O objeto deste estudo é a possibilidade de se acionar o Estado para reparação de danos provocados a um particular em razão de decisão judicial e de ato administrativo editado pelo Poder Judiciário.
Espécie do gênero responsabilidade civil extracontratual do Estado, o tema da responsabilidade por danos decorrentes de atos judiciais é complexo. Contam-se adeptos desde a tese da total irresponsabilidade até a da total responsabilidade.
Entre os que defendem a irresponsabilidade estão Mário Guimarães, Pedro Lessa, para quem os juízes não são responsáveis por conseqüências negativas de suas decisões (apud CAVALIERI FILHO, p. 260).
Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (p. 627) sintetiza os argumentos da corrente:
“O Poder Judiciário é soberano;
Os juízes têm que agir com independência no exercício das funções, sem o temor de que suas decisões possam ensejar a responsabilidade do Estado;
O magistrado não é funcionário público;
A indenização por dano decorrente de decisão judicial infringiria a regra da imutabilidade da coisa julgada, porque implicaria o reconhecimento de que a decisão foi proferida com violação da lei.”
Acrescente-se o argumento da possibilidade de revisão da decisão na via judicial, em razão do duplo grau de jurisdição.
Para a maioria da doutrina, entretanto, tais argumentos são inconsistentes.
Falar em soberania para o Poder Judiciário é um erro. Soberano é o Estado, entidade máxima do poder político. A soberania é una e significa a inexistência de um outro poder acima do poder do Estado dentro da ordem jurídica interna. O Judiciário não atua no nível externo, onde se faz presente a soberania, mas no nível interno. O juiz é órgão do Estado como o são os membros do legislativo e as autoridades executivas (CAVALIERI FILHO, p. 261).
Também não subsiste a idéia de independência do juiz e de que a responsabilização lhe incutiria temor profissional. O magistrado é órgão do Estado; ao agir, não age apenas em seu nome, mas em nome do Estado, do qual externa a vontade. Em razão de personificar o Estado, o juiz não pode temer exercer seu ofício, que, antes de tudo, é um múnus público. De qualquer forma, o argumento é falho porque a possibilidade de o próprio magistrado responder - pessoalmente - por seus atos é antiga, presente no art. 133 do CPC:
Art. 133. Responderá por perdas e danos o juiz, quando:
I - no exercício de suas funções, proceder com dolo ou fraude;
II - recusar, omitir ou retardar, sem justo motivo, providência que deva ordenar de ofício, ou a requerimento da parte.
Na seqüência, não é de se admitir que o juiz, por não ser funcionário público, não esteja ao alcance da responsabilização civil. Consoante a CF, art. 37, § 6o:
Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
O vocábulo “agentes” fulmina qualquer dúvida, pois inclui todo aquele incumbido da realização de algum serviço público, em caráter permanente ou transitório.
Quanto à possibilidade de revisão judicial da decisão questionada, por via de recursos, tem-se, por óbvio, que nem mesmo a avaliação por mais de um órgão julgador garante a correção do julgado e a reparação da injustiça.
Por fim, o argumento mais forte a favor da irresponsabilidade do Estado por ato do Poder Judiciário é a suposta violação da coisa julgada. Para a reforma de decisões judiciais, o ordenamento jurídico prevê recursos, oponíveis até a decisão final, e, não bastasse, os institutos da ação rescisória e da revisão criminal, para além da decisão final, mas submetidos à preclusão temporal. Todavia, esgotados todos, o respeito à coisa julgada inibiria a responsabilidade do Estado, visto que, dentro dos limites naturais, o máximo foi feito na busca por uma sentença justa e correta. Impor a responsabilidade do Estado em tais casos significaria violar um dos dogmas em que se funda o sistema jurídico.
A resposta ao empecilho é simples: não há identidade de ações entre a pretensão condenatória original e a pretensão reparatória, pois as partes são diferentes – na indenização o prejudicado aciona o Estado - e os pedidos são diferentes - o pedido da ação indenizatória é a reparação patrimonial, e não a modificação da decisão original. Com mais propriedade explica Maria Sylvia Zanella DI PIETRO (p. 628-629):
“Com efeito, o fato de ser o Estado condenado a pagar indenização decorrente de dano ocasionado por ato judicial não implica mudança na decisão judicial. A decisão continua a valer para ambas as partes; a que ganhou e a que perdeu continuam vinculadas aos efeitos da coisa julgada, que permanece inatingível. É o Estado que terá que responder pelo prejuízo que a decisão imutável ocasionou a uma das partes, em decorrência de erro judiciário.”
