de acordo com o artigo 649, inciso X, do CPC, a quantia depositada em caderneta de poupança é absolutamente impenhorável, desde que até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos. Tal medida visa resguardar um mínimo existencial à sobrevivência do executado, o qual não pode ver expropriados de todos os seus bens e rendimentos para satisfação da obrigação perante o credor.
Quanto ao limite estabelecido pelo CPC – e mantido no anteprojeto do novo código -, Araken de Assis[1], citado por José Miguel Garcia Medina, entende que não se limita a uma única aplicação de poupança. Havendo várias contas de valor inferior ao limite legal, a impenhorabilidade recai sobre tantas quantas bastem para atingir os 40 (quarenta) salários mínimos, podendo o excedente ser objeto de execução.
Ainda, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça[2] entende que mesmo após a alteração do CPC pela lei n. 11.382/06, a qual incluiu os investimentos e aplicações entre os bens preferenciais à penhora, equiparando-os ao dinheiro em espécie, não se pode afastar a aplicação do limite previsto no artigo 649, inciso X:
PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. CONVÊNIO BACEN-JUD. PENHORA. DEPÓSITOS BANCÁRIOS. LEI Nº 11.382/06. 1. Esta Corte admite a expedição de ofício ao Bacen para se obter informações sobre a existência de ativos financeiros do devedor, desde que o exeqüente comprove ter exaurido todos os meios de levantamento de dados na via extrajudicial. 2. No caso concreto, a decisão indeferitória da medida executiva requerida ocorreu depois do advento da Lei 11.382/06, a qual alterou o Código de Processo Civil para: a) incluir os depósitos e aplicações em instituições financeiras como bens preferenciais na ordem de penhora, equiparando-os a dinheiro em espécie (art. 655, I) e; b) permitir a realização da constrição por meio eletrônico (art. 655-A). Desse modo, o recurso especial deve ser analisado à luz do novel regime normativo. Precedentes de ambas as Turmas da Primeira Seção. 3. De qualquer modo, há a necessidade de observância da relação dos bens absolutamente impenhoráveis, previstos no art. 649 do CPC, especialmente, "os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social" (inciso VIII), bem como a quantia depositada em caderneta de poupança até o limite de quarenta (40) salários mínimos (X). 4. Recurso especial provido. – original sem grifos.
Como dito acima, a razão para o legislador estabelecer um limite de impenhorabilidade é a necessidade de resguardar um patrimônio mínimo ao executado para sua subsistência. De acordo com Humberto Theodoro Jr[3]., “esse valor de quarenta salários mínimos passa a ser visto como um montante com função de segurança alimentícia ou de previdência pessoal e familiar”.
Trata-se de um reflexo do princípio da dignidade da pessoa humana previsto constitucionalmente na legislação processual. O princípio em comento é um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, previsto expressamente no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal.
De acordo com Sidney Guerra e Lilian Márcia Balmant Emerique[4], o princípio da dignidade da pessoa humana, analisado sob a garantia de um piso mínimo existencial, se consubstancia em sua face garantística, a qual impede agressão do direito, isto é, requer cedência de outros direitos ou de deveres (pagar imposto, p. ex.) perante a garantia de meios que satisfaçam as mínimas condições de vivência digna da pessoa ou da sua família. Neste aspecto o mínimo existencial vincula o Estado e o particular.
Seguindo este entendimento, o Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região julgou recentemente o Agravo Legal em Agravo de Instrumento n. 0005673-39.2011.404.0000/RS[5], onde o fundamento para a impenhorabilidade dos depósitos em caderneta de poupança foi o princípio da dignidade da pessoa humana:
TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. BLOQUEIO DE VALORES EM INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS PARA FINS DE PENHORA. SALÁRIO. PROVENTOS DE APOSENTADORIA. IMPENHORABILIDADE. ART. 649, IV E X DO CPC. 1. A penhora sobre salário, sobre proventos de aposentadoria e também sobre depósitos em conta poupança (até o limite de quarenta salários mínimos) não é admitida pelo artigo 649, incisos IV e X do CPC. 2. A impenhorabilidade da verba remuneratória é medida imposta pelo legislador em obediência ao princípio da dignidade da pessoa humana, tendo em vista a viabilidade de sustento do devedor e de sua família, a fim de que mantenha uma vida minimamente digna. 3. As quantias depositadas em caderneta de poupança são impenhoráveis até o limite de 40 salários mínimos. Ressalvado que, caso o devedor possua quantia além do limite acima em caderneta de poupança ou qualquer quantia em investimento não protegido pela impenhorabilidade, ficará sujeito a penhora do valor que exceder ao limite legal. 4. O agravo legal não traz elementos para alterar o entendimento do julgador. – original sem grifos.
