RESUMO: O artigo, partindo de uma perspectiva crítica, apresenta duas contradições internas da advocacia, potencializadas no final do século XX, que estarão presente no século XXI: o paradigma liberal da profissão versus o paradigma empresarial, e a colisão de interesses entre os grandes escritórios e os advogados que os integram.
PALAVRAS-CHAVE: Advocacia, Século XXI, Paradigma Liberal, Grandes Escritórios, Proletarização
ABSTRACT: The article, from a critical perspective, bring forward two internal contradictions of advocacy, potentiated the late twentieth century, which will be present in the XXI century: the liberal paradigm of the profession versus the business paradigm, and the collision of interests between big firms and lawyers who integrate them.
KEYWORDS: Advocacy, XXI Century, Liberal Paradigm, Big Firms, Proletarianization
SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Uma advocacia em conflito. 3. Paradigma liberal e tendência empresarial. 4. Os grandes escritórios e a proletarização da advocacia. 5. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
A Ordem dos Advogados do Brasil, pela Subseção de Londrina, através do Concurso de Monografia Professor Doutor Nely Lopes Casali, lançou às mentes pensantes do Direito da região do norte do Paraná, em 2013, a tarefa de dissertar sobre o desafio da advocacia no século XXI. Este artigo foi inscrito no referido concurso, mas não foi um dos premiados. Não obstante, tratando-se de trabalho científico alicerçado em pesquisa vigorosa, seria injusto restringir seu conhecimento aos juristas que participaram daquela Comissão Científica. Ele é digno de publicação, para que a comunidade jurídica reflita sobre seu polêmico assunto.
Enfim, várias são as perspectivas de análise dos desafios da advocacia no século XXI, conforme a inclinação político-ideológica do pesquisador. Muitos temas poderiam ser trabalhados. Por exemplo, a discussão sobre o exame de ordem, os honorários sucumbenciais, o quinto constitucional, as prerrogativas, etc. Também o estudo do jus postulandi, e a supressão do advogado do sistema judicial, bandeira encampada por vários setores da magistratura, renderia um ótimo artigo.
No entanto, respeitando os bons estudos já realizados sobre estes assuntos, para que seja produzido algo novo, que provoque a reflexão do leitor, o mais interessante é apontar algumas das contradições internas da própria advocacia. Ou seja, partindo de uma análise um tanto quanto histórico-materialista, observar as principais tensões – muitas vezes imperceptíveis pelo senso comum – que marcam a realidade da advocacia contemporânea, e que certamente atravessarão este século XXI.
2. UMA ADVOCACIA EM CONFLITO
Existem várias formas de compreender a sociedade e os elementos que a compõem. Há um pensamento vulgar de que a sociedade é como deveria ser, em virtude de uma força natural, divina talvez, que tudo organizou de forma linear e correta. A sociedade seria algo homogêneo, o povo, a advocacia, o Judiciário, etc, também. O processo histórico caminharia linearmente, em um constante progresso.
Esta é uma visão romântica da realidade, que tem um mérito didático, de facilitar a compreensão das coisas, acalmando os espíritos, mas que não corresponde à realidade propriamente dita. Ou seja, ela simplifica a realidade, desconsiderando os fatores que perturbam a ordem estabelecida. O resultado de pensamentos construídos deste modo, na maioria das vezes, é um desencontro entre teoria e prática. A explicação não é compatível com a realidade.
Uma tentativa de enfrentar este problema é o método dialético, que remonta à antiguidade grega, nas lições de Heráclito de Éfeso (540-480 a.C.), mas foi modernamente concebido por pensadores como Hegel (1770-1831), Marx (1818-1883) e Engels (1820-1895). Aqui não se pode ignorar a totalidade, muito menos as contradições existentes. Segundo LAKATOS (2011, p. 82):
Hegel fundamenta-se nas contradições e, procurando as relações das partes formadoras de um todo orgânico, busca a plenitude; ora, a contradição está presente em toda a realidade; tudo tem relação com um todo, que encerra em si próprio contradições. Nada é finito, mesmo que assim pareça: o que se apresenta como finito é algo que se irá transformar, apresentando-se a nossos olhos sob outro aspecto. Os contrários são verso e anverso de uma mesma realidade; portanto, ao mesmo tempo que se antagonizam, também se identificam. A dialética é a lógica do conflito, do movimento, da vida.
