RESUMO: Trata-se de artigo jurídico que analisa as consequências jurídicas do fornecimento da geolocalização de pessoas desaparecidas ou vítimas de sequestro mediante a solicitação direta por autoridade policial em face às garantias constitucionais de intimidade e do sigilo das comunicações telefônicas e de dados, previstas respectivamente, nos incisos X e XII do art. 5º da Constituição Federal.
Do Fornecimento da Geolocalização de Pessoas Desaparecidas ou Sequestradas e as Garantias Constitucionais.
A Lei nº 12.841, de 9 de julho de 2013, alterou a Lei Geral de Telecomunicações-LGT, para estabelecer a possibilidade de utilização das redes de telefonia móvel, para localização de pessoas desaparecidas, incluindo o art. 130-A.
Vejamos:
Art. 130-A. É facultado às prestadoras de serviço em regime privado o aluguel de suas redes para implantação de sistema de localização de pessoas desaparecidas.
Parágrafo único. O sistema a que se refere o caput deste artigo está sujeito às regras de mercado, nos termos do art. 129 desta Lei.
Tendo em vista essa inovação trazida ao texto da LGT, por meio da Lei nº 12.841, de 9 de julho de 2013, surge o questionamento sobre quais seriam as implicações legais do fornecimento da geolocalização, em face das garantias constitucionais estampadas no Art. 5º, incisos X e XII, que tratam da proteção constitucional à intimidade e ao sigilo de dados e das comunicações telefônicas, que assim dispõem:
Art. 5º [...]
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
[...]
XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
Da análise do artigo em riste, pode-se dizer que a inviolabilidade ao sigilo de dados é protegida no texto constitucional, elevada à condição de direito subjetivo fundamental, correlato ao direito à privacidade (art. 5º, X) [i]. Contudo, percebe-se que o texto constitucional conferiu ao sigilo das comunicações telefônicas tratamento jurídico diferenciado, uma vez que excepcionou a possibilidade de violação somente mediante decisão judicial. Para os demais tipos de sigilo, portanto, não foi atribuída proteção equivalente.
Nesse contexto, cumpre destacar a Lei nº 9296, de 24 de julho de 1996, que regulamentou o inciso XII, parte final, do art. 5° da Constituição Federal, asseverando o seguinte, no que toca à interceptação de comunicações telefônicas:
Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.
Parágrafo único. O disposto nesta Lei aplica-se à interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática.
Como se observa, o artigo em riste tratou de regular a ressalva constitucional, que limita os casos de interceptação do fluxo de comunicação de dados à prévia autorização judicial, nos casos de investigação criminal ou de instrução processual penal.
No caso, a questão ora analisada é referente ao fornecimento da geolocalização das Estações Móveis e não da comunicação telefônica, e ainda assim, limitada apenas aos casos em que houver pessoas desaparecidas ou sequestradas, mediante pedido da autoridade policial.
Nessa toada, importa elucidar a diferença conceitual entre sigilo de dados cadastrais e sigilo de comunicação telefônica, que não se confundem e tão pouco recebem o mesmo tratamento jurídico. Senão vejamos:
Em primeiro lugar, a expressão "dados" manifesta uma certa impropriedade (Celso Bastos/Ives Gandra; 1989:73). Os citados autores reconhecem que por "dados" não se entende o objeto de comunicação, mas uma modalidade tecnológica de comunicação. Clara, nesse sentido, a observação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1990:39) — "Sigilo de dados. O direito anterior não fazia referência a essa hipótese. Ela veio a ser prevista, sem dúvida, em decorrência do desenvolvimento da informática. Os dados aqui são os dados informáticos (v. incs. XIV e LXXII)". A interpretação faz sentido. O sigilo, no inciso XII do art. 5°, está referido à comunicação, no interesse da defesa da privacidade.
[...]
