Resumo: Este artigo procura apresentar as características da presunção de inocência, apontando sua evolução histórica e a possibilidade de limitá-la no caso concreto.
Palavras-chave: Presunção de inocência. Características. Relativismo.
Sumário: 1. Evolução da presunção de inocência. 2. Presunção de inocência no direito brasileiro. 3. Do caráter relativo da presunção de inocência.
1. EVOLUÇÃO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
A presunção de inocência é reconhecida hoje como um direito universal do indivíduo, decorrente da dignidade humana que possui, de modo que qualquer afronta à dimensão denominada “mínimo ético irredutível”[1], importa violação dos direitos humanos que lhe são garantidos.
Afirma-se este direito como universal, sem desconsiderar as críticas feitas pelos adeptos da teoria do relativismo cultural[2], muito menos se fecham os olhos às considerações de Boaventura de Sousa Santos sobre o multiculturalismo[3]. Entretanto, adota-se aqui a concepção majoritária que entende serem os direitos humanos universais, pois, como ensina Norberto Bobbio[4], esses direitos nascem como direitos naturais universais, desenvolvem-se como direitos positivos e alcançam a plenitude como direitos positivos universais.
A presunção de inocência, direito fundamentalmente positivado em nosso ordenamento jurídico e em ordenamentos alienígenas, apresenta também como característica a historicidade, caráter marcante dos direitos fundamentais, porquanto se consolidou ao longo da história. Para o professor Manoel Jorge, esse caráter “está representado pela circunstância de que sua consolidação se dá por meio do passar do tempo, do percurso histórico”[5].
Verifica-se que nem sempre dispôs o cidadão de qualquer garantia diante do Estado, o qual lhe aplicava penas cruéis com base apenas em boatos, totalmente infundadas, utilizando o direito penal como instrumento de perseguição.[6] Não podemos deixar de citar a obra de Cesare Beccaria, o qual relata os abusos praticados nos séculos passados.
“É esse código informe, que não passa de produção monstruosa dos séculos mais bárbaros, que eu quero examinar nesta obra. Limitar-me-ei, porém, ao sistema criminal, cujos abusos ousarei assinalar aos que estão encarregados de proteger a felicidade pública (...) De resto, examinando os abusos de que vamos falar, verificar-se-á que os mesmos constituem a sátira e a vergonha dos séculos e dos legisladores.”[7]
Convém ressaltar que o sistema de persecução penal inquisitivo, o qual era pautado na concentração em uma única pessoa toda a atividade investigativa, acusatória bem como o julgamento, possibilitou a ocorrência das barbáries, dos abusos relatados e criticados por Beccaria[8] e Foucault[9]. Nesse período, imperava a presunção de culpabilidade, “onde o infrator da norma penal, tipificada enquanto crime, era presumidamente culpado, não havendo sequer a possibilidade do exercício das garantias inerentes a um processo justo e célere”.[10]
A acusação era feita secretamente, sendo o acusado considerado culpado antes mesmo de se obter qualquer elemento probatório, ou seja, dispensava-se o que hoje se chama de justa causa (materialidade e indícios de autoria) para que se permitisse presumir a culpa do indivíduo que, ainda que levianamente, fosse apontado como responsável pela infração criminal. Acrescente-se, ainda, o fato de que, como não ocorria o trânsito em julgado da sentença, a qualquer tempo poderia ser revista a pena, podendo ocorrer reforma pro societa, além da efetiva utilização da tortura constituída como meio lícito de obtenção de prova.[11]
Conforme assevera Ricardo Alves Bento, a raiz histórica da presunção de inocência pode ter sido fincada no século XII, com a edição da Magna Carta de 1215.[12]
De igual modo, Fábio Konder Comparato reafirma a importância da Magna Carta, bem como das Declarações de Leão de 1188, ocorrendo insurgência em relação aos abusos quando das prisões, pois “no embrião dos direitos humanos, portanto, despontou antes de tudo o valor liberdade”[13].