É importante esclarecer que estas contradições não são falhas da realidade, que poderiam ser corrigidas. O conflito faz parte da estrutura do real, e não pode ser dele eliminado.
A compreensão dos desafios da advocacia no século XXI, diante das exigências do método dialético, demandaria muito investimento e uma equipe significativa de pesquisadores, pois passaria pelo estudo da advocacia nos diferentes lugares do mundo, tanto em sua parte ocidental quanto oriental, nos países desenvolvidos e naqueles em desenvolvimento, nos países socialistas, etc. Ter-se-ia que compreender a história e a legislação de cada uma destas regiões, verificar as contradições existentes, para então se ter um panorama da advocacia, em sua totalidade.
Diante das limitações humanas e materiais desta pesquisa, ela será restrita à realidade brasileira. Também não serão analisadas todas as contradições existentes, mas apenas as de maior destaque.
O senso comum acredita que existe uma homogeneidade na advocacia. Advogados são advogados. Uma lógica de difícil refutação, pelo princípio tradicional da identidade. Mas na realidade, que é muito mais complexa, a advocacia mostra uma pluralidade de situações e interesses, muito rica e, na maioria das vezes, antagônica.
Existem advogados trabalhistas, criminalistas, civilistas, iniciantes, experientes, idosos, homens, mulheres, privados, públicos, autônomos, empregados, pobres, ricos, honestos, corruptos, e, muitas vezes, eles não pensam e não desejam a mesma coisa. Mas sob o manto de um único órgão de classe, a OAB, fortalece-se a crença da homogeneidade. O mérito da ciência, portanto, que anseia pelo conhecimento verdadeiro, é ultrapassar esta aparência e revelar as tensões existentes e como aos poucos a história é construída.
Logo na origem da organização da advocacia no Brasil constata-se um conflito para a criação de um órgão específico que controlasse os advogados. No Brasil politicamente independente, pós 1822, não houve condições para o estabelecimento de uma OAB. Na época do império a grande resistência amparava-se no artigo 179, XXVI e XXV da Constituição de 1824, que combatia os institutos corporativos medievais. Receava-se que um órgão deste tipo acabaria por restringir a liberdade de trabalho. À época, rábulas e bacharéis disputavam os serviços de advocacia. Conforme explica BASTOS (2007, p. 67):
[...] até o fim da Primeira República, a história do exercício da advocacia no Brasil é a história do confronto (e da convivência) entre os rábulas, provisionados pelo Estado Imperial (Poder Moderador, Executivo e Judiciário) e pelo Estado republicano, e os bacharéis, formados pelas escolas oficiais de Direito.
O caminho percorrido, então, passa pela fundação do Instituto dos Advogados Brasileiros, em 1843, pela liderança de Francisco Gê Acaiaba de Montezuma, sua transformação em 1899 em Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, e depois a criação, em 1930, da Ordem dos Advogados Brasileiros (posteriormente, do Brasil). Como esclarece BASTOS (2007, p. 71):
[...] no Brasil, a luta dos advogados pela sua organização profissional e pela institucionalização dos ideais de liberdade foi rejeitada pelas elites imperiais e pelas oligarquias republicanas como uma luta corporativa inspirada nas corporações medievais de ofício, por força de esdrúxula e sucessiva interpretação de dispositivos constitucionais sobre liberdade profissional e a imposição restritiva de dispositivos regulamentares pelo Estado Imperial e pelo Estado Republicano.
