RESUMO: O presente trabalho visa a uma reflexão a respeito das mudanças trazidas pelo anteprojeto do Novo Código de Processo Penal, o PL 156/09, que está tramitando no Congresso Nacional, mormente no que toca à inovadora figura do Juiz de Garantias. Nessa senda, será realizado um passeio histórico, investigando o papel do julgador no modelo inquisitório e acusatório, em cotejo com a nova posição instituída ao Magistrado, tido como um Juiz de garantias, de acordo com o que o anteprojeto propõe e traz como diferencial. Desse modo, analisar-se-ão tanto as distorções inerentes à problemática, quanto as realizações positivas desta nova atuação no cenário processual penal.
PALAVRAS-CHAVES: Juiz de garantias; Constituição; Processo Penal; direitos fundamentais; anteprojeto; modelo acusatório; modelo inquisitivo.
SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. DESENVOLVIMENTO; 2.1. O MODELO INQUISITIVO: O JUIZ, SENHOR DO PROCESSO; 2.1. O MODELO ACUSATÓRIO: O JUIZ CONTIDO POR DIREITOS; 2.3. O JUIZ DE GARANTIAS: O JUIZ GARANTINDO DIREITOS; 3. CONCLUSÃO; 4. REFERÊNCIAS.
1. INTRODUÇÃO
Consabidamente, a Constituição Federal de 1988 ensejou grande alteração ao ordenamento jurídico pátrio, estipulando vasto leque de garantias e direitos a serem implementados por todos os individualmente considerados, bem como pelo próprio Estado, no exercício independente e harmônico de suas diferentes funções estatais. Nesse sentido, em apertada síntese, tanto a criação de leis deve refletir as aspirações do constituinte originário como todo o conjunto de normas já existente deve ser interpretado à luz da Constituição.
Diante deste novo cenário constitucional, ganham destaque o Direito Penal e o Direito Processual Penal, pois cuidam das normas aptas a regrar a forma mais incisiva da atuação do Estado em face da pessoa humana, em razão do seu ius puniendi, e que, indiscutivelmente, compilam variegadas normas em total discrepância com os novos valores e princípios incorporados a nível constitucional, pois constituídos na década de 40, refletindo o conservadorismo e o autoritarismo da época.
Como consabido, na tentativa de reprimir os excessos da atuação estatal e de efetivar direitos essenciais aos indivíduos submetidos à Justiça Criminal, profundas alterações foram desencadeadas no bojo destes ramos do Direito de 1988 até os dias atuais, constituindo uma verdadeira “colcha de retalhos” ideológica, repleta de contradições e lacunas.
A sanar este caos normativo, surge, então, o anteprojeto de reforma do Código de Processo Penal, incorporando os princípios, valores, direitos e garantias entalhados na Constituição de 1988, superando institutos já consagrados no sistema processual e ensejando as mais variadas críticas dos diversos operadores do direito.
Entrementes, releva notar a preponderância da figura do Magistrado, personificação do Estado – juiz, neste novo cenário, que, além de indicar o direito objetivo a ser aplicado no caso concreto, analisando as provas e fundamentando seus vereditos, será, mais do que nunca, um garantidor de direitos, zelando pela imparcialidade, pela justiça e pelas garantias entalhadas ao réu a nível constitucional.
A fim de melhor elucidar o real significado da nova posição do Juiz no processo penal, faremos um retrospecto histórico em torno dos modelos inquisitivo e acusatório, demonstrando a evolução ideológica havida que muito reflete na necessidade da adoção de modelo com um Juiz de garantias. Por derradeiro, pretendemos, ainda, entender o motivo das ferrenhas críticas em face da mudança, sopesando seus ganhos e prejuízos, a fim de observar a sua legitimidade.
2. DESENVOLVIMENTO
2.1. O MODELO INQUISITIVO: O JUIZ, SENHOR DO PROCESSO
Em uma análise histórica, este modelo processual é oriundo do direito canônico e irrestritamente incorporado pelos monarcas absolutistas, visando mais uma possibilidade de obter controle social e fonte ilimitada de poder. Deste modo, foi bastante utilizado e desenvolvido durante o Império Romano, bem como na Idade Média.
