Resumo: Este artigo jurídico procura explanar considerações acerca da coisa julgada, tecendo uma comparação fundada em retrospectiva histórica em relação às origens do instituto no Processo Civil Romano e algumas perspectivas atuais.
Palavras-Chave: Coisa Julgada. Processo Civil Romano.
Introdução
Para entender os institutos jurídicos presentes no contexto atual, parece necessária uma retrospectiva histórica. É que a partir do estudo histórico que se observa as origens, as mudanças, os motivos das mudanças dos institutos jurídicos. Conforme bem explana Carlos Maximiliano:
Não é possível manejar com desembaraço, aprender a fundo uma ciência que se relacione com a vida do homem em sociedade, sem adquirir antes o preparo propedêutico indispensável. Deste faz parte o estudo da histórico especial do povo a que se pretende aplicar o mencionado ramo de conhecimentos, e também o da história geral, principalmente político da humanidade. O direito inscreve-se na regra enunciadas, que aliás, não comporta exceções: para o conhecer bem, cumpre familiarizar-se com os fastos da civilização, sobretudo daquela que assimilamos diretamente: a européia em gera: a lusitana em particular. Complete-se o cabedal de informações proveitosas com o estudo da História do Brasil. (MAXIMILIANO apud SOUZA, 2002)
De acordo com José Carlos Moreira Alves, nas ciências sociais, o estudioso não pode provocar fenômenos para estudar as suas conseqüências. Nesse sentido, quem se dedica a esse tipo de ciência tem seu campo de observação restrito a fenômenos espontâneos, na atualidade, e dos ocorridos no passado. E aí se destaca uma característica de Roma: “Abarcando mais de 12 séculos de evolução (...) nele desfilam, diante do estudioso, os problemas da construção, expansão, decadência e extinção do mais poderoso império que o mundo antigo conheceu.” (ALVES, p. 03, 1990) E por este motivo, o direito romano se apresenta como importante campo de observação do fenômeno jurídico em todos os seus aspectos.
Perspectivas atuais e a Coisa Julgada no Processo Civil Romano
Com a coisa julgada, passa-se a ter uma verdade ficta. Res iudicata pro veritata habetur: a coisa julgada é havida a favor da verdade, é tida como verdade, ainda que não seja uma verdade real. Conforme dispõe José Carlos Barbosa Moreira, ao proferir a sentença de mérito o órgão judicial formula a norma jurídica concreta que deve disciplinar a situação litigiosa trazida à sua apreciação. Necessidades de ordem prática exigem que se assegure estabilidade à tutela jurisdicional assim dispensada. Neste enfoque, afirma:
A lei atende a tal exigência tornando imutável e indiscutível, a partir de certo momento, o conteúdo da norma formulada na sentença. Nesse momento – que, no direito brasileiro, é aquele em que já nenhum recurso pode ser interposto contra a decisão -, diz-se que esta transita em julgado. (MOREIRA, 1988, p. 97)
Já Perelman, ao fazer a sua análise sobre a coisa julgada, compara inicialmente a liberdade que tem o cientista independente em suas pesquisas com o juiz que não possui essa mesma liberdade, pois não escolhe os processos que terá de analisar, ficando encarregado de julgar uma lide e, ao fazê-la, realiza um ato de soberania, cuja meta é estabelecer a paz judiciária, dizendo o que é conforme ao direito. Segundo este autor:
decisões terão a autoridade da coisa julgada, após a expiração dos prazos previstos para interpor apelação e recurso de cassação. A coisa julgada é tida como verdadeira, e as partes devem submeter-se às conclusões do tribunal. Aliás, são essas conclusões que o mais das vezes lhes importam, bem mais do que a realidade dos fatos, que constituem apenas um meio de fundamentar as consequências jurídicas que deles decorrem (PERELMAN, 1996, p. 586)
Este posicionamento reflete uma situação consolidada com o positivismo jurídico e que trouxe um grande prestígio a coisa julgada, especialmente pelo fato de se trabalhar com a sentença dentro de um raciocínio lógico formal. Neste contexto, uma vez formado o silogismo, tinha-se como incensurável o ato decisional, o qual só poderia sofrer impugnação dentro do mesmo processo enquanto não passasse em julgado. Após o trânsito em julgado, somente em casos excepcionais poder-se-ia corrigir os raros defeitos que o legislador entendeu ou entende como relevantes para uma rescisão do julgado.