A OAB é instituída através do artigo 17, do Decreto nº. 19.408, de 18 de novembro de 1930, do governo revolucionário/golpista de Getúlio Vargas. Como ensina LÔBO (2007, p. 9):
Somente com a criação da OAB, em 1930, iniciou no Brasil a regulamentação profissional do advogado, com exigência de formação universitária, salvo nas regiões do Brasil onde se fazia necessária a figura do rábula ou provisionado. Até 1994, os dois primeiros Estatutos da Advocacia (Dec. N. 20.784, de 14-12-1931, e Lei n. 4.215, de 27-4-1963) voltaram-se exclusivamente para a advocacia entendida como profissão liberal, autônoma.
O destaque aqui não é tanto às datas históricas, mas à existência de um conflito constante para o surgimento da OAB, e a vitória política de um destes grupos em 1930. Ao final, a profissão foi regulamentada, e os interesses dos bacharéis prevaleceram sobre aqueles que exerciam a advocacia sem uma formação oficial.
Assim, se alguém perguntasse qual seria o maior desafio da advocacia para o século XX, que passou, a resposta certamente seria a disputa entre o posicionamento corporativo e o anticorporativo. Vencedor, neste caso, o corporativo. Durante todo o século XX, portanto, será visto o fortalecimento desta concepção corporativa, pelo viés liberal da profissão, com a sedimentação da OAB no cenário político nacional. Mas o que nos reserva o século XXI?
3. PARADIGMA LIBERAL E TENDÊNCIA EMPRESARIAL
A advocacia brasileira foi regulamentada com base no paradigma liberal da profissão de advogado. Segundo LÔBO (2007, p. 249):
Em 14 de dezembro de 1931 foi aprovado o Regulamento da Ordem dos Advogados do Brasil, adotando-se este nome pelo Decreto n. 20.784, cuja redação deve-se a Levi Fernandes Carneiro, primeiro presidente da entidade, com vigência diferida pelo Decreto n. 22.266, de 28 de dezembro de 1932, para 31 de março de 1933. O modelo adotado foi o do Barreau de Paris, tanto para a organização da entidade como para o paradigma liberal da profissão de advogado.
Ou seja, a advocacia não pode ser praticada como uma atividade mercantil. O artigo 16, da Lei 8.906/94, estabelece que:
Não são admitidas a registro, nem podem funcionar, as sociedades de advogados que apresentem forma ou características mercantis, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam sócio não inscrito como advogado ou totalmente proibido de advogar.
O Código de Ética e Disciplina da OAB também é claro neste sentido: “Art. 5º. O exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização”. Este tipo de restrição não é uma peculiaridade da advocacia. Pode ser observada também em outras profissões, como a de médico (vide Capítulo I, inciso IX, do Código de Ética Médica – Resolução CFM Nº1931/2009) e a de dentista (vide artigo 4º, do Código de Ética Odontológica – Resolução CFO 118/2012).
Desta forma, a advocacia deveria ser exercida baseada no indivíduo que oferece seus serviços, ainda que em sociedade com outros, em uma relação intuitu personae. Deveria estar distante de práticas e estruturas empresariais. Segundo LÔBO (2007, p. 120):
A lei brasileira optou por rejeitar o modelo anglo-americano das law firms, que não se distinguem das demais empresas mercantis, pois destas absorvem a ética dos negócios e dos resultados lucrativos. Desde quando as sociedades de advogados passaram a adotar o modelo empresarial, cresceu entre os juristas americanos a reação aos seus nefastos desdobramentos com relação à ética profissional, pois as law firms ‘converteram-se virtualmente em anexos de grupos financeiros, especuladores e industriais; tais empresas, que passaram a dominar a profissão, pouco contribuem para o pensamento e a filosofia da atividade advocatícia e nada em relação a responsabilidade e idealismo’.