No entanto, o principal marco foi mesmo a Revolução Francesa, influenciada pelo Iluminismo, que resultou na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que marcou o início de um novo regime político:
“Ela representa, por assim dizer, o atestado de óbito do Ancien Régime, constituído pela monarquia absoluta e pelos privilégios feudais, e, nesse sentido, volta-se claramente para o passado. Mas o caráter abstrato e geral das fórmulas empregadas, algumas delas lapidares, tornou a Declaração de 1789, daí em diante, uma espécie de carta geográfica fundamental para a navegação política nos mares do futuro, uma referência indispensável a todo projeto de constitucionalização dos povos.”[14]
Foi nesta Declaração, no seu artigo 9º, que se positivou o princípio da presunção de inocência.
“Art. 9.º Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei.”[15]
Pelo que nos ensina Leonir Batisti, “a notoriedade do art. 9º nao impede que se reconheça que o art 7º é que concentrou a regra da proibição da prisão ilegal”[16]. Vale dizer, muito embora a positivação do instituto esteja no artigo 9º, o fato de o art. 7º estabelecer a necessidade de observância da legalidade na prisão já aponta para o repúdio às prisões arbitrárias, como se verificava anteriormente.
“Art. 7.º Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser punidos; mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer imediatamente, caso contrário torna-se culpado de resistência.”[17]
Em 1948, a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas proclamou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, estabelecedo o princípio em estudo em seu artigo XI, que expressamente nos traz que “toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei”. Estabelece, ainda, este artigo que o julgamento deve ser público e que seja assegura a defesa do acusado[18].
A Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais de 1950, também chamada de Convenção Européia dos Direitos do Homem, estabeleceu em seu artigo 6º que “qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada”, instituindo como direitos mínimos do acusado, em síntese, o direito de conhecer a natureza e a causa da acusação contra ele formulada, bem como o direito de defesa[19].
Cumpre observar que, de igual modo, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos prevê a presunção de inocência como uma garantia processual em seu artigo 14.2[20].
E, por fim, anotamos a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também denominada Pacto da San José da Costa Rica, que em seu artigo 8º positivou a presunção de inocência dentre as garantias processuais do cidadão.
“Artigo 8º - Garantias judiciais
(...)
2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa.
Por tais razões, podemos reafirmar que a presunção de inocência fortaleceu-se com o passar do tempo, passando a ser inserida no direito internacional como garantia indissociável da condição humana.
É imperioso apontar, ainda, que a conseqüência desta evolução do princípio em análise foi a previsão nas Constituições de diversos países, os quais a elegeram ao patamar de direito fundamental, constituindo-se, também, garantia ao cidadão de não mais ser considerado culpado, salvo se na forma da lei.
2. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA NO DIREITO BRASILEIRO
No Brasil, a presunção de inocência foi positivada a partir da Constituição de 1988, que passou a afirmá-la dentre os direitos e garantias individuais, inserindo-a no rol expresso de direitos fundamentais, portanto, formalmente constitucionais, disposto no art. 5º, inciso LVII, da Carta Magna.
“Art. 5º – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito de sentença penal condenatória;”[21]
É certo que, no entanto, antes mesmo de sua positivação no seio da Constituição da República, já encontrávamos seus reflexos como princípio implícito, presente na realidade jurídica brasileira. Mas foi com a sua previsão expressa que ganhou contornos mais efetivos, sobretudo pelo fato de vir consagrado no texto constitucional ao lado de rol não taxativo de garantias individuais, a partir de 1988.