Traçando uma breve visão histórica, observa-se que no Direito romano, o objetivo do processo era a atuação da vontade da lei em relação a denominado bem da vida (res in iudicium deducta). Conforme enuncia Ronaldo Poletti, o escopo fundamental do processo romano é a emanação do ato de vontade. Explica Chiovenda que o que se faz definitivo com a coisa julgada não é a definição de uma questão, mas o reconhecimento ou o desconhecimento de um bem, “e os romanos admitiram essa autoridade da res iudicata, ou seja, a indiscutibilidade ulterior do bem reconhecido ou desconhecido pelo juiz, por uma razão eminentemente prática, e entre os limites dessa razão, quer dizer: pela suprema exigência da vida social, de que haja segurança no gozo dos bens da vida” (CHIOVENDA apud POLETTI, 1996, p. 123)
A coisa julgada é, portanto, vista como o bem da vida disputado pelos litigantes, depois que a coisa foi iudicata, reconhecida ou negada ao autor. É certo que os romanos também se preocupavam com a estabilização e pacificação dos litígios, não podendo admitir a repetição de determinada legis actio já proposta pelas mesmas partes. Ademais, no direito romano, existia a idéia de que a sentença era a própria coisa julgada ou a coisa julgada era o próprio objeto litigioso definitivamente decidido.
Imaginava-se a coisa julgada como ficção de verdade, verdade formal, ou presunção de verdade. Estas formas, defendidas por escritores como Savigny e Pothier, tiveram bastante espaço, penetrando no Código de Napoleão, no Código Civil Italiano, sendo mais tarde combatidas e repelidas da linguagem científica devido à sua imprecisão.
Com efeito, no processo das legis actiones, os juristas romanos fixaram na litis contestatio o momento processual de exaurimento do exercício de determinada legis actio, asseverando que um direito não mais podia ser submetido a novo juízo desde que já deduzido em processo anterior, mesmo que ainda não julgado pelo juiz privado escolhido pelas partes (NEVES apud MACHADO, 2004)
É neste ponto que se vislumbra a presença histórica dos traços característicos da coisa julgada, sendo certo que já desde os romanos a res iudicata está relacionada com a autoridade estatal. Ou seja, se não há atividade do Estado, não há coisa julgada para os romanos.
Ressalta-se, neste enfoque, que a coisa julgada não é representada pela sentença final do procedimento de determinada legis actio, uma vez que tal decisão, conforme dito acima, é emanada de um particular (iudex), tendo apenas caráter de mera opinião, desprovida de motivação, comando e força mandamental. A coisa julgada antecede, pois, a sentença final no processo das legis actiones.
Por conseguinte, oportuno destacar a lição de Celso Neves, que aduz que:
O princípio bis de eadem re ne sit actio que remonta ao período das legis actiones e está à base da teoria romana da coisa julgada, atuava, no período clássico, de ofício, nos chamados iudicia legitima in personam, dependendo, nas ações in rem e nos iudicia quae imperio continentur, de provacação do interessado, através da exceptio rei iudicate vel in indicium deductae. Não se ligava, entretanto, à sentencia ou ao iudicatum, porque independia do julgamento da causa, constituindo efeito da litis contestatio. A esse negócio jurídico bilateral que vincula o réu ao autor (...) é que se liga o princípio da unicidade da ação, de que decorre a exceptio, destinada a ressalvá-lo. Não importava ter sido, ou não julgada a ação. Menos ainda, a fortiori, o conteúdo da decisão. O conceito não era, ainda, o de coisa julgada em seu sentido atual. (NEVES apud MACHADO, 2004).