A distinção é decisiva: o objeto protegido no direito à inviolabilidade do sigilo não são os dados em si, mas a sua comunicação restringida (liberdade de negação). A troca de informações (comunicação) privativa é que não pode ser violada por sujeito estranho à comunicação. Doutro modo, se alguém, não por razões profissionais, ficasse sabendo legitimamente de dados incriminadores relativos a uma pessoa, ficaria impedido de cumprir o seu dever de denunciá-los![ii]
Em complemento, apesar de ainda não haver jurisprudência pacífica acerca do assunto, cumpre trazer o seguinte julgado do Egrégio Supremo Tribunal Federal[iii], que expõe a diferença entre a proteção ao sigilo de dados cadastrais e à comunicação telefônica:
HABEAS CORPUS. NULIDADES: (1) INÉPCIA DA DENÚNCIA; (2) ILICITUDE DA PROVA PRODUZIDA DURANTE O INQUÉRITO POLICIAL; VIOLAÇÃO DE REGISTROS TELEFÔNICOS DO CORRÉU, EXECUTOR DO CRIME, SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL; (3) ILICITUDE DA PROVA DAS INTERCEPTAÇÕES TELEFÔNICAS DE CONVERSAS DOS ACUSADOS COM ADVOGADOS, PORQUANTO ESSAS GRAVAÇÕES OFENDERIAM O DISPOSTO NO ART. 7º, II, DA LEI 8.906/96, QUE GARANTE O SIGILO DESSAS CONVERSAS. VÍCIOS NÃO CARACTERIZADOS. ORDEM DENEGADA. 1. Inépcia da denúncia. Improcedência. Preenchimento dos requisitos do art. 41 do CPP. A denúncia narra, de forma pormenorizada, os fatos e as circunstâncias. Pretensas omissões – nomes completos de outras vítimas, relacionadas a fatos que não constituem objeto da imputação –- não importam em prejuízo à defesa. 2. Ilicitude da prova produzida durante o inquérito policial - violação de registros telefônicos de corréu, executor do crime, sem autorização judicial. 2.1 Suposta ilegalidade decorrente do fato de os policiais, após a prisão em flagrante do corréu, terem realizado a análise dos últimos registros telefônicos dos dois aparelhos celulares apreendidos. Não ocorrência. 2.2 Não se confundem comunicação telefônica e registros telefônicos, que recebem, inclusive, proteção jurídica distinta. Não se pode interpretar a cláusula do artigo 5º, XII, da CF, no sentido de proteção aos dados enquanto registro, depósito registral. A proteção constitucional é da comunicação de dados e não dos dados. [...].
Para melhor elucidação da questão, trazemos ainda à colação o seguinte texto, in verbis[iv]:
Dados cadastrais telefônicos são as informações relativas ao proprietário de determinada linha telefônica (nome completo, número da linha de telefone, CPF, RG e endereço).
Devemos distinguir "comunicação telefônica", protegida por sigilo (artigo 5º, XII da Constituição da República) e acessível somente mediante autorização judicial (nos termos da Lei 9.296/96), de "dados cadastrais telefônicos", que são as informações mínimas sobre o proprietário da linha telefônica com finalidade de especificar o consumidor do serviço e cujo acesso não depende de autorização judicial.
Como visto alhures, a mencionada proteção constitucional resguarda tão somente a comunicação, sendo possível a requisição de dados cadastrais diretamente pelo Delegado de Polícia, com fundamento no artigo 6º, III do CPP.
Nessa linha de raciocínio:
MANDADO DE SEGURANÇA. GARANTIA CONSTITUCIONAL. SIGILO TELEFÔNICO. PEDIDO DE INFORMAÇÃO. CADASTRO DE USUÁRIO DE OPERADORA DE TELEFONIA MÓVEL. DELEGACIA DE POLÍCIA FEDERAL. INQUÉRITO. DESNECESSIDADE DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. DIREITO DE INTIMIDADE. NÃO-VIOLAÇÃO. DIREITO LÍQUIDO E CERTO. INEXISTÊNCIA.
1. Havendo inquérito policial regularmente instaurado e existindo necessidade de acesso a dados cadastrais de cliente de operadora de telefonia móvel, sem qualquer indagação quanto ao teor das conversas, tal pedido prescinde de autorização judicial.
2. Há uma necessária distinção entre interceptação (escuta) das comunicações telefônicas, inteiramente submetida ao princípio constitucional da reserva de jurisdição (CF, art. 5º, XII) de um lado, e o fornecimento dos dados (registros) telefônicos, de outro.
3. O art. 7º da Lei 9.296/96 – regulamentadora do inciso XII, parte final, do art. 5º da Constituição Federal – determina poder, a autoridade policial, para os procedimentos de interceptação de que trata, requisitar serviços e técnicos especializados às concessionárias de serviço público. Se o ordenamento jurídico confere tal prerrogativa à autoridade policial, com muito mais razão, confere-a, também, em casos tais, onde pretenda-se, tão-somente informações acerca de dados cadastrais.