Uma sociedade de advogados, portanto, não poderia ser organizada como uma sociedade empresária, mas apenas como sociedade simples (as antigas sociedades civis). Conforme lição de MAMEDE (2012, p. 5):
As sociedades empresárias são aquelas que têm por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro (artigos 966 e 967); as demais são consideradas sociedades simples. Portanto, a nota distintiva das sociedades simples seria a inexistência de uma organização de bens materiais e imateriais (intelectuais), bem como de recursos humanos, voltada para a produção sistemática de riqueza. É o que se passa com algumas sociedades de profissionais liberais, nas quais cada um dos sócios desempenha, isolada e independentemente, por força de lei (ex vi legis) ou em virtude da vontade (ex voluntate), o objeto social. A sociedade de advogados é um exemplo de sociedade simples, ex vi legis (artigos 16 e 17 da Lei 8.906/94).
Ocorre que, no final do século XX, não apenas no Brasil, há uma consolidação de grandes bancas, muito distantes da tradicional concepção liberal da profissão. Algumas práticas que até então não seriam toleradas pelo paradigma liberal, passam a ser aceitas. Através da interpretação, flexibiliza-se o paradigma.
Sobre o tema, retratando a realidade de Portugal, explicam CHAVES e NUNES (2012, p. 121 a 123 in passin):
Com particular destaque na região de Lisboa, a advocacia portuguesa sofreu transformações mais profundas e céleres nos últimos 20 anos do que ao longo de todo o século XX. Tais alterações são em tudo semelhantes às que tiveram lugar antecipadamente noutros países, com realce para os EUA, onde remontam aos inícios do século XX. Sinteticamente, poderíamos descrevê-las como o resultado da aproximação da profissão ao sistema económico capitalista [...] as mudanças que se fizeram sentir no campo da advocacia tiveram como efeito o fim da hegemonia da forma liberal de exercício da profissão. Com o advento do modelo societário - institucionalizado sob a forma de médias ou grandes sociedades de advogados - o exercício da profissão é permeado pela lógica da empresa capitalista. Nesses loci societários, a prática da advocacia afasta-se significativamente do protótipo liberal.
As sociedades de advogados passam a funcionar econômica e socialmente exatamente como empresas, embora não recebam tal estatuto jurídico. Segundo CAPELLA (2002, p. 285):
Os gabinetes jurídicos transnacionais se criaram partindo de modelos norte-americanos de exercício do direito, a cargo de firmas. Estas são empresas a serviços jurídicos em cuja cúspide há uns poucos advogados que detêm a propriedade ou o controle do escritório, com numerosos advogados associados responsáveis de setores de atividade determinados ou com clientelas especiais, ademais de juristas contratados por razões de prestígio e relações sociais e de outros especialistas, e um número muito maior ainda de advogados assalariados, aos quais se encomendam parcelas de cada assunto.
Esta mudança só foi possível, obviamente, observando-se a realidade brasileira, graças à grande expansão de cursos de graduação de Direito, intensificada a partir da década de 90. Afinal, sem mão-de-obra não seria possível industrializar a advocacia. As faculdades de direito fornecem milhares de bacharéis anualmente, fora o gigantesco número de estudantes assimilados como estagiários nas bancas de advocacia. Segundo BITTAR (2001, p. 41): “Dos embriões iniciais, desde o Decreto Imperial que criava dois cursos jurídicos no país, até a situação atual, verifica-se um boom extraordinário na oferta de ensino, alcançando-se as cifras aproximadas de 400 cursos de Direito no país”.
Esta realidade não passa despercebida de todos. Tanto que a Internacional Bar Association, da qual a OAB faz parte, aprovou uma resolução, em setembro de 2000, intitulada “Professionalism versus commercialism", na qual firma posição contrária a mercantilização da advocacia (IBA - Resolution on Professionalism versus Commercialism - Adopted Semptember 2000). Certamente ela dá o tom do principal desafio da advocacia para o século XXI, lidar com este conflito entre uma concepção liberal e uma empresarial de advocacia.
É bom esclarecer que esta disputa não é vista em todos os municípios do Brasil. Em muito deles a advocacia é exercida tradicionalmente, no modelo liberal, sem grandes escritórios. Mas nas capitais, e até mesmo nas principais cidades do interior, de maior população, ela é facilmente perceptível. O centro de referência é a metrópole de São Paulo, já que, conforme informações da própria OAB, em agosto de 2011 existiam 673.981 advogados inscritos em todo o país e 226.371 deles estavam no Estado de São Paulo. Ou seja, aproximadamente um terço de todos os advogados brasileiros está lá. Olha-se aí para ver os rumos que a advocacia está tomando.
