No âmbito do Poder Executivo, a organização e o funcionamento de algum órgão é sempre feita por Decreto do Presidente da República (CF art. 84, VI, “a”).
Trata-se de matéria da competência privativa do Presidente da República, devendo por ele ser integralmente regulamentada. Insta registrar que os Decretos podem ser de mera execução – os mais comuns –, quando apenas ampliam a eficácia da Lei, sem destoar de suas prescrições, garantindo-lhe “o seu fiel cumprimento” (art. 84, IV, da CF), ou podem ser Decretos autônomos, que tem por fundamento de validade a própria Constituição, inovando na ordem jurídica nas matérias que lhes são afetas (art. 84, VI, da CF).
Nessa perspectiva, nenhuma regulamentação pode fugir ao arquétipo constitucional desenhado pela EC nº 32/2001, subtraindo do Chefe do Poder Executivo parte de sua competência constitucional ao delegar a outra autoridade, o poder de tratar da organização, estruturação, atribuições e funcionamento de órgãos administrativos.
A esse respeito, a moderna teoria do direito constitucional tem ressaltado que as virtualidades da Constituição, inspiradas na pretensão de disciplinar o fenômeno político, não podem ser reduzidas exclusivamente ao domínio judicial, cabendo falar em interpretação constitucional realizada pelo legislador e pelo administrador, aos quais se deve reconhecer também papel fundamental na concretização do conteúdo das normas constitucionais[i].
Trata-se, em resumo, do reconhecimento institucional de que a matéria em comento é de competência do Chefe do Poder Executivo, que não pode ser invadida pelo Poder Legislativo.
A Lei que assim o faça padece de inconstitucionalidade por três motivos.
Em primeiro lugar, porque o Congresso Nacional usurpará a competência privativa do Presidente da República de dispor, mediante Decreto, sobre a organização e funcionamento da Administração Federal, violando o princípio da separação dos Poderes (art. 2º da CF).
Com efeito, a competência do Presidente para disciplinar “a organização e o funcionamento da administração federal” é consectário lógico do princípio da separação dos Poderes, que concentra, nas mãos do Chefe do Poder Executivo, a gestão da máquina federal e, por conseguinte, dar-lhe os meios para que o faça.
De nada valeria a atribuição de competências privativas ao Presidente da República se o Legislativo pudesse se imiscuir, ou vice-versa. Seria absurdo pensar em Decreto Presidencial dispondo, v. g., sobre o Regimento Interno do Senado, assim como não faz sentido pensar em Lei tratando da organização e funcionamento da Administração Federal.
A esse respeito, no julgamento de ação direta de inconstitucionalidade contra Lei do Estado do Rio Grande do Sul (ADI nº 2.806-5/RS, Rel. Min. Ilmar Galvão), o STF entendeu que, dentre outras afrontas ao texto magno, a Lei gaúcha revelava-se contrária “ao poder de disposição do Governador do Estado, mediante Decreto, sobre organização e funcionamento de órgãos administrativos, no caso das escolas públicas”. Vale lembrar que a ratio decidendi de uma decisão de inconstitucionalidade, em sede de controle concentrado, passa a vincular outros julgamentos, por força da teoria dos efeitos transcendentes dos motivos determinantes.[ii].
Em segundo lugar, porque a estruturação, organização, atribuições e funcionamento da Administração Federal são matérias reservadas aos Decretos de que trata o art. 84, VI, “a”, da Constituição, após as mudanças levadas a cabo pela EC nº 32/2001, que lhes subtraiu do campo do processo legislativo.
Com efeito, na redação antiga, o art. 84, VI, da CF rezava:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VI - dispor sobre a organização e o funcionamento da Administração Federal, na forma da lei;”
A atual redação deixou clara a intenção de tratar a matéria apenas por meio dos chamados regulamentos autônomos, pois retirou do texto constitucional a expressão “na forma da lei”, vejamos:
“Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(…)
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;”
A EC nº 32/2001 também afastou da competência do Poder Legislativo o tratamento da estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da Administração Pública em geral. Na redação originária, o art. 88 da CF prescrevia:
“Art. 88. A lei disporá sobre a criação, estruturação e atribuições dos Ministérios”.
Na nova redação, a estruturação e atribuições de órgãos administrativos foram excluídas da reserva da lei, reforçando tratar-se de assunto da alçada exclusiva dos Decretos:
“Art. 88. A lei disporá sobre a criação e extinção de Ministérios e órgãos da administração pública.”
