1. INTRODUÇÃO
Com o advento da Lei nº. 8.952/94 que, ao reformar os arts. 273 e 461, §3º, ambos do Código de Processo Civil, acabou por instituir a antecipação genérica dos efeitos da tutela, uma questão passou a atormentar os processualistas pátrios à época: é possível a antecipação dos efeitos da tutela de mérito contra a Fazenda Pública?
Inicialmente, cabe esclarecer que “quando a legislação processual utiliza-se do termo Fazenda Pública está a referir-se à União, aos Estados, aos Municípios, ao Distrito Federal e a suas respectivas autarquias e fundações” [1].
2. DESENVOLVIMENTO
É cediço que a Fazenda Pública possui prerrogativas processuais, já que litiga em favor de direitos da coletividade, considerados indisponíveis. Embora a temática cause controvérsia, a doutrina passou a se posicionar de maneira uníssona acerca da possibilidade de se antecipar os efeitos da tutela de mérito pleiteada em face da Fazenda Pública, o que foi acompanhada pela jurisprudência.
O legislador, em homenagem aos princípios da efetividade do processo e da inafastabilidade da jurisdição, ao editar a Lei nº. 9.494/97, acabou por positivar a antecipação dos efeitos da tutela em face do Poder Público.
Contudo, em seu art. 1º, a mencionada lei elenca as hipóteses em que a aplicação do instituto da tutela antecipada é vedada quando em desfavor da Fazenda Pública, tendo o legislador estabelecido situações em que não cabível a medida antecipatória com o intuito de resguardar o erário.
Com efeito, a referida lei repetiu os casos de vedação expressos para concessão de liminar em mandado de segurança e cautelares satisfativas em desfavor da Fazenda Pública.
Apesar de consignar ser possível a antecipação dos efeitos da tutela em face da Fazenda Pública, o art.1º da Lei nº 9.494/97 elenca as hipóteses em que tal medida não é possível, in verbis: “aplica-se à tutela antecipada prevista nos arts. 273 e 461 do Código de Processo Civil o disposto nos arts. 5º e seu parágrafo único e 7º da Lei n. 4.348, de 26 de junho de 1964, no art. 1º e seu § 4º da Lei n. 5.021, de 9 de junho de 1966, e nos arts. 1º, 3º e 4º da Lei n. 8.437, de 30 de junho de 1992”.
Da leitura dos textos normativos aos quais a norma transcrita faz referência, depreende-se que a antecipação dos efeitos da tutela é vedada em face da Fazenda Pública quando o objeto da ação consistir na reclassificação ou equiparação de servidores públicos, assim como na concessão de aumento de vencimentos ou vantagens pecuniárias ou na extensão destes.
Cabe registrar que a Lei nº. 4.348/64 e a Lei nº. 5.021/66 foram revogadas pela Lei nº. 12.016/09, que, em seu art. 7º, §2º c/c §5º reproduz os mesmos mandamentos, vedando-se, em sede de liminar, a concessão de aumento ou a extensão de vantagens, como também o pagamento de qualquer natureza.
Nesse ínterim, as restrições impostas pela Lei nº. 9.494/97 foram consideradas por parte da doutrina como inconstitucionais, em virtude de afronta ao princípio constitucional de proteção à ameaça de direito (art. 5º, XXXV da Carta Magna), em que o direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva não poderia ser experimentado pelo jurisdicionado, assegurando-se, assim, apenas formalmente a garantia da inafastabilidade da jurisdição.
Sustentava-se ainda que tal lei padecia de inconstitucionalidade formal, pois advinha de medida provisória, a qual não havia preenchido os requisitos de urgência e relevância, sendo certo que a disciplina de questão processual por meio de espécie normativa precária ensejava grande temeridade no meio jurídico.
Ocorre que na medida cautelar da ADC 4/DF, relatada pelo Ministro Sydney Sanches, o Plenário do STF declarou constitucional o art. 1º da Lei n. 9.494/97, tendo sido tal julgamento confirmado em sessão plenária, em 01.10.2008, quando a ação foi julgada procedente.
Segundo parte da doutrina, entre eles Leonardo José Carneiro da Cunha, a vedação mostra-se válida porquanto atende a regras financeiras e orçamentárias, as quais o erário está vinculado. Evita-se, com isso, o surgimento de despesas novas, as quais não estavam previstas quando da elaboração da lei orçamentária para o exercício financeiro subsequente.