Conforme noticiado em 2011 (“Brasil tem mais de 40 escritórios com mais de 100 advogados”) as maiores firmas de advocacia eram a JBM Advogados com 641 advogados, e apenas 9 sócios, a Siqueira Castro Advogados, com 544 advogados, e 58 sócios, e a Décio Freire & Associados, com 407 advogados, e apenas 5 sócios. Ressalte-se que os números indicam apenas os advogados, não se podendo esquecer todos os estagiários, paralegais, secretárias que também trabalham nestes escritórios. Logo, diante desta realidade, não é difícil compreender porque o modelo liberal tem sido abandonado rapidamente na advocacia.
Colhe-se de estudo de HAPNER (2002, p. 105) as seguintes informações, importantes para ilustrar o tema:
O segundo caso estudado é o de Tozzini, Freire, Teixeira e Silva Advogados (TFTS), escritório de advocacia fundado em 1976, em São Paulo (SP). Atualmente conta com mais de 1000 pessoas integrando suas equipes de trabalho, sendo aproximadamente 360 advogados, dos quais 61 são sócios. Teve um impressionante crescimento nos últimos 8 anos, experimentando um aumento de quase 1000% no número de advogados. Além da sede em São Paulo, possui escritórios filiais no Rio de Janeiro (RJ), Brasília (DF), Porto Alegre (RS), Fortaleza (CE), Recife (PE), Natal (RN), João Pessoa (PB), e uma unidade internacional em Nova York (EUA).
A dúvida que deve perturbar o leitor é: seria o escritório estudado por HAPNER uma mera sociedade simples? Diante de tamanha estrutura e forma de organização, seria possível não considerá-lo uma empresa?
Em entrevista com os fundadores da Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, banca de advogados sediada em São Paulo, com equipe de 330 advogados, sendo 49 sócios, ao ser perguntado ao advogado Antônio Corrêa Meyer “Pode-se dizer que um escritório com centenas de funcionários é uma empresa?", ele respondeu, "Uma empresa sui generis". O advogado Moshe Sendacz disse "Não temos uma atividade empresarial, apenas uma organização empresarial" e José Roberto Opice, "São administrações com características clássicas de empresa". Cientes da legislação existente, e do paradigma liberal estabelecido, os sócios esforçam-se a negar a natureza empresarial de seu escritório. As respostas, no entanto, não deixam dúvida sobre a realidade existente.
Este conflito de paradigmas, liberal versus empresarial, incomoda e desperta paixões, mas não pode deixar de ser abordado em um estudo sério e científico sobre as perspectivas da advocacia para o século XXI. Trata-se de debate, como visto, que ultrapassa as barreiras nacionais, a revelar sua importância. Não cabe aqui detalhar as vantagens e desvantagens de cada concepção, mas apenas demonstrar que o conflito é real e atual. Cada profissional, após detido estudo, deve tomar uma posição e defendê-la. Destarte, o tema também merece um maior debate no seio da OAB.
Enfim, a contradição interna na advocacia é evidente: tem-se um modelo liberal instituído, nos termos da Lei 8.906/94, tem-se uma vedação expressa à concepção empresarial, mas existem inúmeros escritórios trabalhando a pleno vapor como verdadeiras empresas. Há, portanto, um descompasso entre realidade e norma. No século XXI pode-se ver dois resultados, a depender da postura dos advogados e, principalmente, da OAB: (a) ou se muda a norma, e se admite de uma vez por todas, o exercício da advocacia em um modelo empresarial; (b) ou se muda a realidade, e passa-se a combater estes grandes escritórios. A força capitalista, obviamente, já dá o prenúncio do que acontecerá...