4. Não havendo violação ao direito de segredo das comunicações, inexiste direito líquido e certo a ser protegido, bem como não há qualquer ilegalidade ou abuso de poder por parte da autoridade apontada como coatora".[v] RECURSO – INTERESSE – CONHECIMENTO – COMPANHIA DADOS CADASTRAIS – SIGILO INEXISTENTE – OBRIGAÇÃO DE EXIBIR – SUCUMBÊNCIA – INCIDÊNCIA.
1. Pretendendo a recorrente a modificação da decisão singular, para dela excluir sua condenação nos ônus da sucumbência e, ainda, para fixar seu direito de manter o sigilo de seus cadastros, presente se faz o interesse de recorrer, o que autoriza o conhecimento da apelação.
2. Precisando parte de dados existentes em companhia telefônica para instruir possível ação criminal, tem ela a obrigação de os fornecer, não estando protegida pela inciso XII, do artigo 5º, da Constituição Federal.
3. A parte que sucumbe tem que suportar os ônus da sucumbência, nos exatos termos do artigo 20 do CPC, não importando que a parte adversa esteja atendida pela Defensoria Pública.[vi] "Em último nível, encontram-se os dados cadastrais dos usuários, entendidos como nome, endereço, telefone, RG e CPF (ou CNPJ). Tais elementos são de natureza objetiva e dizem respeito ao próprio exercício da cidadania e, em regra, não estão na esfera de proteção do art. 5º, X e XII, da Constituição Federal. Logo, a nosso ver, o seu fornecimento, sobretudo aos órgãos do Estado, prescinde de prévia autorização judicial."
Como se observa, a proteção constitucional resguardou apenas à inviolabilidade das comunicações telefônicas a necessidade de autorização judicial, sendo possível, portanto, a requisição de dados cadastrais pela autoridade policial ou pelo Ministério Público.
Outrossim, a Lei nº 12.683/2012 (Lei de Lavagem de Dinheiro) traz dispositivo que exemplifica o conteúdo dos dados cadastrais. Senão vejamos:
“Art. 17-B. A autoridade policial e o Ministério Público terão acesso, exclusivamente, aos dados cadastrais do investigado que informam qualificação pessoal, filiação e endereço, independentemente de autorização judicial, mantidos pela Justiça Eleitoral, pelas empresas telefônicas, pelas instituições financeiras, pelos provedores de internet e pelas administradoras de cartão de crédito.”
Nesse ponto, cumpre repisar, que a proteção constitucional prevista no art. 5º, XII, distingue a proteção ao sigilo dos dados cadastrais telefônicos, do acesso às comunicações telefônicas, uma vez que a autorização judicial somente é necessária para o acesso aos dados das comunicações telefônicas. Cabe esclarecer que o Art. 17 –B da Lei nº 12.683/2012 (Lei de Lavagem de Dinheiro) serve apenas para reforçar a elucidação já constante do texto constitucional, no sentido de que a autoridade policial e o Ministério Público terão acesso aos dados cadastrais do investigado independentemente de autorização judicial. Não se pode admitir, portanto, interpretação em sentido contrário, para limitar o acesso aos dados cadastrais somente aos casos de investigação de lavagem de dinheiro.
Como visto, a Constituição conferiu somente à comunicação telefônica tratamento jurídico diferenciado. Portanto, pode-se concluir que o fornecimento de dados de geolocalização de estações móveis pode ser requisitado diretamente pela autoridade policial ou pelo Ministério Público, uma vez que não se trata de fluxo de comunicação telefônica. Por outro lado, nos termos do art. 130-A da LGT, pode se inferir que o fornecimento da geolocalização somente será admitido nas hipóteses de pessoas desaparecidas ou sequestradas.
Em vista disso, é preciso fazer uma ponderação entre os direitos do usuário do serviço de telefonia em análise. De um lado, o projeto visa dotar a sociedade de mecanismo de localização de pessoas desparecidas, resguardando a segurança e a integridade física do cidadão, protegendo, portanto, o direito à vida. De outro, em aparente conflito, há o direito à intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados.