Nesse sentido, interessante observar as lições de Júlio Fabbrini Mirabete, que traz um panorama histórico acerca deste sistema:
No sistema inquisitivo encontra-se mais uma forma auto-defensiva da administração da justiça do que um genuíno processo de apuração da verdade. Tem suas raízes no Direito Romano, quando, por influência da organização política do Império, se permitiu ao juiz iniciar o processo de ofício. Revigorou-se na Idade Média diante da necessidade de afastar a repressão criminal dos acusadores privados e alastrou-se por todo o continente europeu a partir do Século XV diante da influência do Direito Penal da Igreja e só entrou em declínio com a Revolução Francesa[1].
Essencialmente, o sistema inquisitivo tem por característica curial a concentração em um único ator processual, o juiz, das funções de acusar, defender e julgar, o que, obviamente, malfere a parcialidade do julgamento proferido.
Ademais, diante de uma estrutura processual engendrada de tal maneira, resta completamente dizimado o contraditório e a ampla defesa, não tendo o réu a possibilidade de manifestar-se e, de algum modo, contribuir na formação do livre convencimento do Magistrado a julgar a causa.
Trazendo importantes considerações acerca da impossibilidade do exercício do contraditório e da ampla defesa, oportuno trazer à baila ideias do doutrinador Tourinho Filho:
O processo de tipo inquisitório é a antítese do acusatório. Não há o contraditório, e por isso mesmo inexistem as regras de igualdade e liberdade processuais. As funções de acusar, defender e julgar encontram-se enfeixadas numa só pessoa: o Juiz. É ele quem inicia, de ofício, o processo, quem recolhe as provas e, a final, profere a decisão, podendo, no curso do processo, submeter o acusado a torturas, a fim de obter a rainha das provas: a confissão. O processo é secreto e escrito. Nenhuma garantia se confere ao acusado. Este aparece em uma situação tal subordinação que se transfigura e se transmuda em objeto do processo e não em sujeito de direito[2].
Convém salientar que este sistema processual tem caráter sigiloso e forma escrita. Acrescente-se, ainda, que o réu é visto como mero objeto de persecução, sendo, por este motivo, admitida, por vezes, a tortura, com o objetivo de obtenção da confissão, a rainha das provas.
Em apertada síntese, portanto, neste modelo, o magistrado inicia ex officio a persecução criminal, realizada colheita de provas e, ao fim, julga a questão. O réu, por sua vez, é mero figurante. Não há, de fato, sua participação no processo, estando, em verdade, tão-somente em uma situação de absoluta sujeição, tratado como objeto, eis que ignorada sua condição de sujeito de direitos.
Ainda que, a princípio, exista verdadeiro repúdio ao sistema inquisitivo, que representa nítido retrocesso, o Código de Processo Penal pátrio, elaborado na década de 40, marcada pelo autoritarismo, em diversas passagens trouxe aspectos bastante relacionados aos ideais deste modelo.
Assim, o acusado era tratado como potencial e virtual culpado, sobretudo quando existia prisão em flagrante. Ao sopesar a tutela de segurança pública e a liberdade individual, prevalecia a preocupação excessiva com a primeira. Houve o estabelecimento de uma fase investigatória agressivamente inquisitorial, cujo resultado foi uma consequente exacerbação dos poderes dos agentes policiais. A busca da verdade, sinalizada como a da verdade real, legitimou diversas praticas autoritárias e abusivas por parte dos poderes públicos. Além disso, a ampliação ilimitada da liberdade de iniciativa probatória do juiz, justificada como necessária e indispensável à busca da verdade real descaracterizou o perfil acusatório que se quis conferir à atividade jurisdicional.
De olhos especificamente sobre a atuação do julgador, o interrogatório do réu era realizado em ritmo inquisitivo, sem a intervenção das partes e exclusivamente como meio de prova, e não de defesa, estando o juiz autorizado a valorar contra o acusado o seu comportamento no aludido ato, seja em forma de silêncio, seja pelo não comparecimento em juízo.
Nesse passo, cumpre ressaltar que, aos poucos, ocorreram reformas, mormente na década de 70, em que várias regras restritivas do direito à liberdade foram flexibilizadas. Este fenômeno, inclusive, em muito se intensificou com a promulgação da Carta Magna de 1988.