4. OS GRANDES ESCRITÓRIOS E A PROLETARIZAÇÃO DA ADVOCACIA
Diretamente relacionado com o assunto abordado no item anterior está o fenômeno da proletarização da advocacia, observada do final do século XX, que cria um conflito entre advogados-patrões e advogados-empregados. Ou seja, vê-se a criação de “classes”, para usar uma terminologia marxista, dentro da própria advocacia. Uma segmentação econômico-social que coloca poucos advogados no topo da pirâmide, e todos os demais em sua base. Este tipo de estrutura não existe em uma advocacia de cunho verdadeiramente liberal, que põe freio às pretensões empresariais. Os escritórios são menores, os clientes e as causas são diluídas, há uma melhor distribuição de renda.
Por isso, em muitos municípios brasileiros este fenômeno não é significativo, porque inexistem grandes escritórios. A advocacia lá ainda é exercida como estabelecido pela legislação, seguindo o paradigma liberal.
Voltando aos grandes centros, os escritórios de advocacia, estruturados como verdadeiras empresas, têm em seu topo os sócios, e na base os advogados empregados e os advogados associados, e os interesses deles, muitíssimas vezes não são convergentes. Aí outra contradição interna da advocacia contemporânea. Além do conflito entre concepção liberal e realidade empresarial, surge um antagonismo entre os próprios advogados, um universo em que o advogado é explorado pelo próprio advogado. Este fenômeno da proletarização surgiu no final do século XX e certamente será um desafio para este século XXI.
Muitos o atribuem à ampliação das faculdades de Direito. Segundo LÔBO (2007, p. 10): “A realidade brasileira aponta para a proletarização da advocacia, em razão de vários fatores, dentre eles o aumento do número de cursos jurídicos e de suas vagas nas últimas décadas”. Porém, não se pode confundir condição com causa. De fato, a ampliação do número de bacharéis era uma condição necessária ao fenômeno da proletarização. No entanto, conforme já salientado, a sua causa é a consolidação do modelo empresarial para a advocacia, e o declínio do modelo liberal.
Esta proletarização impõe ao jovem advogado condições de trabalho muito diferentes da imagem que o paradigma liberal gera nos estudantes de Direito. Um cenário de muitíssimo trabalho e pouca renda. Ele acaba tornando-se ou um advogado empregado ou um associado. Esta última situação coloca-o em uma posição ainda mais precária, pois desprovido de direitos como piso salarial, décimo terceiro, férias, descanso semanal remunerado, limitação de jornada, etc. Com efeito, há um distorcido uso do advogado associado pelos grandes escritórios, porque a ele são atribuídas apenas as obrigações de um advogado empregado, e não os direitos.
A Lei 8.906/94 não previu e nem disciplinou o associado. Ele é uma criação do artigo 39, do Regulamento Geral. In verbis: "A sociedade de advogados pode associar-se com advogados, sem vínculo de emprego, para participação nos resultados". Segundo GONÇALVES NETO (2002, p. 59):
Não padece a regra regulamentar de qualquer vício de ilegalidade, porque não está a criar nova figura jurídica, mas simplesmente a contemplar uma possibilidade concreta, dentre as várias possíveis, de contratação de serviço de advocacia pela sociedade.
Ocorre que, conforme dito, as sociedades de advogados, principalmente as verdadeiras law firms, têm admitido advogados associados que trabalham exatamente como advogados empregados, mas sem os direitos e garantias assegurados pela legislação. Não deveria ser assim, conforme explica GONÇALVES NETO (2002, p. 60):
Mesmo trabalhando sob o mesmo teto e usufruindo a estrutura organizacional da sociedade de advogados, o advogado associado mantém sua independência. Não se subordina às ordens e determinações dos administradores da sociedade, não recebe salário e seu vínculo é relativo aos casos ou trabalhos que são confiados à sua execução (pareceres, elaboração de peças processuais, atendimento a determinado cliente, fornecimento de consultas etc). A sociedade não interfere minimamente em sua atuação, trabalhando ele segundo seu modo de agir e sua convicção.