Ponderando-se os direitos fundamentais em análise, direito à vida versus direito à intimidade e à privacidade, prevalece o primeiro. É dizer, ante uma situação de risco, como no desaparecimento ou sequestro de uma pessoa, a proteção ao direito à vida, por meio do fornecimento da geolocalização do usuário desaparecido ou sequestrado, se sobrepõe ao direito à intimidade e à privacidade.
Portanto, a implementação da solução técnica que permita a geolocalização de terminais móveis pertencentes a pessoas desaparecidas ou vítimas de sequestro, mediante a solicitação pela autoridade policial, está em conformidade com os princípios da legalidade e da razoabilidade. Ademais, não há violação ao art. 5º, X e XII, da Constituição Federal, uma vez que há ressalva tão somente quanto à inviolabilidade das comunicações telefônicas, que depende de prévia autorização judicial nos casos de investigação criminal ou instrução processual penal.
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, pode se afirmar que a implementação de solução técnica que permita a geolocalização de terminais móveis pertencentes a pessoas desaparecidas ou vítimas de sequestro, mediante a solicitação direta por autoridade policial, não fere o art. 5º, X e XII, da Constituição Federal. Isso porque, há ressalva constitucional tão somente quanto à inviolabilidade das comunicações telefônicas, que depende de prévia autorização judicial nos casos de investigação criminal ou instrução processual penal.
Se de um lado, almeja-se dotar a sociedade de mecanismo de localização de pessoas desparecidas, resguardando a segurança e a integridade física do cidadão, protegendo, portanto, o direito à vida, de outro, em aparente conflito, há o direito à intimidade, à vida privada e ao sigilo de dados. Contudo, ponderando-se os direitos fundamentais em análise, direito à vida versus direito à intimidade, à privacidade e ao sigilo de dados, prevalece o primeiro. É dizer, ante uma situação de risco, como no desaparecimento ou sequestro de uma pessoa, a proteção ao direito à vida, por meio do fornecimento da geolocalização do usuário desaparecido ou sequestrado, se sobrepõe ao direito à intimidade e à privacidade.
Por fim, destaca-se ainda que a implementação da solução técnica que permite a geolocalização de terminais móveis pertencentes a pessoas desaparecidas ou vítimas de sequestro, mediante a solicitação pela autoridade policial, está em conformidade com os princípios da legalidade e da razoabilidade.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Júlia de Carvalho. O sigilo de dados cadastrais dos clientes de empresas telefônicas. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 22 abr. 2014. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.47762>. Acesso em: 08 maio 2014.
[i] Ferraz , Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o Direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado.
[ii] Ferraz , Tércio Sampaio. Sigilo de dados: o Direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado.
[iii] HC 91867 / PA – Pará. Habeas Corpus. Relator: Min. Gilmar Mendes
Julgamento: 24/04/2012
[iv] REZENDE, bruno Titz. Sigilo de dados cadastrais bancários e telefônicos e o poder geral de polícia. Fonte: http://jus.com.br/artigos/15136/sigilo-de-dados-cadastrais-bancarios-e-telefonicos-e-o-poder-geral-de-policia/2
[v] TRF 4ª Região. 7ª Turma. Apelação em mandado de segurança nº 2004.71.00.022811-2/RS. Relator: Nefi Cordeiro Disponível em: http://jus.com.br/artigos/15136/sigilo-de-dados-cadastrais-bancarios-e-telefonicos-e-o-poder-geral-de-policia/3#ixzz2fMVV3kZ5
[vi] Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. 6ª Turma cível. Apelação cível nº 2003.08.1.004732-6. Relator: Luciano Vasconcellos. DJU: 03/03/2005. p. 80. Disponível em: http://jus.com.br/artigos/15136/sigilo-de-dados-cadastrais-bancarios-e-telefonicos-e-o-poder-geral-de-policia/3#ixzz2fMVvzCng
Procuradora Federal junto à Procuradoria Federal Especializada da Anatel. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BARBOSA, Júlia de Carvalho. O fornecimento da geolocalização de terminal de pessoa desaparecida ou sequestrada em face às garantias constitucionais. Ponderação de direitos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 maio 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39299/o-fornecimento-da-geolocalizacao-de-terminal-de-pessoa-desaparecida-ou-sequestrada-em-face-as-garantias-constitucionais-ponderacao-de-direitos. Acesso em: 23 dez 2024.
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