Resta, como golpe final na teoria da irresponsabilidade, asseverar que o serviço público judiciário, em razão da falibilidade humana, pode causar dano às partes que vão a juízo pleitear direitos, propondo ou contestando ações, ou na qualidade de réus. Voluntário ou involuntário, o erro de conseqüências danosas exige reparação, respondendo o Estado civilmente pelos prejuízos causados.
Antes de verificar como se caracteriza a hipótese de reparação civil, cabe diferenciar atos judiciais típicos e atividade judiciária (CAVALIERI FILHO, p. 262). Judiciárias são todas as atividades exercidas pelo Poder Judiciário independentemente de sua natureza, do que se extrai que a atividade judiciária é o gênero do qual os atos tipicamente judiciais – a atividade jurisdicional - constituem espécie.
Os atos não-jurisdicionais são aqueles de natureza materialmente administrativa, assim entendidos os atos de gestão do Poder Judiciário, como nomeação de funcionários e concessão de licenças, e os atos ordinatórios do procedimento processual (despachos).
Os atos jurisdicionais podem ser atos de jurisdição contenciosa ou atos de jurisdição voluntária. São manifestações do magistrado que detenham conteúdo deliberativo.
Quanto à atividade jurisdicional, duas hipóteses de reparação vêm expressamente previstas na CF, art. 5º, LXXV: “o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”.
A atividade tipicamente judiciária é passível dos denominados erros judiciais in iudicando e in procedendo. O magistrado, como ser humano, está sujeito a equívocos de julgamento quanto ao direito e ao fato. Se o erro foi motivado por falta pessoal do órgão judicante, ainda assim o Estado responde, exercendo a seguir o direito de regresso sobre o causador do dano, por dolo ou culpa.
Para não inviabilizar o funcionamento do Poder Judiciário e perturbar a independência dos juízes, impõe-se aqui um regime cauteloso, afastando a responsabilidade por atos de interpretação das normas de Direito e pela valoração dos fatos e da prova. Vale ressaltar que não se pode responsabilizar o magistrado pelas decisões que tome quando se trata de simples erro de apreciação ou de interpretação. Os únicos casos nos quais sua responsabilidade pode ser admitida, em ação regressiva, são os que demonstrem uma culpa qualificada, grosseira, como explica Sergio CAVALIERI FILHO: “por erro judiciário deve ser entendido o ato jurisdicional equivocado e gravoso a alguém, tanto na órbita penal como civil” (p. 263). Adiciona o autor que o mesmo deve ser observado quanto ao ato jurisdicional cautelar (p. 265).
Outra hipótese de reparação decorre da atuação dolosa ou fraudulenta do juiz, como visto do art. 133 do Código de Processo Civil, caso em que exsurge, além da responsabilidade do Estado, a responsabilidade pessoal do magistrado (CAVALIERI FILHO, p. 266-267).
A atividade do Poder Judiciário de produzir atos não-jurisdicionais, ou atos administrativos, em exercício de função atípica, também sujeita o Estado à responsabilidade civil com base na CF, art. 37, § 6o (CAVALIERI FILHO, p. 266).
A jurisprudência de nossos tribunais traz vários exemplos de responsabilização do Estado por atos do Poder Judiciário, em especial por atos jurisdicionais na esfera criminal:
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO - ERRO JUDICIAL - APLICAÇÃO DO ARTIGO 630 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. EXCEÇÃO PREVISTA NO PARÁGRAFO 2º - NÃO OCORRENTE.
O condenado que, posteriormente, é absolvido em revisão criminal, faz jus a indenização, ressalvado os casos em que o erro ou a injustiça proceder de ato ou falta imputada ao próprio condenado.
Agravo improvido.
(STJ, AgRg no Ag 415834, rel. Ministro GARCIA VIEIRA, DJ 30/09/2002 p. 195)
CIVIL. CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. PRISÃO DECRETADA DURANTE AS ELEIÇÕES. ERRO JUDICIAL. DANO MORAL. CONFIGURADO. INDENIZAÇÃO. CABÍVEL.
1. Não decorreu lapso temporal de 5 (cinco) anos entre a data da decisão absolutória do TRE/MG, que considerou arbitrária a prisão do autor pela suposta prática de crime eleitoral, não estando prescrita a pretensão indenizatória do autor contra a União (Decreto 20.910/32, art. 1º).