Já no processo formular, mais evoluído, a sentença final pode consagrar a res iudicata, justamente porque neste sistema o juiz popular adquire o poder de comando lhe outorgado pela fórmula definida pelo pretor (órgão estatal). Neste sentido, vale observar o que dispõe Cretella Júnior: “Proferida a sentença, encerra o juiz sua missão, deixa mesmo de ser juiz, mas a decisão vai produzir os respectivos efeitos jurídicos. Se o juiz pronunciou uma condenação contra o réu, a sentença substitui a obrigação condicional, nascida da litis contestatio, obrigação de pagar o quantum da condenação. Na ausência de execução voluntária do julgamento, o autor pode empregar as vias de execução. A sentença, quer condenatória, quer absolutória, é dotada de força jurídica, cujo objetivo é estabelecer uma situação e consagrar a res iudicata.”(CRETELLA JUNIOR apud MAmHADO, 2004).
A partir do período formulário, o Direito romano separa o processo em dois estágios, in iure cuja figura principal era o pretor, e in iudicio, na qual o principal era o iudex, em que se evidencia a finalidade do processo como especialização da lei: a lei formulada para casos concretos que era aplicada aos fatos, ou seja, na sententia consagrava a condenatio ou a absolutio, em ato. (SOUZA, 2002). Todo o processo romano gravitava em torno da sentença, ato de vontade estatal, no qual se sacramentava a vontade concreta da lei. Daí o porquê o conceito romano de coisa julgada, que era a res in iudicium deducta, o bem jurídico disputado pelos litigantes, depois que a res foi iudicata, isto é, reconhecida ou negada ao autor. A fórmula neste sistema processual romano delimita o objeto da controvérsia e os limites da coisa julgada, possibilitando que a sentença final tenha poder de comando, o que lhe confere caráter publicístico, criando uma nova obrigação entre os litigantes, a obligatio iudicati. É a fase de transição da justiça privada para a pública, na qual o Estado vai monopolizar a prestação da tutela jurisdicional.
Importa ressaltar que o principal efeito desta estatização do processo romano ocorre em relação à sentença. É que neste contexto a sentença não mais se identificava como apenas um parecer jurídico de um cidadão investido no poder de julgar, vinculada ainda a alguma fórmula, mas, na verdade, encerrava um comando soberano, imperativo e vinculante emanado de um órgão estatal, manifestação que estava sujeita a recurso para órgão julgador superior. Esta característica se reflete na caracterização da coisa julgada, que agora nitidamente se separa da sentença.
Conforme ensina Celso Neves:
No processo da extraordinaria cognicio a sententia iudicis corresponde ao exercício da iurisdicio entregue às magistraturas que detêm a função jurisdicional do Estado. Esse modo de ser, inteiramente novo, assinala a eliminação dos resíduos da concepção arbitral e privada do antigo processo das ações da lei que permaneceram no processo formular, marcando a última etapa da transição da arbitragem privada ao processo público (...) O novo conceito de sentença – que passa para a codificação de Justiniano – nascido com as cognitiones do período clássico (processo formular) e consolidado no processo da extraordinaria cognitio, imprime nova orientação ao sistema processual romano, interferindo no conceito de coisa julgada. (NEVES apud MACHADO, 2004).
E conclui que: "Quando a regra se deslocou, da litis contestatio para a sententia, esta já perdera o caráter de opinião arbitral privada, fundando-se no iussus iudicandi que transmitia ao ato caráter estatal, como fase de uma evolução que se vai completar na extraordinaria cognitio, em que a sententia iudiciis é expressão da atividade jurisdicional do Estado Romano, propiciando distinguir-se entre sentença e coisa julgada, através das vias de reexame que a tutela jurisdicional estatizada propiciou. A res iudicata liga-se, assim, na concepção romana, à autoridade estatal, de início vinculada à litis contestatio enquanto fecho do procedimento in iure; depois à sententia, primeiro como ato pelo qual se soluciona a controvérsia, subjetiva e objetivamente fixada na fórmula e, por último, como via de entrega da prestação jurisdicional, quando subordinada ao monopólio do Estado, num caminhamento que vai das legis actiones à extraordinaria cognitio, até dar na condificação de Justiniano." (NEVES apud MACHADO, 2004).
Percebe-se que, neste momento histórico de evolução do direito processual, a coisa julgada passa a se identificar com os efeitos da sentença. Efeito negativo, qual seja de impossibilitar a instauração de um novo processo acerca do mesmo objeto, sendo oponível a exceptio rei iudicatae. Efeito positivo, no sentido de que a sentença, nos limites do seu conteúdo, somente operava seu comando entre as partes envolvidas, não podendo, em regra, prejudicar terceiros.
