encontramos hoje, no entanto, a mulher que assume papel de chefe familiar em numerosos lares, ao mesmo tempo desejando seu espaço de pertencimento na esfera pública pela inserção e reconhecimento para além da função reprodutora e doméstica, e de símbolo sexual.
A violência produzida e reproduzida social e culturalmente precisa ser discutida não como revanchismo, mas como meio de superação das assimetrias sociais como ética dialógica que passa pelo campo jurídico e por políticas públicas de promoção da equidade de gênero. Nesse sentido as universidades públicas e privadas, passando pelos meios de comunicação de massa, escolas públicas e privadas, e no próprio seio familiar e religioso poderiam e deveriam ter papel de vanguarda.
O direito tem papel de essencial nesse debate com vistas a construção do Estado Democrático de Direito como fórum permanente da luta pela equidade de gênero. Basta atentarmos para as questões de ordem econômica, cultural, social previstas na Constituição Formal. E a realidade social das mulheres como salários em regra desiguais em relação aos homens; espaços desiguais na representação político-partidária, além do tratamento não isonômico na própria organização da cidade, mal planejadas e que mantém a exclusão da mulher do espaço público.
A própria forma estereotipada com que alguns comerciais de TV e outros veículos de comunicação apontam na figura da mulher como tendo um perfil ideal loira, magra, e com função reprodutora valorizando o corpo e a sexualidade feminina como se esses fossem os atributos mais relevantes da mulher. Acabam por negar o protagonismo social e emancipador do cotidiano de milhões de mulheres na luta histórica pela igualdade.
A cultura midiática e o fanatismo religioso associado a herança patriarcal como formadora de opinião são fatores de difusão ideológica que reforçam a criação de preconceitos e acentua a violência na esfera pública contra a figura feminina e a futilidade associada à vestimenta, e mesmo aos atributos corporais e reprodutores.
Os exemplos de abusos como o do metrô em São Paulo, ou dos vagões exclusivos para mulheres no Rio são consequência da falta de diálogo na esfera pública do protagonismo feminino e seu espaço de reconhecimento social, cultural e político.
CONCLUSÃO
O Debate da questão de gênero precisa ser realizado para uma sociedade democrática de fato e de direito se realize. Mais que desejo e vontade, o fanatismo religioso e o preconceito advindo da herança colonial e patriarcal como modelo Greco-romano adaptada à sociedade elitista e autoritária no Brasil ainda não se abriu à ética dialógica para a superação do sofrimento humano existencial na contemporaneidade.
Uma sociedade livre, justa e solidária advirá a partir do reconhecimento social, cultural e político dos sujeitos em vulnerabilidade social incluído o papel da mulher no espaço público.
Dilemas como o aborto, a exploração sexual de meninas nas ruas, a falta de regulamentação da profissão das prostitutas faz parte desse debate. E principalmente a maior representatividade das mulheres nas casas legislativas e na vida pública como um todo se faz primordial. Mais que isso é necessário um diálogo construtivo sobre o modelo de felicidade individual e social para além da família tradicional que passa pelas relações de afeto e alcança a dignidade da pessoa humana como fundamento da sociedade e do Estado Democrático de Direito no novo milênio.
REFERÊNCIAS
BRASIL, Constituição Federal da República Federativa do Brasil. 14. ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2003.
____________. Lei nº 11.430 de 26.12.2006 . Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11430.htm>. Acesso em 05 de abril de 2014.
Advogado, Membro da ABRAFI, membro do IBDH. Doutor em Direito - FADISP.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOBRINHO, Afonso Soares de Oliveira. Gênero, direito e equidade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 09 abr 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38896/genero-direito-e-equidade. Acesso em: 23 dez 2024.
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