Além disso, foram reduzidas, expressamente, as atribuições do Congresso Nacional, retirando da competência normativa do Poder Legislativo, matérias agora atribuídas ao Chefe do Executivo. Nesse sentido, o art. 48, X e VI, da CF dispunha, originalmente, o seguinte:
“Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
(…)
X – criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas;
XI – criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da Administração Pública;”
O texto vigente passou a ser o seguinte:
“Art. 48. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do Presidente da República, não exigida esta para o especificado nos arts. 49, 51 e 52, dispor sobre todas as matérias de competência da União, especialmente sobre:
(…)
X - criação, transformação e extinção de cargos, empregos e funções públicas, observado o que estabelece o art. 84, VI, b;
XI - criação e extinção de Ministérios e órgãos da Administração Pública;”
Na mesma linha de reforma, foi alterada a alínea “e” do inciso II do § 1º do art. 61 da Constituição Federal, que trata da iniciativa legislativa reservada ao Presidente da República. Com efeito, a redação originária era a seguinte:
“Art. 61. (...):
§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
(…)
II - disponham sobre:
(…)
e) criação, estruturação e atribuições dos Ministérios e órgãos da administração pública”.
Após a EC nº 32/01, foram colocadas de fora do processo legislativo – o que equivale dizer que não serão mais objeto de regulamentação por via de Lei – matérias referentes à “estruturação” e “atribuições” dos órgãos administrativos:
“Art. 61. (in omissis):
§ 1º - São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que:
(…)
II - disponham sobre:
(…)
e) criação e extinção de Ministérios e órgãos da Administração Pública, observado o disposto no art. 84, VI”
A EC nº 32/2001 promoveu, portanto, uma verdadeira mudança de paradigma no direito constitucional e no direito administrativo brasileiro.
Frise-se que, mesmo antes da EC nº 32/2001, já havia espaços normativos em que o Parlamento não podia se imiscuir, a exemplo do art. 155, §2º, XII, “g” da CF/88. Segundo a Lei Maior, somente por deliberação, mediante convênio, dos Estados e do Distrito Federal é que poderão ser concedidos benefícios fiscais referentes ao ICMS. Qualquer Lei que invada essa esfera exclusiva de competência da Administração é taxada, pela jurisprudência pacífica do STF[iii], de inconstitucional.
Outro caso bastante interessante ilustra bem a questão. A Lei nº 6.385/76, que criou a Comissão de Valores Mobiliários, foi alterada pelo Decreto nº 3.995/2001, resultando no ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 2601, Rel. Min. Carlos Veloso), em que se impugnou, dentre outras coisas, a revogação de dispositivos de Lei por um Decreto. O Supremo ainda não julgou a ação, mas o Ministério Público Federal pugnou pela improcedência dos pedidos. Ou seja, para o Procurador-Geral da República, é constitucional a revogação de dispositivos de Lei por um Decreto do Presidente da República, quando se tratar de matéria que lhe é reservada (art. 84, VI, “a”, da CF).
No mesmo sentido, o Ministro da Fazenda, na Exposição de Motivos nº 213, que resultou no referido Decreto nº 3.995/2001, registrou que “as atribuições e a estruturação dos Ministérios e órgãos da administração pública não mais tocam à lei, podendo ser veiculadas em decreto autônomo – (...) espécie normativa primária – desde que não implique aumento de despesa ou criação ou extinção de órgãos públicos”.
Em outro exemplo também envolvendo a CVM, houve o veto presidencial, por inconstitucionalidade, contra o art. 5º do Projeto que resultou na Lei nº 10.303/2001, que pretendia acrescentar o art. 21-A à Lei nº 6.385/76. Na Mensagem nº 1213/2001, o Presidente da República defendeu que as normas que “têm por objetivo atribuir competências à Comissão de Valores Mobiliários (...) tornaram-se, por força da Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001, questões reservadas a Decreto”. E o veto, diga-se de passagem, não foi derrubado pelo Congresso Nacional.
Mais recentemente, o Presidente da República, na Mensagem nº 182/03, utilizou o mesmo argumento para vetar dispositivo do Projeto de Lei de Conversão nº 1 de 2003 (Medida Provisória nº 79/02 – o chamado “Estatuto do Torcedor”), sobre dispositivos que estabeleciam “atribuições ao Ministério do Esporte, que, por serem ínsitas à organização e funcionamento de órgão da administração pública, devem ser objeto de Decreto”.
Em outras palavras, o Chefe do Executivo interveio, com o veto jurídico, no processo legislativo de conversão de uma Medida Provisória, que é ato normativo de sua iniciativa, por entender que certas matérias não poderiam ser disciplinadas por Lei, sob pena de usurpar sua competência constitucional prevista no art. 84, II e VI, da CF.