Ressalta-se, porém, que embora não se verificasse na prática a adequada interpretação e efetiva aplicação da garantia normativa, visto que resultante de combinação de dispositivos normativos, as Constituições anteriores esboçavam a inserção do princípio da presunção de inocência no rol dos direitos civis e políticos do cidadão. Isso não fora feito, mas era possível extrair tal entendimento dos comandos dispostos nos ordenamentos que antecederam a Constituição de 1988, posto que, de forma tímida, já se apontava para uma proteção da liberdade.[22]
Sabe-se que, em sede doutrinária, tem-se entendido o princípio da presunção de inocência como um direito fundamental relacionado à segurança jurídica em matéria penal e processual penal. No entanto, da forma que a presunção de inocência foi positivada na Constituição Federal terminou por possibilitar alguns dissensos doutrinários acerca da significação do princípio e possível correlação com a não-culpabilidade, posto que não fora repetido, textualmente, o que havia sido previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, as quais têm inserta no corpo do texto a expressão “presume-se inocente”, não dando qualquer margem a cogitações ou ilações doutrinarias no sentido de se conceber outra interpretação, senão aquela que conduza ao entendimento que o acusado deve ser considerado inocente até que se prove a sua culpabilidade.
Nossa Carta Magna consagrou expressamente uma formulação em forma negativa, uma vez que nela não se afirma que será o indivíduo considerado presumidamente inocente, mas que não será reputado como culpado até que seja produzida uma sentença penal condenatória irrecorrível.
Diante da forma como ocorreu tal positivação, surgiram divergências doutrinárias acerca do alcance semântico do referido dispositivo. Foram sufragados entendimentos de que a presunção de inocência não poderia ser confundida com a não-culpabilidade, sendo conceitos diversos. A rigor, utilizando-se uma interpretação literal restritiva, essa vertente se faz possível e demonstra até certa procedência. Poder-se-ia, pois, afirmar que a presunção de inocência seria mais abrangente e genérica do que o conceito de não-culpabilidade, que expressa somente a negativa de um estado, o de não estar, ainda, culpado.
Contudo, na prática judiciária nacional o campo de aplicação dos supracitados princípios não se diferencia, em essência. Desta forma, têm sido as expressões utilizadas indistintamente, como se fossem sinônimos, sem um apelo rigoroso à interpretação literal que pudesse ser efetuada.
René Ariel Dotti, ao escrever o prefácio da obra de Batisti, afirma que:
“Alguns juristas italianos discutem sobre a distinção prática das expressões “presunção de inocência” e “presunção de não-culpabilidade”. O entendimento correto é sustentado por Illuminati que rejeita o debate semântico para se evitar o risco de reduzir o princípio a uma inconcludente enunciação retórica em que o acusado de presumível inocente passa a ser considerado não-culpado, prejudicando uma noção extremamente clara e historicamente consolidada. No mesmo sentido é a lição de Vilela: ‘Fazer a distinção entre presunção de inocência e presunção de não-culpabilidade revela-se contraproducente, pois retira-se um significado determinativo, favorecendo, assim, soluções arbitrárias no plano aplicativo’.”[23]
Continuar defendendo possíveis diferenciações entre a presunção de inocência e a não-culpabilidade, numa visão realista, aproximando-se da práxis jurídica, não se mostra mais como um entendimento defensável, mas, sim, como um apego formalista e literal desnecessário.
Assim, seja como princípio da presunção de inocência ou como postulado da não-culpabilidade, a CF/88 assegura a todos a possibilidade de serem presumidamente inocentes, desconsiderando previamente a culpabilidade, restando por oportunizar tal rotulação, tão-somente, após a ocorrência do trânsito em julgado da sentença penal condenatória, exigindo-se um juízo de certeza, e não de mera possibilidade ou probabilidade.
No que respeita à ocorrência do trânsito em julgado, convém fazermos rápidas considerações.
Falar em trânsito em julgado, nos conduz à referência da dimensão temporal do princípio. Sua incidência, por óbvio, inicia-se desde o nascimento da pessoa, uma vez que um dos objetos de proteção do instituto é a liberdade e toda pessoa nasce livre.