Este sistema processual perdurou até os últimos dias de Roma, servindo de modelo para as instituições processuais dos períodos que se seguiram, sobretudo ao direito processual contemporâneo, que baseou-se profundamente no legado romano. Importante ressaltar que a coisa julgada era vista ainda como efeito da sentença, mas se apresenta como origem da teoria moderna acerca do instituto.
Giuseppe Chiovenda demonstra qual a finalidade da coisa julgada para os romanos:
Essa é a autoridade da coisa julgada. Os romanos a justificaram com razões inteiramente práticas, de utilidade social. Para que a vida social se desenvolva o mais possível segura e pacífica, é necessário imprimir certeza ao gozo dos bens da vida, e garantir o resultado do processo: ne aliter modus litium multiplicatus summam atque inexplicabilem faciat difficultatem, maxime si diversa pronunciarentur (fr. 6, Dig. De except. Rei iud. 44,2). Explicação tão simples, realística e chã, guarda perfeita coerência com a própria concepção romana do escopo processual e da coisa julgada, que difusamente analisamos nas observações históricas (n.º 32). Entendido o processo como instituto público destinado à atuação da vontade da lei em relação aos bens da vida por ela garantidos, culminate na emanação de um ato de vontade (a pronuntiatio iudicis) que condena ou absolve, ou seja, reconhece ou desconhece um bem da vida a uma das partes, a explicação da coisa julgada só pode divisar na exigência social da segurança no gozo dos bens.
Os romanos acreditavam que somente a sentença poderia pôr fim a litigiosidade de um bem jurídico, por isso, poder-se-ia opor em subseqüente processo em que fosse contestado o mesmo bem, a res iudicata.
Souza menciona Rogério Cruz e Tucci e Luiz Carlos de Azevedo, que se utilizam de citação de Pugliese, sobre a coisa julgada no direito romano, demonstrando a segurança jurídica por ela trazida: “Se nos fosse permitido visualizar em termos modernos esse fenômeno, diríamos que tal regra – seguindo ainda a esclarecedora opinião de Pugliese – "atribui ao agere um efeito preclusivo, análogo àquele que os juristas do século passado demonstraram como próprio da função negativa da coisa julgada, uma vez que essa não só precluía uma nova ação de eadem re, e, portanto, uma nova discussão e decisão da lide, mas também derivava do simples fato da existência objetiva do processo, independentemente de seu êxito.” (TUCCI e AZEVEDO apud SOUZA, 2008)
Ao que parece, a forma pela qual a regra foi conservada, parece mostrar que, quando construída, não se vislumbrava especificadamente um efeito próprio da sentença ou da res iudicata, mas era ele relacionado ao desenvolvimento global do processo, e, em particular, ao agere rem, que compreendia, a atividade conjunta das partes; numa sociedade ainda incipiente, mesmo não individualizados os elementos componentes da demanda, o aludido regramento já representava um fato de inegável segurança jurídica para os cidadãos romanos. (SOUZA, 2008)
Giuseppe Chiovenda faz uma relação entre a coisa julgada para os romanos e sua acepção moderna: “Para os romanos, como para nós, salvo as raras exceções em que uma norma expressa de lei dispõe diversamente (supra, n.º 27), o bem julgado torna-se incontestável (finem controversiarum accipit): a parte a que se denegou o bem da vida, não pode mais reclamar; a parte a quem se reconheceu, não só tem o direito de conseguí-lo praticamente, em face da outra, mas não pode sofrer, por parte desta, ulteriores contestações a esse direito e esse gozo.”
Pontes de Miranda, ao se referir ao “Direito romano no reino de Portugal” menciona que “As Ordenações Manuelinas trasladaram, no Livro III, Título 60, § 2, a Constituição de Alexandre (haurida das Ordenações Afonsinas), precedendo-a de trechos estranhos a ela, até certo ponto incompatíveis. Imitou-as a Ordenação Filipina do Livro III, Título 75, pr., e § 1 (quanto à parte que precede o que corresponde à lei de Alexandre, já citada)”. (MIRANDA, 1976, p. 242) Neste contexto, o texto filipino foi o que perdurou por mais tempo como sendo o direito brasileiro, mantendo as Ordenações anteriores com pequenos retoques.