Assim, se a perspectiva teórica do Código de Processo Penal era nitidamente autoritária, prevalecendo sempre a preocupação com a segurança pública, a CF/88 caminhou em direção diametralmente oposta. Enquanto a legislação codificada pautava-se pelo princípio da culpabilidade e da periculosidade do agente, o texto constitucional instituiu um sistema de amplas garantias individuais, a começar por dizer que ninguém será culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A mudança foi radical. A nova ordem passou a exigir que o processo não fosse mais conduzido, prioritariamente, como mero veículo de aplicação da lei penal, mas, além e mais que isso, que se transformasse em um instrumento de garantia do indivíduo em face do Estado[3].
Desta forma, observa-se que o Código de Processo Penal brasileiro muito possui do modelo inquisitivo. Todavia, aos poucos foi reformado, abrigando preceitos voltados à garantia de direitos, tais como a necessidade de propiciar ao réu o exercício do contraditório e da ampla defesa, com a efetiva defesa técnica, bem assim o imprescindível convencimento motivado do juiz.
2.2. O MODELO ACUSATÓRIO: O JUIZ CONTIDO POR DIREITOS
Com a promulgação da nova Carta Magna, em 1988, restou patente a opção do constituinte originário em aderir à principiologia inerente ao modelo acusatório, acarretando alterações pontuais por toda a legislação processual penal.
Neste modelo, há uma separação entre quem acusa, quem defende e quem faz o julgamento, pois estes papéis estão reservados a personagens distintos. Dessa forma, o contraditório e a ampla defesa do réu são amplamente respeitados, pois quem julga não é quem acusa, como no modelo inquisitório, o que faz com que o julgamento seja realizado com maior imparcialidade.
Outra característica do sistema acusatório é a publicidade que se dá ao processo, diferentemente do que ocorria no modelo anterior, em que o processo verbal e o segredo imperavam, o que tinha como consequência o tratamento do acusado como mero objeto, tendo em vista que este não tinha direito de defesa e nem contraditório.
Apesar disso, impende notar que este modelo adotado pelo Brasil não é “puro”, tem tons “inquisitórios”, o que faz com que alguns doutrinadores o intitulem como sistema misto. Isso porque o juiz não atua como um espectador estático durante o processo, tendo, mesmo em situações excepcionais, iniciativa probatória, assim como existe a possibilidade de ele conceder habeas corpus de ofício e decretar prisão preventiva.
Quanto à iniciativa probatória do juiz no modelo acusatório, ela deve ser restrita, pois o juiz não pode substituir a atuação das partes na diligência probatória, atuando como o acusador ou como defensor do réu. O juiz não pode desigualar as forças produtoras de prova no processo, tomando a frente da iniciativa probatória, o que viola os princípios do contraditório e da ampla defesa, reunidos na exigência de igualdade e isonomia de oportunidades processuais. Assim, essa iniciativa probatória é apenas complementar a das partes, com o objetivo de esclarecer dúvidas sobre ponto essencial à demonstração da verdade, já que um dos princípios do processo penal é a busca da verdade real, e é este princípio que vai legitimar o juiz a agir dessa forma.
Foi nesse sentido, a busca da verdade real, que a Lei 11.690/08 alterou a redação do art. 156 do CPP para permitir a situação tratada acima e também para permitir que o juiz, ainda no curso do inquérito policial, determine a produção de provas reputadas urgentes antecipadamente, para que não haja perecimento. Mas, obviamente, essa iniciativa também será limitada, tendo em vista a separação das funções pelo modelo acusatório e o fato de que o juiz deve ser imparcial. E mesmo assim, o material colhido pelo juiz nessas circunstâncias deve ser apreciado pelas partes, em razão do princípio do contraditório.
Apesar disso, alguns pequenos e importantes reparos foram feitos em prol de um modelo prioritariamente acusatório. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, já decidiu uma vez pela impossibilidade de o juiz requisitar de ofício novas diligências quando o Ministério Público se manifestar pelo arquivamento do inquérito. Nesse contexto, cabe lembrar da específica atuação do Magistrado, em face do art. 28 do Código de Processo Penal[4].
Com relação à obtenção das provas, o modelo acusatório se posta contra a prova obtida ilicitamente, não admitindo, inclusive, as provas que dela derivarem, posto estarem contaminadas por ela. Tudo isso levando em consideração a regularidade da atividade estatal persecutória e o fato de que o Brasil é um Estado Democrático de Direito e não admite a adoção de práticas probatórias ilegais para punir o indivíduo a qualquer preço.