Já a figura do advogado empregado é disciplinada pela Lei 8.906/94, inclusive com a previsão de certos direitos básicos. A verdade é que o Estatuto não aceita o exercício da advocacia de modo empresarial, não permitindo que poucos advogados explorem os demais. Por isso, mesmo ao estabelecer regras para o advogado empregado, manteve características do modelo liberal. É por isso que se assegura a “isenção técnica” e a “independência” do advogado empregado, e é por isso que o artigo 21, da Lei 8.906/04, expressamente assegurou sua participação nos honorários sucumbenciais. Nos termos da lei: “Nas causas em que for parte o empregador, ou pessoa por este representada, os honorários de sucumbência são devidos aos advogados empregados”. Aplicado corretamente, o dispositivo permitiria uma vida mais digna a muitos advogados, pois além do piso salarial, fariam jus a esta verba adicional, de valor muitas vezes bem expressivo.
A referida norma, por razões óbvias, não atenderia os interesses das grandes firmas. Entra em cena, então, o Supremo Tribunal Federal. A Corte Excelsa tem um importante papel no fenômeno da proletarização, graças a certas decisões que estimularam o modelo empresarial.
Em 24 de janeiro de 1995, a Confederação Nacional da Indústria ingressou com ação direta de inconstitucionalidade atacando vários dispositivos da Lei 8.906/94, dentre eles o mencionado artigo 21. O feito foi autuado sob nº 1194-4 e distribuído ao Ministro Maurício Correa. Em 14 de fevereiro de 1996, o Pleno deferiu em parte a medida liminar pleiteada e limitou "a aplicação do art. 21, parágrafo único da mesma lei, aos casos em que não haja estipulação contratual em contrário". Ou seja, o advogado empregado poderia renunciar livremente a seu direito aos honorários de sucumbência, conforme a conveniência ou exigência do empregador. Posteriormente, houve o julgamento do mérito, em 20 de maio de 2009, e a orientação foi confirmada pelo voto da Ministra Cármen Lúcia. Logo, para o Supremo Tribunal Federal é legítimo que a parte vulnerável da relação de emprego renuncie a direito. E, de fato, é o que se vê na prática. Advogados empregados atuando em causas milionárias, sem receber participação alguma nos honorários sucumbenciais, ou em percentual irrisório. Ressalte-se que o Ministério Público Federal, conforme parecer da Subprocuradora-Geral da República Anadyr de Mendonça Rodrigues, opinou favoravelmente à tese de "livre disposição" do advogado empregado de sua participação nos honorários de sucumbência. As law firms saíram vitoriosas neste embate.
Outra decisão significativa do Supremo Tribunal Federal foi aquela que enfraqueceu os sindicatos, entidades que poderiam, se bem estruturadas, defender os direitos dos advogados empregados. Conforme enuncia LÔBO (2007, p. 267):
Como anotamos abaixo, ao comentarmos o capítulo dedicado ao advogado empregado, o crescente fenômeno da advocacia assalariada impõe a defesa de direitos e interesses que apenas o sindicato da categoria pode, constitucionalmente, desempenhar, sem qualquer subordinação à OAB, a saber, nas relações trabalhistas entre empregadores (inclusive advogados ou sociedades de advogados) e advogados empregados.
Ocorre que o artigo 47, da Lei 8.906/94, determina que: “O pagamento da contribuição anual à OAB isenta os inscritos nos seus quadros do pagamento obrigatório da contribuição sindical”. Esta regra limita os recursos financeiros dos sindicatos, o que restringe a sua estrutura e atuação. Afinal, em uma economia capitalista nada se faz sem dinheiro.
Então, a Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) propôs ação direta de inconstitucionalidade, autuada sob nº 2.522, atacando o mencionado dispositivo. Em junho de 2006, unanimemente, o pedido foi julgado improcedente pelo plenário do Supremo Tribunal Federal, seguindo-se voto do Ministro Eros Grau. O Ministério Público também opinou pela improcedência desta ADI. Os sindicatos saíram enfraquecidos.