O Regulamento 737, de 25 de novembro de 1850, que cuidou do sistema jurídico brasileiro após as Ordenações, continuou a aplicar o direito então vigorante, com algumas alterações, o que se deu, também, em 1890, através do Decreto 763 que mandou aplicar ao processo civil o Regulamento 737. Dentre essas alterações, explica Pontes de Miranda, a modificação substancial ocorrida é a de que o Tribunal do Distrito Federal entendeu que apesar do Decreto 763 mandar aplicar o Reg. 737, de 1850, “o direito reinícola não estava em vigor” e não cabia ação rescisória e sim “exceção de coisa julgada” como forma de proteger o interessado, quando se tratasse da hipótese de “direito expresso”.
Se, na fase colonial, nada foi diferente do sistema Português que, por sua vez,adotava o sistema romano, na fase atual, estamos em situação quase idêntica a que foi descrita no item referente a coisa julgada em Portugal. É que a correção de um defeito da coisa julgada no Brasil continua a ser vista apenas sob o ângulo da lei ordinária, nos casos em que ela autoriza, limitados ao remédio isolado da ação rescisória, sujeita a prazo de decadência, ou, eventualmente, a ação de nulidade de ato jurídico, quando configurada a hipótese de inexistência ou de nulidade.
Neste enfoque, o sistema brasileiro, após deixar de ser colônia, continuou a adotar, em seu processo, inicialmente o Regulamento 737, de 1850 e, posteriormente o 763, de 1890. Após esta última data, com a proclamação da República, houve grande evolução na área do direito público brasileiro, especialmente no campo constitucional, sem contudo o processo se alterar substancialmente, até porque sempre houve uma vinculação ao sistema romano, de interesse eminentemente privado e sem maiores avanços ao que se construiu em suas bases. Conforme menciona Carmen Azambuja, “O processo regular seria, assim, o respeito às formas, e não à substância, um processo lógico de subsunção, matemático, de dedução. É exatamente do processo lógico e objetivo da visão clássica da ciência que decorre o instituto da coisa julgada...” (AZAMBUJA, 1994, p. 84.)
Neste sentido, essa autora defende “uma nova forma de raciocínio: a da lógica do razoável. Isso, porém, é moderno e conflita com a visão clássica, objetiva e silogística do processo, da forma decisional original e da visão tradicional da coisa julgada”.
Esta observação se funda na constatação de que os Códigos de Processo de 1939 e atualmente vigorante o de 1973, apesar das diversas modificações, nada ocorreu no sentido de alteração ou evolução do instituto da coisa julgada.
Ovídio Araújo Baptista da Silva demonstra a diferença jurídica causada pela ausência da palavra lide no código de 1939: O raciocínio poderia ser construído assim: dispondo o original italiano que a sentença teria força de lei "nos limites da lide" e nos "limites das questões decididas"; e havendo o legislador brasileiro suprimido a locução nos limites da lide, então é porque lhe pareceu melhor permitir que a sentença extravasasse os limites da respectiva lide posta pelo demandante para atingir as premissas necessárias, ou as questões prejudiciais. Interpretando, pois, com maior precisão, o pensamento de Buzaid, quando ele escreveu que a redação do artigo 287 “faz supor que a coisa julgada recaia unicamente sobre as questões decididas”, devemos entender que a redação do artigo 287, segundo a doutrina que sobre ele se formou, no Brasil, sugeria que a sentença abrangesse não unicamente as questões decididas, mas todas "as questões decidias", fossem elas pertinentes à lide, ou não o fosse, desde que significassem premissas necessárias da decisão. Estariam, pois abertas as portas para a expansão da eficácia da sentença até as questões relativas à lide prejudicial.
O Código de 1973 prevê que a sentença que julgar total ou parcialmente a lide tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas. Ovídio também demonstra o porquê da inclusão da expressão lide no Código de Processo Civil de 73. Para situar-se no problema, recorde-se que o legislador de 73, perfeitamente ciente das restrições e críticas feitas pela generalidade da doutrina ao artigo 287 do velho Código, e apesar delas, o transpôs para o Código novo, apenas corrigindo a versão que se mostrava incompleta na lei revogada, incluindo agora, a palavra lide, inexistente na citada disposição do artigo 287.