Interessante observar o quanto preleciona o doutrinador Eugênio Pacelli de Oliveira:
A norma assecuratória da inadmissibilidade das provas obtidas com violação de direito, com efeito, presta-se, a um só tempo, a tutelar direitos e garantias individuais, bem como a própria qualidade do material probatório a ser introduzido e valorado no processo[5].
Sendo assim, só serão admitidas as provas que forem obtidas sem violação da lei ou de princípios do direito material e processual. Assim, não são só as provas ilícitas que não são aceitas; também não o são as provas ilegítimas e, para alguns autores a exemplo de Paulo Rangel, as irregulares. Dessa forma, o que se objetiva é evitar a perpetuação no tempo dos efeitos deletérios que essa prova pode provocar.
Isso contrasta gritantemente com o modelo anterior, o inquisitório, em que era permitida até a tortura para extrair provas e confissões, inclusive falsas, dos acusados, de forma que, muitas vezes, inocentes eram condenados por coisas que não haviam feito.
No tocante ao convencimento do juiz no modelo acusatório, pode-se dizer ser este livre, porém motivado, atendendo a uma persuasão racional. Assim, “o juiz é livre na formação de seu convencimento, não estando comprometido por qualquer critério de valoração prévia da prova, podendo optar livremente por aquela que lhe parecer mais convincente” [6]. Por outro lado, o juiz deve explicar sua decisão, fundamentando-a com base em uma argumentação racional, para que as partes possam insurgir-se contra sua decisão, quando insatisfeitas, utilizando-se das mesmas bases argumentativas.
O tema sabiamente foi desenvolvido pelos doutrinadores Nestor Távora e Rosmar Rodrigues Alencar:
Essa liberdade, por sua vez, não é sinônimo de arbítrio, cabendo ao magistrado, alinhado às provas trazidas aos autos, fundamentar a decisão, revelando, com amparo no manancial probatório, o porquê do seu convencimento, assegurando o direito das partes e o interesse social [7].
Outro ponto que merece a atenção no modelo acusatório é a ampla participação do Ministério Público. Com a divisão das funções de acusar, defender e julgar, o Ministério Público figura, na maioria dos casos, como o acusador no processo penal. “A Constituição tem no Ministério Público o órgão acusador oficial do Estado e, na esmagadora maioria das infrações, atuará o promotor incondicionalmente, ex officio, sem a necessidade de autorização ou manifestação de vontade de quem quer que seja” [8]. É o Ministério Público quem detém a legitimidade para propor ação penal pública incondicionada, prescindindo esta, inclusive, da manifestação de vontade da vítima. Este órgão detém, também, a titularidade para propor ação penal pública condicionada, que ocorre quando se faz necessário o permissivo da vítima ou do representante legal, bem como do Ministro da Justiça, na forma de requisição, em ações, como, por exemplo, deflagradas com o propósito de apurar crime cometido contra a honra do Presidente da República e de chefe de governo estrangeiro.
Além disso, como acusador oficial, pode o promotor arquivar inquéritos policiais ou requerer novas diligências, quando ausentes importantes elementos para a formação da sua opinio delicti. Mesmo que o juiz não concorde com o arquivamento, ele nada poderá fazer além de remeter os autos para a instância superior do Ministério Público, que dará o pronunciamento final sobre o assunto. Isso porque há a separação de quem acusa e de quem julga, não podendo o juiz usurpar esse papel que, no caso, é do Ministério Público. Como órgão acusador, ele vai decidir se oferece denúncia ou não, cabendo ao juiz se abster e atuar de acordo com sua função de julgador.
Por fim, é importante mostrar que o atual Código Penal Brasileiro, que consagrou o modelo acusatório, adotou o Princípio da identidade física do Juiz. Logo, o juiz que acompanhou a instrução deverá proferir a sentença, pois foi ele quem teve contato pessoal e imediato com os depoimentos das partes e das testemunhas, o que ajuda no seu convencimento e na obtenção da certeza, que se entende importantíssima neste modelo para o proferimento do provimento judicial final, principalmente quando este for condenatório.