Seguindo na trilha do princípio da dignidade da pessoa humana, há quem entenda que, ainda que haja expressamente previsão da impenhorabilidade dos depósitos até 40 (quarenta) salários mínimos, esta não pode ser oposta ao credor de pensão alimentícia, por força do disposto no parágrafo 2º do próprio artigo 649.
Trata-se de interpretação extensiva do inciso IV do mesmo artigo para incluir os investimentos a que se refere o inciso X, aplicando o princípio da dignidade da pessoa humana de forma a privilegiar a qualidade do direito que se pretende resguardar na hipótese[6].
Tal posicionamento se justifica no fato de parecer “contraditório, de todo modo, admitir-se a prisão civil como medida executiva, em execução de alimentos, e não se admitir a penhora de dinheiro deposito em caderneta de poupança, o que é, evidentemente, medida executiva menos gravosa ao executado (art. 620 do CPC)[7]”.
Mais uma vez há aplicação de princípio específico do processo executivo já abordado em outro trabalho e com previsão expressa no CPC em seu artigo 620: o da menor restrição possível. Assim, é preferível afastar a impenhorabilidade dos depósitos em caderneta de poupança do devedor de pensão alimentícia do que empreender medida restritiva de liberdade, a qual, se atingir seu fim, levará muito mais tempo do que o bloqueio de quantias em conta-poupança.
No que tange ainda às exceções da jurisprudência à impenhorabilidade dos rendimentos da caderneta de poupança, o Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo entendeu ser possível o bloqueio de 20% (vinte por cento) dos valores, mesmo que inferiores aos 40 (quarenta) salários mínimos, quando esgotados todos os demais meios de satisfação do crédito[8]:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO POR TÍTULO JUDICIAL. PENHORA ON LINE. CONTA CORRENTE COM CRÉDITO DE PROVENTOS DE APOSENTADORIA E CADERNETA DE POUPANÇA. POSSIBILIDADE. MEDIDA EXCEPCIONAL. LIMITAÇÃO A 20% DOS VALORES DEPOSITADOS. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. Não se olvida a expressão literal do art. 649, inciso IV e X, do CPC, com a redação dada pela Lei n° 11.382/06. Mas, em execução de título judicial, na qual se esgotaram todos os meios disponíveis para a solvência do débito, restando apenas a penhora on line como único meio para minimizar o crédito, enseja-se o acolhimento de outros valores jurídicos existentes no plano constitucional, como o princípio da efetividade e a regra da proporcionalidade para a resolução do conflito de interesses. Viabiliza-se, com eles, a mitigação do rigor estampado na norma processual, sem ferir a garantia ao salário do trabalhador. E essa mitigação deve ser aplicada apenas em caráter excepcional, não se caracterizando onerosidade excessiva a separação de 20% do maior saldo de cada mês existente na conta corrente da devedora que se encontre nessa situação, ainda que proveniente de proventos de aposentadoria, até o limite do débito. – original sem grifos.
Como se vê, mais uma vez houve a ponderação de princípios constitucionais e processuais para se chegar à solução mais justa às partes. Por óbvio que não se pode admitir a impenhorabilidade absoluta nos moldes do inciso X do artigo 649, quando esgotados todos os outros meios e o devedor possui créditos em caderneta de poupança ou proventos que não serão totalmente sacrificados de forma a impedir seu sustento.
Por fim, a exceção mais interessante acerca do tema é a trazida em recente julgado do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, no que tange à impenhorabilidade dos saldos de poupança, quando comprovado que os valores seriam destinados à aquisição de bem para moradia da família[9]:
PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. EXECUÇÃO FISCAL. PENHORA. POUPANÇA VINCULADA DIRETAMENTE À AQUISIÇÃO DO BEM DE FAMÍLIA. IMPENHORABILIDADE. 1. O Tribunal de origem indeferiu a penhora de dinheiro aplicado em poupança, por verificar a sua vinculação ao financiamento para aquisição de imóvel caracterizado como bem de família. 2. Embora o dinheiro aplicado em poupança não seja considerado bem absolutamente impenhorável – ressalvada a hipótese do art. 649, X, do CPC –, a circunstância apurada no caso concreto recomenda a extensão do benefício da impenhorabilidade, uma vez que a constrição do recurso financeiro implicará quebra do contrato, autorizando, na forma do Decreto-Lei 70/1966, a retomada da única moradia familiar. 3. Recurso Especial não provido.
Tal decisão reflete a incorporação das regras de impenhorabilidade trazidas pela lei n. 8009/90, as quais foram incluídas na lei n. 11.382/06. Analisando o acórdão, percebe-se como foi harmonizado o conflito de duas das regras trazidas pelo pelas leis em comento, vez que de um lado há o bem de família, impenhorável por força de lei ou convenção (artigo 1.711 do CC), contra a impenhorabilidade dos valores em caderneta de poupança.