Todavia, os tribunais pátrios, por vezes equivocadamente, conferem interpretações cada vez mais restritivas ao art. 1º da Lei nº. 9.494/97, havendo, inclusive, decisões que contrariam frontalmente o texto legal.
Ressalte-se que quando da apreciação de um pedido de antecipação dos efeitos da tutela, o juízo encontra-se diante de um confronto de princípios fundamentais.
De um lado apresenta-se o direito fundamental à efetividade da jurisdição, em que devem ser utilizados meios aptos a propiciar ao litigante vitorioso a efetiva concretização fática da sua vitória, hábil o suficiente para realizar o direito material vindicado.
Por outro lado apresenta-se o direito fundamental à segurança jurídica, no qual inserido o direito dos demandantes à cognição exauriente, submetendo as soluções definitivas dos conflitos a procedimentos prévios nos quais é garantido o contraditório, ampla defesa e a interposição de recursos.
Diante deste quadro de conflito e harmonização de garantias fundamentais, os tribunais pátrios e doutrinadores interpretam de maneira cada vez mais restritiva as limitações previstas no art. 1º da Lei nº. 9.494/97, atribuindo preponderância à efetividade do processo para que a segurança jurídica e o tempo dilatado inerente a este não retire a eficácia e implique na eliminação daquele.
Ocorre que, mesmo nos casos em que o juízo se depara com hipóteses que se submetem ao art. 1º da Lei nº. 9.494/97, os tribunais, a despeito da decisão proferida nos autos da ADC nº. 4, vem concedendo a medida antecipatória.
Tem-se como exemplo o julgamento da Rcl-Agr 5174, de relatoria do Mininistro Cezar Peluso, em que o Supremo Tribunal Federal, em Plenário, por unanimidade, fixou o entendimento de que parcelas indenizatórias devidas ao servidor público não se encontram previstas no rol do art. 1º da Lei n. 9.494/97, motivo pelo qual a antecipação dos efeitos da tutela neste caso seria possível [2].
No ponto, importante assinalar que a legislação, utilizando-se de expressões “pagamento de qualquer natureza” (Lei nº. 12.016/09, art. 7º, §2º) e “pagamento de vencimentos e vantagens pecuniárias” (Lei nº. 5.021, art. 1º, §4º) não diferenciou o caráter remuneratório ou indenizatório dos valores a ser recebidos pelo servidor, e cuja percepção estaria vedada em sede de tutela antecipada
Inclusive, é de bom alvitre rememorar que a finalidade da vedação é a necessidade de se respeitar as regras financeiras e orçamentárias as quais a Fazenda Pública está adstrita, notadamente o art. 169, §1º, I, da CRFB/88, que prevê que a concessão de qualquer vantagem ou aumento de remuneração, a criação de cargos, empregos e funções ou alteração de estrutura de carreiras, bem como a admissão ou contratação de pessoal, a qualquer título, pelos órgãos e entidades da administração direta ou indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público, só poderão ser feitas se houver prévia dotação orçamentária suficiente para atender as projeções de despesa de pessoal e os acréscimos dela decorrentes.
Ademais, não se pode olvidar que, tratando-se de obrigação de pagar imposta à Fazenda Pública por decisão judicial, há necessidade de se respeitar o rito fixado pelo art. 100 e seu §3º da CRFB/88, o que consistiria óbice à satisfação por meio de simples tutela antecipada.
É pacífico o entendimento na Corte Suprema que, se da tutela antecipada concedida para certa finalidade, surjam consequências financeiras indiretas ou secundárias, não estará sendo afrontada a decisão prolatada na ADC-4. Dessa forma, se a tutela antecipada não é concedida para impor pagamento de vantagem, mas tal pagamento será realizado como consequência da medida antecipatória, a hipótese não se enquadra na proibição do art. 1º da Lei nº. 9.494/97.
Pelas mesmas razões expostas acima, ousa-se discordar da posição do Pretório Excelso, já que, de mesma maneira, novas obrigações financeiras surgirão para a Fazenda Pública, a despeito do previsto no art. 169 da CRFB/88, vulnerando-se desta forma justamente o que a legislação pretende resguardar, ou seja, a inexistência de despesas com pessoal sem prévia dotação orçamentária.
No julgamento do Recurso Especial n. 827.133, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça asseverou-se que o regime constitucional da submissão dos gastos públicos decorrentes de ordem judicial à prévia indicação orçamentária deve ser conciliado com os demais valores e princípios consagrados pela Constituição [3].