2.3. O JUIZ DE GARANTIAS: O JUIZ GARANTINDO DIREITOS
Com o fim de compatibilizar os princípios e direitos individuais previstos na Constituição Federal de 1988 com o atual modelo de persecução penal estabelecido pelo ordenamento jurídico pátrio, encontra-se em curso no Congresso Nacional o Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal, transformado posteriormente no Projeto de Lei nº. 156/2009.
Dentre as diversas mudanças propostas, está aquela que cria o instituto do “Juiz das Garantias”, nomenclatura adotada pelo referido projeto para identificar aquele magistrado atuante apenas na fase preliminar, e a quem caberia o controle da legalidade da investigação criminal, assegurando os direitos e as garantias do investigado.
Inicialmente, cumpre observar que, segundo disposto no anteprojeto do novo CPP, caberia ao juiz de garantias impedir a prática de qualquer ato em descumprimento à ordem jurídico-constitucional, bem como decidir sobre a adoção de atos investigatórios, a exemplo da decretação da prisão preventiva, quebra de sigilo, interceptação de conversas telefônicas etc. Não seria incumbida a este juiz a função de presidir o processo e decidir o mérito da causa; a sua atuação seria restrita à fase anterior à da ação penal, tendo como uma de suas atribuições a decisão sobre medidas cautelares atinentes à esfera de liberdade do acusado antes do início do processo penal.
Para uma melhor compreensão do tema em questão, torna-se imprescindível a leitura do capítulo próprio do anteprojeto da nova legislação processual penal, que regra o instituto do juiz de garantias:
CAPÍTULO II
Do Juiz das Garantias
Art. 15. O juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário, competindo-lhe especialmente:
I – receber a comunicação imediata da prisão, nos termos do inciso LXII do
art. 5o da Constituição da República;
II – receber o auto da prisão em flagrante, para efeito do disposto no art. 543;
III – zelar pela observância dos direitos do preso, podendo determinar que este seja conduzido a sua presença;
IV – ser informado da abertura de qualquer inquérito policial;
V – decidir sobre o pedido de prisão provisória ou outra medida cautelar;
VI – prorrogar a prisão provisória ou outra medida cautelar, bem como substituí-las ou revogá-las;
VII – decidir sobre o pedido de produção antecipada de provas consideradas
urgentes e não repetíveis, assegurados o contraditório e a ampla defesa;
VIII – prorrogar o prazo de duração do inquérito, estando o investigado preso, em atenção às razões apresentadas pela autoridade policial e observado o disposto no parágrafo único deste artigo;
IX – determinar o trancamento do inquérito policial quando não houver fundamento razoável para sua instauração ou prosseguimento;
X – requisitar documentos, laudos e informações da autoridade policial sobre o andamento da investigação;
XII – decidir sobre os pedidos de:
a) interceptação telefônica ou do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática;
b) quebra dos sigilos fiscal, bancário e telefônico;
c) busca e apreensão domiciliar;
d) outros meios de obtenção da prova que restrinjam direitos fundamentais do investigado.
XIII – julgar o habeas corpus impetrado antes do oferecimento da denúncia;
XIV – outras matérias inerentes às atribuições definidas no caput deste artigo.
Parágrafo único. Estando o investigado preso, o juiz das garantias poderá, mediante representação da autoridade policial e ouvido o Ministério Público, prorrogar a duração do inquérito por período único de 10 (dez) dias, após o que, se ainda assim a investigação não for concluída, a prisão será revogada.
Art. 16. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo e cessa com a propositura da ação penal.
§1o Proposta a ação penal, as questões pendentes serão decididas pelo juiz do processo.
§2o As decisões proferidas pelo juiz das garantias não vinculam o juiz do processo, que, após o oferecimento da denúncia, poderá reexaminar a necessidade das medidas cautelares em curso.
§3o O s autos que compõem as matérias submetidas à apreciação do juiz das
garantias serão juntados aos autos do processo.
Art. 17. O juiz que, na fase de investigação, praticar qualquer ato incluído nas competências do art. 15 ficará impedido de funcionar no processo.