O exemplo do Estatuto do Torcedor deixa claro, portanto, que pouco importa de quem foi a iniciativa legislativa: o tratamento da matéria por lei retira do Chefe do Poder Executivo a agilidade necessária para administrar a máquina federal.
A doutrina não destoa dessa orientação. Maria Sylvia Zanella Di Pietro defende que, a partir da EC nº 32/2001, na “seara específica e restrita” da organização interna da Administração, existe uma ‘reserva de regulamento’, sendo vedada intromissão legislativa nesses assuntos, sob pena de inconstitucionalidade”[iv].
Sérgio Ferraz, ao distinguir os regulamentos regrados (os decretos de execução) dos regulamentos discricionários (os decretos autônomos), apontando que estes últimos têm lugar “na chamada reserva de ‘Administração’, isto é aquela que por disposição da lei maior é livre, discricionário e exclusivo desenrolar da ação administrativa”[v].
No julgamento da ADI nº 4663/RO no Supremo, o Min. Luiz Fux, ao apreciar a questão sobre a vinculatividade do Executivo à Lei Orçamentária, defendeu que “existem espaços de reserva de administração, atos cuja realização é atribuída à Administração Pública, sob sua conveniência e oportunidade, como a celebração de contratos administrativos”. Em julgamento mais antigo datado de 29.09.1988, o STF, na Representação de Inconstitucionalidade nº 1508-4, entendeu que Decreto do Governador do Mato Grosso que alterava a estrutura de órgãos da Administração Direta e Indireta era constitucional.
Para a doutrina e jurisprudência, existem espaços de competência privativos do Chefe do Poder Executivo, cuja invasão por outros atos normativos recebe a pecha de inconstitucional. Se não fosse assim, o Congresso Nacional poderia, por meio de Lei, nomear Ministros de Estado, conceder indultos, exercer o comando das Forças Armadas, etc. Não se está, portanto, diante de nenhuma novidade.
Por fim, um último argumento que inquina a constitucionalidade de dispositivo legal é o fato de a autoridade delegada não figurar dentre aquelas previstas no parágrafo único do art. 84 da Constituição como um dos sujeitos passíveis da delegação interna corporis presidencial, in verbis:
“Art. 84 (in omissis)
Parágrafo único. O Presidente da República poderá delegar as atribuições mencionadas nos incisos VI, XII e XXV, primeira parte, aos Ministros de Estado, ao Procurador-Geral da República ou ao Advogado-Geral da União, que observarão os limites traçados nas respectivas delegações”
Ora, se o Presidente da República resolver delegar o tratamento de matéria afeta à sua competência, como é a organização, estruturação e atribuições de órgãos da Administração Pública, poderá fazê-lo, sponte propria, somente àquelas arroladas acima, por Decreto.
Não compete, pois, o Poder Legislativo extrapolar o âmbito pessoal do permissivo constitucional, delegando matérias que só podem ser delegadas pelo Presidente da República e atribuiu competências constitucionais inerentes ao Chefe do Executivo Federal a uma autoridade que não lhe responde diretamente.
Por fim, repita-se: o Congresso Nacional não pode dispor sobre matéria que não é sua e a delegar a quem não pode recebê-la.
REFERÊNCIAS
[i] Chemerinsky, Erwin. Constitucional law – principles and policies, New York: Wolters Kluwer Law & Business, 2011, p. 26-30.
[ii] Rcl 2986 MC/SE (Informativo nº 379/STF), Rcl 2.475 (Informativo nº 335/STF).
[iii] ADI 260-SC. Rel. Min. Ilmar Galvão. DJ, 20/09/2002, p.87; ADI 286-RO. Rel. Min. Maurício Corrêa. DJ, 30/08/2002, p. 60.
[iv] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella (Coord.). Direito regulatório: temas polêmicos. Belo Horizonte: Fórum, 2003. p. 566
[v] FERRAZ, Sérgio. Regulamento. In: ______. 3 estudos de direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 119-120.
Procurador Federal. Graduado pela Faculdade de Direito do Recife/UFPE. Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito do Recife/UFPE .
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VILBERTO DA CUNHA PEIXOTO JúNIOR, . Da inconstitucionalidade da lei que delega matérias que só podem ser regulamentadas pelo Presidente da República Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 29 abr 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39074/da-inconstitucionalidade-da-lei-que-delega-materias-que-so-podem-ser-regulamentadas-pelo-presidente-da-republica. Acesso em: 23 dez 2024.
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