3. CONCLUSÃO
Não se desconhece que, por vezes, há necessidade de se mitigar as restrições à antecipação dos efeitos da tutela em desfavor da Fazenda Pública para se preservar, no caso concreto, outros bens tutelados pelo ordenamento pátrio e de mesma importância que a supremacia e a indisponibilidade do interesse público.
Contudo, o afastamento das regras do art. 1º da Lei nº. 9.494/97 nem sempre são justificáveis no caso concreto. Tem-se, por exemplo, o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal a partir do julgamento da Rcl-AgR 2924 [4], de relatoria do Ministro Marco Aurélio de Melo, de que, mesmo nas hipóteses previstas no art. 1º da Lei nº. 9.494/97 é possível a concessão de tutela antecipada quando se sustente em entendimento já consolidado na Suprema Corte [i], como a incorporação aos vencimentos do servidor público da diferença decorrente da conversão monetária de cruzeiro real para URV [5], o reajuste aos vencimentos dos militares fundado nas Leis nº. 8.622/93 e nº. 8.627/93 [6] e a restituição por medida antecipatória de verbas ilegitimamente suprimidas do servidor público [7].
Nestes casos, como se infere, ocorrerá apenas a incrementação de valores ao orçamento do servidor, não havendo, salvo melhor juízo, um restabelecimento do núcleo essencial dos vencimentos do agente público, sem olvidar que consistem em verbas pretéritas, as quais podem ser recebidas ao final do processo, devidamente corrigidas.
Por fim, cumpre consignar que, em razão da antecipação dos efeitos da tutela em desfavor da Fazenda Pública ter se tornado corriqueiro, com desembolso de valores antes mesmo da prolação de sentenças, consolidou-se a jurisprudência no sentido da possibilidade de devolução de tais valores caso revogada a decisão precária concessiva, não cabendo invocar a sua natureza alimentar ou então a boa-fé do recebedor.
Assim, como do ponto de vista objetivo não há expectativa de definitividade do pagamento recebido via tutela antecipatória, não pode o titular do direito precário pressupor a incorporação irreversível da verba ao seu patrimônio, não havendo legitimidade jurídica para o servidor presumir que não terá de devolver os valores recebidos, até porque, invariavelmente, está o jurisdicionado assistido por advogado e, conforme o disposto no art. 3º da LINDB — segundo o qual ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece —, deve estar ciente da precariedade do provimento judicial que lhe é favorável [8].
4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CUNHA, Leonardo José Carneiro. A Fazenda Pública em Juízo. 7 ed. São Paulo: Dialética, 2009.
NOTAS
[1] CUNHA, Leonardo José Carneiro. A Fazenda Pública em Juízo. 7 ed. São Paulo: Dialética, 2009, p. 15.
[2] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Rcl-AgR 5174. Min.Rel. Cezar Peluso.Publicado no DJe em 06-02-2009.
[3] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. REsp n. 827.133. 1 Turma. Min Rel. Teori Albino Zavascki. Publicado no DJ em 29.05.2006.
[4] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Rcl-AgR 2924. Min. Rel. Marco Aurélio de Melo. Publicado no DJ em 26.08.2005.
[5] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Rcl-AgR 5163. Min. Rel. Cezar Peluso. Publicado no DJe em 06.02.2009.
[6] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Rcl-AgR 4628. Min Rel. Cezar Peluso. Publicado no DJe em 06.02.2009.
[7] Brasil. Supremo Tribunal Federal. Pleno. Rcl-AgR 2726. Min. Rel. Sepúlveda Pertence. Publicado no DJ em 03.02.2006.
[8] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.384.418-SC, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 12/6/2013.
ADVOGADA DA UNIÃO JUNTO À ADVOCACIA-GERAL DA UNIÃO COM EXERCÍCIO EM BRASÍLIA/DF E PÓS-GRADUANDA EM DIREITO PELA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO DE JANEIRO - UERJ. EX PROCURADORA DO MUNICÍPIO DE SÃO GONÇALO/RJ.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: DANTAS, Aline Cardoso Dória. As vedações legais à antecipação dos efeitos da tutela em face da fazenda pública e a interpretação conferida pelos tribunais pátrios Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 maio 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39501/as-vedacoes-legais-a-antecipacao-dos-efeitos-da-tutela-em-face-da-fazenda-publica-e-a-interpretacao-conferida-pelos-tribunais-patrios. Acesso em: 23 dez 2024.
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