Enfim, como a OAB foi criada sob o paradigma da advocacia liberal, e a advocacia caminha rapidamente para o modelo empresarial, faltam estruturas para evitar que a proletarização prejudique a vida de uma multidão de advogados, muitos dos quais já exercem a profissão em condições nada dignas. Os números não mentem. Conforme informado por LOBÔ (1998, p. 33): "A pesquisa da OAB indica a existência de 25% de advogados empregados, o que é um número expressivo".
Recentemente, conforme noticiado em 14 de janeiro de 2014 ("Para sindicato, é ilegal contratar advogado como associado"), o presidente do Sindicato dos Advogados de São Paulo (Sasp), Aldimar Assis, defendeu que todos os advogados associados estão empregados de forma ilegal, pois o único regime legalmente admitido seria o do advogado empregado, nos termos da Lei 8.906/94. Este fato ilustra o conflito existente, que será enfrentada no decorrer do século XXI. É possível, como, e em quais condições, a exploração do trabalho de advogados por outros advogados?
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo ficou demonstrado que a advocacia brasileira foi alicerçada no paradigma liberal, sendo esta a diretriz adotada pelo atual Estatuto (Lei 8.906/94) e pelo Código de Ética vigente.
No entanto, no final do século XX, as sociedades de advogado passaram a se estruturar como verdadeiras empresas. Existem escritórios com mais de 600 advogados em sua composição, outros têm filiais em várias cidades do Brasil, e inclusive estabelecimentos no exterior. Este viés empresarial ainda não é sentido em todos os municípios brasileiros, mas é pujante nos grandes centros. Diante deste cenário fica claro o primeiro conflito interno que a advocacia há de enfrentar no século XXI, o debate entre o paradigma liberal e o empresarial.
Diretamente relacionado a este dilema surge o segundo conflito, também de grande importância, a relação entre as grandes bancas e os advogados empregados/associados. De fato, conforme salientado, a advocacia no final do século XX atravessa um fenômeno de proletarização, tendo como condição a ampliação desmedida dos cursos de Direito e como causa a adoção de estruturas empresariais, que criam uma segmentação econômico-social entre advogados.
Estes dois temas caminham juntos e merecem a atenção dos advogados e da OAB no século XXI, para que a profissão não perca sua dignidade e relevância, e os causídicos possam viver bem. Afinal, qual advocacia queremos? Liberal ou empresarial? E como queremos tratar os nossos pares?
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MAMEDE, Gladston. Direito empresarial brasileiro: direito societário: sociedade simples e empresárias. São Paulo: Atlas, 6ª Ed., 2012.
REVISTA CONSULTOR JURÍDICO. Brasil tem 40 escritórios com mais de 100 advogados. Notícia disponível em http://www.conjur.com.br/2011-out-29/brasil-40-escritorios-advocacia-100-advogados. Acesso em 02 de janeiro de 2014.
_________________. Para Sindicato, é ilegal contratar advogado como associado. Notícia disponível em http://www.conjur.com.br/2014-jan-14/mercado-juridico-sindicato-ilegal-contratar-advogado-associado. Acesso em 14 de janeiro de 2014.
_________________. Sem socializar lucros, grandes bancas não sobrevivem. Entrevista disponível em http://www.conjur.com.br/2012-jun-17/entrevista-antonio-correa-meyer-moshe-sendacz-jose-roberto-opice. Acesso em 14 de janeiro de 2014.
Mestre em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina.Professor da Faculdade Norte Paranaense (UNINORTE). Coordenador de Pesquisa da Faculdade Norte Paranaense (UNINORTE). Membro do IDEC (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor) e do BRASILCON (Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor). Advogado sócio da Ferreira Pires, Ruzon e Felizardo Advogados.<br> <br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: RUZON, Bruno Ponich. O desafio da advocacia no século XXI: uma perspectiva crítica Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 abr 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39057/o-desafio-da-advocacia-no-seculo-xxi-uma-perspectiva-critica. Acesso em: 23 dez 2024.
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