O professor Alfredo Buzaid acreditava que a redação do artigo 287 era obscura “porque, excluindo a palavra ‘lide’ faz supor que a coisa julgada recaia unicamente sobre as questões decididas”, impondo-se, então, conforme o autor do Projeto de nosso atual Código de Processo Civil, uma construção legal dessa norma de modo a restabelecer o verdadeiro sentido original que ela continha no projeto italiano.
Piero Calamandrei afirma ser a coisa julgada uma certeza meramente jurídica: A coisa julgada não cria nem uma presunção nem uma ficção de verdade: a coisa julgada só cria a irrevogabilidade jurídica do mandado, sem se cuidar em distinguir se as premissas psicológicas das quais esse mandato tem nascido, são premissas de verdade ou somente de verossimilitude.
Retornemos para a exposição do pensamento de Chiovenda:
Eis aí o que explica o conceito romano de coisa julgada. Para os romanos, a coisa julgada mais não é que a res in iudicium deducta, a dizer, o bem da vida disputada por litigantes, depois que a res foi iudicata, isto é, reconhecida ou negada ao autor: res iudicata dicitur quae fnem controverswiarum pronunciatione iudicis accipit, quod vel condenatione vel absloutione contingit (fr. 1, Dig. De re iud. 42, 1) Ë ainda o ato de vontade precedentemente manifestado na fórmula, que aqui se reproduz, como ato incondicionado com a condemnatio ou com a absoluttio, ou mais genericamente com o recebimento ou com a rejeição da demanda, e que torna incostestável para o futuro o bem disputado. O que se faz definitivo com a coisa julgada não é a definição de uma questão, mas o reconhecimento ou o desconhecimento de um bem. E os romanos admitiram essa autoridade da res iudicata, ou seja, a indiscutibilidade ulterior do bem reconhecido ou desconhecido pelo juiz por uma razão eminentemente prática, e entre os limites dessa razão, quer dizer: pela suprema exigência da vida social, de que haja certeza e segurança no gozo dos bens da vida social, de que haja certeza e segurança no gozo dos bens da vida: ne aliter modus litium mu8ltiplicatus summan atque inxexplicabilem faciat difficultarem, maxime si diversa pronuncarentur (fr. 6, Dig. De except. Rei iudicatae, 2). Não que, de fato, pensassem os romanos em atribuir ao que o juiz afirma, só porque o afirma o juiz, uma presunção de verdade; e mesmo o texto famoso res iudicata pro veritate accipitur (fr.25, Dig. De statu hom. 1, 5 e fr. 207, Dig. De reg. iuris, 50, 17) significa tão-só que o pronunciamento do juiz, que reconhece ou desconhece um bem da vida, a dizer, que recebe ou rejeita a demanda, soa, não, efetivamnte, como verdade, mas em lugar da verdade. A não ser isso, prevalece o princípio: nec vox ommnis iudicis iudicati continet auctoritatem (c. 7, Código de sent. 7, 45). (CHIOVENDA, p. 447).
Em Roma, temos, portanto, a seguinte definição da coisa julgada: “Res judicata dicitur quae finem controversiarum pronuntiatione judicis accipit, quod vel condemnationem vel absolutionem contingit. Diz-se que a coisa julgada é a decisão judicial que põe fim à controvérsia, com a condenação ou a absolvição do réu.”
Pode-se delinear que o instituto da coisa julgada passa, em uma primeira fase e especialmente no direito romano, pela ineficácia do ato, ou seja, mesmo tendo transitado em julgado a sentença, uma vez constatando-se uma nulidade no processo, poderia-se recorrer a instituto adequado de declaração de inexistência da sentença, pois a mesma não produzia efeitos enquanto perdurasse o vício.