O acórdão[10] contra o qual foi interposto o Recurso Especial acima transcrito possui interessante lição acerca da ponderação de direitos:
AGRAVO. BLOQUEIO DE CONTA VINCULADO A FINANCIAMENTO DE IMÓVEL VISANDO SALDAR DÉBITO DE ICMS. ÚNICO IMÓVEL. RESIDÊNCIA FAMILIAR. ART. 1º DA LEI 8.009/90. DIREITO À MORADIA. I – A contar da lei 8.009/90 o imóvel residencial próprio do casal ou da entidade familiar é impenhorável e não responde por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, salvo nas hipóteses previstas. II – O Direito é um sistema de disciplina fundado na natureza humana, razão porque muitas vezes as fórmulas gerais com que a lei se concretiza, transmitindo-se à aplicação do direito, excede a capacidade de previsão do legislador de incluir todos os casos ocorrentes, todas as circunstâncias particulares que os cercam. Por isso a aplicação rígida da fórmula geral, sem atentar para casos não previstos, revestidos de modalidades ou circunstâncias especiais, pode importar injustiça. Sendo assim, impossível o bloqueio de conta poupança vinculada ao financiamento do único imóvel destinado à moradia da unidade familiar. Agravo desprovido. – original sem grifos.
A doutrina ensina que a restrição que recai sobre o bem de família não é absoluta, vez que não se pode permitir que as regras da impenhorabilidade sejam abusivamente manejadas pelo executado, com a finalidade de impedir a atuação executiva[11]:
As regras relativas à impenhorabilidade do bem de família, portanto, devem ser interpretadas teleologicamente, e em atenção aos princípios que norteiam a realização das medidas executivas. Pode-se dizer, sem medo de errar, que o legislador não desejou que o executado utilizasse a Lei 8.009/90 como um mecanismo que possibilitasse o inadimplemento de suas obrigações. Por isso, pensamos ser possível extrair da Lei 8.009/90 o princípio segundo o qual a impenhorabilidade do bem de família deve ceder sempre que este for o único bem do executado e seu valor ultrapassar excessivamente aquele que seria condizente com o padrão médio de vida do homem comum. Pensamos que esta solução deve ser aplicada de lege lata, interpretando-se teleologicamente a Lei 8.009/90 e levando-se em consideração os princípios da máxima efetividade – que tutela o exeqüente – e da menor restrição possível – que tutela o executado.
Desta forma, pode-se concluir que a regra trazida pelo artigo 649, inciso X, do CPC não é inconstitucional ou ilegal. Trata-se de medida de exceção, a qual deve ser interpretada restritivamente, porém observando-se os princípios, como o da dignidade da pessoa humana e o da menor restrição possível.
São inúmeros os exemplos na doutrina e na jurisprudência sobre exceções, porém não se deve deixar de afirmar que a impenhorabilidade dos rendimentos de caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários mínimos, são absolutamente impenhoráveis como regra.
Caberá ao Juiz, de acordo com o caso concreto, aplicar a regra ou as exceções através da ponderação de direitos, interesses e princípios, tarefa primordial do aplicador do Direito.
[1] Manual da Execução. 11. Ed. N. 42.4. p. 225. In Processo Civil Moderno. P. 163.
[2] REsp 1070308 / RS. Rel. Ministro CASTRO MEIRA. DJe 21/10/2008.
[3] A reforma da execução do título extrajudicial. P. 53. Editora Forense. Rio de Janeiro. 2007.
[4] In Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VII, Nº 9 - Dezembro de 2006. P. 387. http://www.fdc.br/Arquivos/Mestrado/Revistas/Revista09/Artigos/Sidney.pdf
[5] Rel. Juíza Federal Vânia Hack de Almeida. J. 26.07.2011.
[6] MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. P. 761. Editora RT. 2011.
[7] Idem.
[8] Agravo de Instrumento n° 990.10.231464-2. Rel. Des. Adilson de Araújo. J. 03.08.2010.
[9] REsp 707623 / RS. Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN. DJe 24/09/2009.
[10] TJRS. 21ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento n. 70005982475. Rel. Des. Genaro José Baroni Borges. J. 21.05.2003.
[11] MEDINA, José Miguel Garcia. Código de Processo Civil Comentado. P. 754. Editora RT. 2011.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARANDA, Alexandre Lundgren Rodrigues. Da penhora de caderneta de poupança e dignidade da pessoa humana: constitucionalidade, legalidade e limite Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 14 abr 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38942/da-penhora-de-caderneta-de-poupanca-e-dignidade-da-pessoa-humana-constitucionalidade-legalidade-e-limite. Acesso em: 23 dez 2024.
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