Art. 18. O juiz das garantias será designado conforme as normas de organização judiciária da União, dos Estados e do Distrito Federal.[9]
Conforme se depreende da análise dos dispositivos legais supra, o novo sistema de persecução criminal contará com a participação de dois juízes, a exemplo do que já ocorre, por exemplo, na França, na Itália, no México e nos Estados Unidos. O primeiro, como já mencionado, atuará apenas na fase do inquérito policial como um “juiz de garantias”, com competência para controlar a prática dos atos investigatórios e decidir sobre a adoção de medidas cautelares. Em seguida, concluídas as fases de investigação policial e de instrução do processo, este juiz de garantias será substituído por um magistrado que não teve contato com a produção das provas, e que será o competente para decidir a causa no mérito, julgando os fatos e decidindo, pelo menos teoricamente, com isenção e imparcialidade. Prevê o projeto de lei, ainda, que será considerado impedido o magistrado que determinar a prática de qualquer ato previsto como o de competência do juiz de garantias.
Não obstante a intenção do legislador em prezar pela isenção e imparcialidade do julgador no momento de analisar o mérito da causa e proferir a sentença, o suposto “avanço” proposto tem sido objeto de interessantes e louváveis críticas por diversos juristas e operadores do direito, em especial os próprios magistrados. Isso porque, em suma, tais julgadores consideram que a aprovação do projeto de lei afetaria o próprio desenvolvimento da atividade jurisdicional, prejudicada pelos limites de atuação impostos pelo legislador.
Os defensores da existência de um juiz de garantias no sistema de persecução penal afirmam que o instituto servirá para minimizar a cultura de excessos e certezas no exercício da jurisdição, tornando o rito processual mais produtivo.
Nas palavras do mestre Luiz Flávio Borges D’Urso, o juiz de garantias oportunizará a ampliação do direito de defesa, uma vez que “o novo projeto amplia os mecanismos de restrição impostos ao investigado, apresentando alternativas para o juiz substituir o encarceramento, utilizando a cadeia com mais parcimônia. As medidas abrangem suspensão do exercício de função pública, veto para frequentar determinados lugares, comparecer periodicamente em juízo e monitoramento eletrônico, entre outras”[10]. Desta forma, acredita o advogado criminalista que tal inovação é a mais compatível com a tendência do direito penal contemporâneo em todo o mundo. Isso porque a atuação de dois juízes traz a possibilidade de obtenção de duas visões distintas: uma controlando judicialmente a investigação, e a outra examinando as provas produzidas na fase preliminar e decidindo o mérito da causa.
Na mesma linha de entendimento segue o ínclito doutrinador Luís Flávio Gomes, para o qual, no atual sistema criminal brasileiro, muitos magistrados estão perdendo a noção sobre qual é a sua exata (e constitucionalmente correta) função na fase investigatória, o que enseja a adoção de ativismo excessivo na investigação criminal, não prezando pela proteção dos investigados contra arbitrariedade. Com o fim de evitar a perpetuação deste comportamento vicioso, defende o mestre ser acertada a criação, pelo projeto do novo CPP, do instituto do juiz de garantias, que terá como função precípua a de monitorar o devido respeito aos direitos e garantias fundamentais do suspeito ou indiciado, na primeira fase da persecução criminal, sem prejuízo de também preservar o direito do Estado de investigar o fato e apurar a sua autoria, visando à correta aplicação da norma penal violada[11].
Divergente não é o entendimento perfilhado por outros operadores do direito, inclusive magistrados e membros do Ministério Público. Nino Toldo, por exemplo, vice-presidente da Associação dos Juízes Federais, defende o modelo proposto porque, em sua avaliação, “evita especulações sobre a isenção do magistrado e sua contaminação pela prova colhida na fase de investigação”. Bem assim, afirma que “o juiz de garantias confere maior segurança ao investigado e afasta o magistrado de discussões acerca de sua atuação”. Isso porque “na busca da verdade real, o juiz do processo terá sua independência assegurada e poderá tomar medidas dentro de suas convicções” [12].
No mesmo sentido posiciona-se o presidente da Associação Nacional dos Ministérios Públicos, José Carlos Cosenzo, para o qual o juiz de garantias “dará o equilíbrio necessário entre as partes porque um juiz que conhece a prova pré-constituída vai ter opinião formada sobre o que está sendo investigado”.