Scialoja argúe que há uma grande diferença entre o direito antigo e o moderno em termos de nulidades ou inexistência da sentença. No direito moderno, o defeito da sentença leva a uma nulidade, especialmente quanto à forma. No direito romano, uma sentença nula é absolutamente ineficaz e por isso ela não goza da força e autoridade da coisa julgada. Modernamente, essa idéia de ineficácia do direito romano desapareceu, mesmo nos países que adotam o sistema processual com berço nesse direito. Somente através de recurso próprio ou de ação de impugnação da coisa julgada é que pode ser obtida nulidade da sentença. Do contrário, a sentença transitada em julgado, mesmo sendo nula, produz os seus efeitos e goza da autoridade da coisa julgada. (SCIALOJA, 1954, p. 255).
Um dos institutos que mereceu relevância no sistema processual romano foi o da actio iudicati, o qual, segundo Moacyr Lobo da Costa, tinha “por finalidade realizar o cumprimento da obligatio iudicati, mediante execução sobre a pessoa ou sobre os bens do condenado”. Afirma ainda o mesmo mestre que “o iudicium na actio iudicati destina-se a apurar se a sentença era ou não juridicamente válida, ou melhor, se havia sido pronunciado um perfeito julgamento.” (COSTA, 1995, p. 13)
No período republicano do direito romano, a infitiatio e a revocatio in duplum foram dois meios pretorianos conhecidos como de grande prestígio para revogação da sentença nula que, por ser considerada como inexistente, nunca transitava em julgado. Emergiu, também, nesse período, conforme explica este autor, “outro excepcional remédio concedido pelo pretor e destinado à anulação de sentenças formalmente válidas, quando se configurasse uma flagrante oposição entre os rígidos princípios do ius civile, observados no julgamento da lide e fundados motivos de equidade que justificassem o desfazimento dos efeitos do julgado, mediante a anulação da sentença.(COSTA, 1995, p. 22) Esse remédio considerado como excepcional, face o grande poder que foi dado ao pretor, é a restitutio in integrum. Por meio deste instrumento o pretor concedia excepcionalmente contra sentenças formalmente válidas, ao contrário daqueles dois outros meios de revogação da sentença (infitiatio e revocatio in duplum), apresentava-se com as características e eficácia da moderna ação constitutiva negativa.
Scialoja defende que nos procedimentos especiais romanos, a sentença que contém qualquer vício, por si só, já é nula, não havendo necessidade de que o magistrado intervenha para declarar sua nulidade. Quando da execução de uma sentença viciada, o executado pode se opor à coisa julgada através de execução de nulidade dessa mesma coisa julgada. Ainda neste enfoque, acrescenta que há o remédio conhecido por in integrum restitutio, que se assemelha a uma apelação, pois significa arguir o magistrado para demonstrar-lhe que a sentença ofende aos interesses de uma pessoa, desde que comprovado não dever perdurar essa ofensa. Serve o instituto para que o magistrado possa exercer o poder de uma revisão da sentença. Não há uma nova sentença. O magistrado, diferentemente do que ocorre no recurso de apelação, se limita a suprimir os efeitos da sentença, repondo a situação ao seu estado anterior. (SCIALOJA 1994, p. 359)
No período das extraordinárias cognições romanas, pode-se afirmar com Scialoja que para declarar a nulidade de uma sentença nula não é necessária a apelação, como se dava nos outros procedimentos. É bastante que ao se buscar algum efeito jurídico dessa sentença, como a execução, por exemplo, a parte contrária poderia impugná-la através de um dos meios autorizados pelo sistema romano. Nesse ponto, há de se destacar a essencial diferença entre o direito romano e o moderno.
Enquanto naquele transparece a idéia de ineficácia da sentença que poderia ser atacada quanto à sua nulidade na fase do processo de execução, neste, pouco ou quase nada se pode fazer quanto aos possíveis defeitos da sentença na fase de execução.
Verifica-se assim que no processo civil romano, ao lado de outros remédios menos importantes e com menor eficácia, restaram conhecidos os institutos da actio iudicati que se prestava a apurar se a sentença era ou não juridicamente válida; a infitiatio e a revocatio in duplum, que foram os dois meios pretorianos de revogação da sentença nula, uma vez que esta não transitava em julgado e, finalmente, o remédio in integrum restitutio, tido como uma espéciee de revisão da sentença quando ofendesse os interesses de uma pessoa.