2. O Estado tem responsabilidade civil por danos causados a terceiro em virtude de prisão tida por arbitrária, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição da República. No caso concreto, ilegal e abusiva a prisão em flagrante do autor pela prática de crime eleitoral, tendo em vista que sua conduta, posteriormente, foi considerada atípica pelo TRE/MG, resultando em sua absolvição. Tal fato é apto a gerar danos morais ao autor passíveis de indenização.
3. Mantém-se o valor da indenização por dano moral arbitrado na sentença - R$ 20.000,00, vinte mil reais -, que não se mostra excessivo ou irrisório nas circunstâncias do caso concreto, sendo adequado para compensar o sofrimento e o constrangimento da vítima do dano.
4. Não comprovado o nexo causal entre o ato de decretação de prisão e a perda da eleição, da qual decorreriam os alegados prejuízos materiais, razão por que é indevida a indenização por danos materiais decorrentes da prisão em flagrante.
5. Nega-se provimento aos recursos de apelação e à remessa oficial.
(TRF-1ª Região, AC 2000.01.00.063810-2 / MG, rel. DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA ISABEL GALLOTTI RODRIGUES, publicação 16/05/2013 e-DJF1 P. 106)
Por fim, vale conferir a ilação de José dos Santos CARVALHO FILHO (p. 624) sobre o tema:
“Como regra, já se viu, os atos jurisdicionais decorrentes de conduta culposa do juiz na área cível não ensejavam a responsabilidade civil do Estado, pois que afinal teria o interessado os mecanismos recursais com vistas a evitar o dano. No entanto, o texto que está no art. 5º, LXXV, da CF dá margem a dúvidas, visto que se limita a mencionar o condenado por erro judiciário, sem especificar que tipo de condenação, cível ou criminal. Apesar da dúvida que suscita, entendemos que o legislador constituinte pretendeu guindar à esfera constitucional a norma legal anteriormente contida no Código de Processo Penal, sem, todavia, estender essa responsabilidade a atos de natureza cível. Em nosso entendimento, portanto, se um ato culposo do juiz, de natureza cível, possibilita a ocorrência de danos à parte, deve ela valer-se dos instrumentos recursais e administrativos para evitá-los, sendo inviável a responsabilização civil do Estado por fatos desse tipo. A não ser assim, os juízes perderiam em muito a independência e imparcialidade, bem como permaneceriam sempre com a insegurança de que atos judiciais de seu convencimento pudessem vir a ser considerados resultantes de culpa em sua conduta.
Não obstante, parece-nos inteiramente cabível distinguir os atos tipicamente jurisdicionais do juiz, normalmente praticados dentro do processo judicial, dos atos funcionais, ou seja, daquelas ações ou omissões que digam respeito à atuação do juiz fora do processo. Neste último caso, diferentemente do que sucede naqueles, se tais condutas provocam danos à parte sem justo motivo, o Estado deve ser civilmente responsabilizado, ainda que o juiz tenha agido de forma apenas culposa, porque o art. 37, 6º, da CF é claro ao fixar a responsabilidade estatal por danos que seus agentes causarem a terceiros, e entre seus agentes encontram-se, à evidência, inseridos os magistrados. É o caso, por exemplo, em que o juiz retarda, sem justa causa, o andamento de processos; ou perde processos por negligenciar em sua guarda; ou deixa, indevidamente, de atender a advogado das partes; ou ainda pratica abuso de poder em decorrência de seu cargo.
Todas essas hipóteses, que refletem condutas mais de caráter administrativo do que propriamente jurisdicionais, rendem ensejo, desde que provados o dano e o nexo causal, à responsabilidade civil do Estado e ao conseqüente dever de indenizar, sem contar, é óbvio, a responsabilidade funcional do juiz. O Estado, todavia, nos termos do referido mandamento constitucional, tem direito de regresso contra o juiz responsável pelo dano, o qual, demonstrada sua culpa, deverá ressarcir o Estado pelos prejuízos que lhe causou. O mesmo, em nosso entender, aplica-se aos membros do Ministério Público em face de sua posição no cenário jurídico pátrio.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 23ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 19a ed. São Paulo: Atlas, 2006.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rodrigo Bezerra. Responsabilidade civil do Estado por atos do Poder Judiciário Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 15 abr 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/38947/responsabilidade-civil-do-estado-por-atos-do-poder-judiciario. Acesso em: 01 out 2024.
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