Percebe-se, assim, que o instituto em comento traz, ao ver dos juristas e doutrinadores retromencionados, inúmeras vantagens ao sistema de persecução criminal, uma vez que privilegia a lisura e produtividade do processo penal, não sem deixar de lado a imparcialidade do juiz responsável pelo proferimento da sentença. O juiz de garantias não vai presidir o inquérito policial; vai apenas cuidar da sua legalidade, bem como do respeito aos direitos e garantias fundamentais do indiciado ou suspeito. Assim, como não poderá participar do processo judicial, também não levará para dentro deste os seus “pré-juízos” e “pré-convicções” acerca dos fatos, da sua antijuridicidade, da culpabilidade do agente etc. Isso porque o juiz que “busca a verdade dos fatos”, sobretudo na fase investigatória, perde completamente a sua imparcialidade e, claro, não pode presidir a fase processual propriamente dita, sob pena de nulidade absoluta. A criação do instituto do juiz de garantias, portanto, demonstraria que o legislador estaria caminhando para a evolução de um processo penal justo.
Resta, pois, a indagação: é o juiz de garantias instrumento justo e compatível com os preceitos processuais já consagrados pela Constituição Federal e legislação pátria?
Em sentido diametralmente oposto, há quem critique, com veemência, a implementação do juiz de garantias no novo sistema de persecução criminal constante do projeto do novo Código de Processo Penal Brasileiro.
Ressalte-se, ainda, que o principal seguimento a questionar a validade de tal mudança é composto por magistrados. É evidente a razão do incômodo da classe, eis que, invariavelmente, será o juiz tolido de realizar o ato mais próprio de sua atuação: o de sentenciar. Assim, há uma frustração da comunidade de magistrados, que crê que, em verdade, tal modificação é demasiadamente nociva e pouco acrescentará a sistemática processual, visto que os vícios farpeados com tal medida exigem postura muito mais incisiva e revolucionária.
Ademais, será desvirtuada a atividade-fim a qual o Estado-Juiz está vinculado, com sua atuação personificada na figura do juiz. Isto porque o Poder Judiciário será composto de membros que terão uma função meramente provisória e reduzida.
E, por derradeiro, releva notar que é indispensável a participação do magistrado na produção da prova, pois o contato pessoal permite um entendimento diferenciado, que pode não ser devidamente apreendido diante da mera documentação de atos processuais. Ciente disso, o legislador, por diversas vezes, incorporou à legislação uma série de regras voltadas a consolidar o princípio da identidade física do juiz, que não pode ser facilmente desconsiderado, eis que a verdade real deve prevalecer à verdade formal, mormente no que toca à esfera penal.
3. CONCLUSÃO
À guisa de tudo o quanto foi exposto neste trabalho, tornou-se possível perceber que o Direito Processual Penal Brasileiro, nas suas quase sete décadas de vigência, não obstante as constantes e, principalmente, recentes alterações de que tem sido alvo, revela-se hoje inadequado e aquém às exigências de celeridade e eficácia.
Tanto é assim que restou patente a necessidade de elaboração de um novo Código de Processo Penal, que pudesse compatibilizar e harmonizar a sistemática processual com os princípios estabelecidos na Carta Magna.
Nesta seara, com o intuito de consolidar um modelo orientado pelo princípio acusatório, criou-se o instituto do “juiz das garantias” (nomenclatura utilizada pelo projeto do novo CPP), o qual não se limita apenas à gestão da tramitação de inquéritos policiais. Mais que isso, o juiz de garantias será o responsável pelo exercício das funções jurisdicionais atinentes à tutela imediata e direta dos direitos individuais do investigado, tais como a sua privacidade e honra, devidamente assegurados pela Constituição Federal.
Sucede que descabe deixar de lado as perigosas consequências da adoção deste modelo. Restou demonstrado neste trabalho que a implementação do instituto repercutirá significativamente no desenvolvimento da atividade jurisdicional do Estado, no momento de dizer qual o direito a ser aplicado no caso concreto.
O magistrado responsável por presidir o processo judicial, já ultrapassada a fase do juiz de garantias, estará impedido de produzir novas provas, mesmo que verifique insuficientes aquelas já constantes dos autos. E terá que julgar o mérito da causa sem nem ao menos ter tido o contato com as partes e testemunhas, sem ter participado da fase de apuração policial.
Ora, o que isso significará senão uma frustração do magistrado quando da sua atuação jurisdicional e também a desvirtuação da atividade-fim do Estado-Juiz? É evidente que restará prejudicado os princípios da identidade física e do livre convencimento motivado do juiz.