Ao tratarmos, assim, da coisa julgada, tratamos de instituto acolhido constitucionalmente dentre os direitos e garantias fundamentais, já que se encontra inserida no texto constitucional atual e de onde podemos identificar, por conseguinte, a tutela constitucional extremamente importante que a acolhe.
Assim, a coisa julgada não é, conforme antigamente se pensava, um efeito da sentença; o que hoje se reconhece e proclama como fundamental ao processo é a autoridade da coisa julgada, o que, como bem esclarece Liebman, não pode ser havido como um efeito propriamente da sentença, “mas uma qualidade, um modo de ser e de manifestar-se dos seus efeitos, quaisquer que sejam, vários e diversos, consoante as diferentes categorias das sentenças”. Lembrando a importância do pensamento de Chiovenda, Liebman conclui que uma verdade se deve entender em toda a sua extensão como aquela que põe “toda a importância da coisa julgada na expressão da vontade concreta do direito”.
Conforme mencionado por Alexandre Correa, “A idéia romana é alma e vida do processo civil moderno” (CORREA apud POLETTI, 1996, p. 111). Foram elucidadas, no presente artigo, diversas características do processo civil romano que podem ser correlacionados à idéia de coisa julgada.
De acordo com Ovídio Baptista da Silva, pode-se definir a coisa julgada como “a virtude própria de certas sentenças judiciais, que as faz imunes às futuras controvérsias, impedindo que se modifique, ou discuta, num processo subseqüente, aquilo que o juiz tiver declarado como sendo “a lei do caso concreto”. (SILVA, 2008, p. 380)
O que se observa hoje é que a eficácia de uma sentença se manifesta, via de regra, antes da coisa julgada, e dela, independe. Mas, o comando de uma sentença, sem a res iudicata, não impediria que outro juiz, em processo futuro, viesse a reexaminar o caso já decidido e a proferir novo julgamento, em sentido diverso do primeiro.
Por conseguinte, com razão de utilidade política e social, o Estado intervém para evitar esta possibilidade, tornando o comando imutável quando o processo tenha chegado à sua conclusão, com a preclusão dos recursos contra a sentença nele pronunciada. Isto ocorre porque sem a autoridade da coisa julgada, a eficácia natural da sentença, que é o escopo da jurisdição, seria imperfeitamente alcançada.
A coisa julgada, então, faz imutável o comando da sentença, quando se verifica a preclusão dos recursos cabíveis contra ela. Nisso consiste, pois, a autoridade da coisa julgada, que se pode definir, com precisão, como a imutabilidade do comando emergente de uma sentença.
Não se identifica ela simplesmente com a definitividade e intangibilidade do ato que pronuncia o comando; é, pelo contrário, uma qualidade, mais intensa e mais profunda, que reveste o ato também em seu conteúdo e torna assim imutáveis, além do ato em sua existência formal, os efeitos quaisquer que sejam, do próprio ato.
A vontade do Estado de regular concretamente o caso decidido se afirma como única e imutável, e essa característica da sentença não se restringe ao disciplinamento particular da relação jurídica entre os litigantes. Vincula, sobretudo, o Estado, no exercício do Poder Jurisdicional e do Poder Legislativo.
Desta feita, não apenas os magistrados não mais poderão alterar o comando sentencial passado em julgado, como também o legislador não poderá mudar a normatividade concreta da relação, que vem a ser estabelecida para sempre pela autoridade da coisa julgada. Portanto, o instituto da coisa julgada pertence ao direito público e mais precisamente ao direito constitucional, tendo suas raízes encravadas no direito romano, conforme observado.
A natureza publicística da autoridade da coisa julgada justifica que o juiz deva levar em conta, também ex officio, a existência de uma sentença precedente passada em julgado. Ora, é a paz social, o equilíbrio e a segurança das relações jurídicas como um todo que justificam a existência deste instituto, desde os tempos romanos.
Referências bibliográficas
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Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília-UnB. Pós-graduada pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e dos Territórios (FESMPDFT).
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: KILIAN, Kathleen Nicola. A coisa julgada no processo civil romano Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 21 maio 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39402/a-coisa-julgada-no-processo-civil-romano. Acesso em: 23 dez 2024.
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