É de suma importância, ao nosso ver, que o juiz que vai proferir a sentença seja o mesmo que acompanhou as diligências probatórias. Isso, inclusive, pode até servir em benefício do réu, tendo em vista que no momento em que o juiz tem contato pessoal e imediato com as partes, elas podem ajudá-lo a formar seu convencimento.
Muitas vezes o convencimento do juiz ao ter contato apenas com os documentos resultantes das diligências probatórias, não é o mesmo que ele teria se estivesse atuando junto às partes, de modo que esse julgamento “frio” e distante pode não ser o correto, estando em dissonância ou até sendo desproporcional a verdade dos fatos. Claro que a imparcialidade do juiz é algo que deve ser sempre priorizado devido, principalmente ao princípio da igualdade processual, mas como o Direito trata de relações humanas, principalmente o direito penal e processual penal, é imprescindível que o juiz tenha esse contato com as partes para absorver de forma mais precisa a realidade fática e, assim, proferir a sentença mais justa.
Até se for para pensar em um modelo de justiça mais garantista e menos arbitrário, respeitando o contraditório e a ampla defesa, pode-se dizer que não existe defesa melhor para o réu do que aquela em que ele possa dialogar diretamente com o juiz, formando seu convencimento.
Assim, concluímos que essa alteração não foi positiva para o sistema processual penal brasileiro, significando mais um retrocesso, e acreditamos que ela trará mais prejuízos do que benefícios para todos.
4. REFERÊNCIAS
DIÁRIO DA MANHÃ, Ministério Público de Goiás, Projeto que cria juiz de garantias causa polêmica. Disponível em: <http://www.mp.go.gov.br/portalweb/conteudo.jsp?page=1&base=1&conteudo=noticia/032c19029dab88083849c8ae2bbdd2d6.html>. Acessado em 28 jun. 2010.
D’URSO, Luiz Flávio Borges. Juiz de garantias – são positivas as mudanças propostas pelo novo Código de Processo Penal? Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2003201008.htm>. Acesso em 21 jun. 2010.
GOMES, Luiz Flávio. O juiz de [das] garantias projetado pelo novo Código de Processo Penal . Teresina, ano 14, n. 2405, 31 jan. 2010. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=14278>. Acessado em 28 jun. 2010.
MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005
OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2010.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, Vol. I.
[1] MIRABETE, Júlio Fabrini. Processo Penal. 17. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 49.
[2] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, Vol. I. p. 29.
[3] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.19.
[4] Art. 28. Se o órgão do Ministério Público, ao invés de apresentar a denúncia, requerer o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer peças de informação, o juiz, no caso de considerar improcedentes as razões invocadas, fará remessa do inquérito ou peças de informação ao procurador-geral, e este oferecerá a denúncia, designará outro órgão do Ministério Público para oferecê-la, ou insistirá no pedido de arquivamento, ao qual só então estará o juiz obrigado a atender.
[5] OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 10. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p.295.
[6] Ibid. p.290.
[7] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p.369.
[8] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal. 4. ed. Salvador: JusPodivm, 2010. p.149.
[9] Anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal, p. 31-32.
[10] D’URSO, Luiz Flávio Borges. Juiz de garantias – são positivas as mudanças propostas pelo novo Código de Processo Penal? Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2003201008.htm>. Acesso em 21 jun. 2010.
[11] GOMES, Luiz Flávio. O juiz de [das] garantias projetado pelo novo Código de Processo Penal . Teresina, ano 14, n. 2405, 31 jan. 2010. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=14278>. Acessado em 28 jun. 2010.
[12] DIÁRIO DA MANHÃ, Ministério Público de Goiás, Projeto que cria juiz de garantias causa polêmica. Disponível em: <http://www.mp.go.gov.br/portalweb/conteudo.jsp?page=1&base=1&conteudo=noticia/032c19029dab88083849c8ae2bbdd2d6.html>. Acessado em 28 jun. 2010.
Advogada, Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Pós Graduanda em Direito Previdenciário pela UNIDERP - Universidade Anhanguera.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SARAIVA, Izabela Novaes. O juiz de garantias: histórico, conceito e críticas Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 22 maio 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39406/o-juiz-de-garantias-historico-conceito-e-criticas. Acesso em: 23 dez 2024.
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