Convém, no entanto, apontar o termo final. Destacamos que, para o professor Saulo José Casali Bahia, a coisa julgada consiste “na qualidade da decisão ou sentença da qual não cabe mais recurso, tem-se que a mesma pode se formar nos mais variados graus de jurisdição, no Brasil.”[24] Assim, a presunção de inocência terá o seu termo final quando da impossibilidade de se interpor recurso. Entretanto, o princípio deixará de ser aplicado àquela questão específica que transitou em julgado. Quem é considerado culpado, o é em relação ao fato provado que transitou em julgado. Logo, o termo final é específico. Não extingue direito fundamental no tocante a outros fatos de que venha ser acusado o mesmo réu.
É oportuno acrescentar que há corrente doutrinária que entende que o termo final da presunção de inocência é o não cabimento de recurso ordinário, ou seja, prolatada a decisão condenatória e esgotados os recursos ordinários, não há se falar mais em presunção de inocência. Tal entendimento é fundamentado no fato de o recurso extraordinário não tem efeito suspensivo, de acordo com o art. 637 do Código de Processo Penal, bem como pelo que dispõe o art. 27, parágrafo 2º da Lei 8.038/90 ao deixar expresso que o recurso extraordinário e o especial só terão efeito devolutivo.
3. DO CARÁTER RELATIVO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Nenhum direito é absoluto, porquanto todos os direitos são passíveis de limitação, no caso concreto. Em se tratando de princípios, quando estes estiverem em rota de colisão com outros princípios de igual peso, ou que, no caso em análise, deva ter peso mais elevado, deverá o magistrado realizar o exercício de ponderação para efetivar o máximo possível um dos princípios sem, contudo, esvaziar por completo o outro.
Por essa razão é que até mesmo o direito à vida, pressuposto de existência do indivíduo, pode ser mitigado. A própria ordem jurídica brasileira estabelece ao estampar na sua Lei Maior a possibilidade de que seja decretada a pena de morte. Estabelece-se na CF/88 que a regra é a preservação da vida, conforme o caput do artigo 5, elegendo-a à condição de direito inviolável (“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”). Entretanto, no próprio mesmo artigo, em seu inciso XLVII que trata das penas, está expressa a relativização deste direito fundamental, que assim declara: “não haverá penas: a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) de caráter perpétuo; c) de trabalhos forçados; d) de banimento; e) cruéis”.
Outro exemplo que se pode apontar é o apresentado por Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, ao tratarem das características dos direitos reais, abordam o absolutismo desses direitos advertindo que:
“Fundamental, para início da abordagem, é perceber que o absolutismo dos direitos reais não decorre do poder ilimitado de seus titulares sobre os bens que se submetem a sua autoridade. Há muito, a ciência do direito relativizou a sacralidade da propriedade. Como qualquer direito fundamental o ordenamento jurídico a submete a uma ponderação de valores, eis que em um Estado Democrático de Direito marcado pela pluralidade, não há espaço para dogmas”.[25]
Aduz-se, portanto, que é por conta de uma visão garantista levada ao extremo que se encontra defensores da ilimitabilidade da presunção de inocência, tentando colocá-la em patamar intangível, não podendo ser limitada nem mesmo quando demonstrada a possibilidade concreta de lesão a outros direitos individuais ou coletivos.
No que se refere ao garantismo penal, imperioso é tecer alguns comentários com vistas a desconstituir essa visão hiperbólica dos seus efeitos.
A doutrina garantista, de acordo com o que Douglas Fischer escreve no livro Garantismo Penal Integral, tem uma visão extremada do que seja a extensão protetiva do indivíduo:
“Em síntese inicial, não mais poderiam ser aplicáveis inúmeros dispositivos legais e entendimentos jurisprudenciais que se apresentassem incompatíveis com as garantias fundamentais dos cidadãos e que estivessem estampadas numa Constituição democrática. Essa era a preocupação central, mas não a única,
segundo cremos e interpretamos.”[26]
Conclui o autor afirmando que “não raro vemos hodiernamente um certo desvirtuamento dos integrais postulados garantistas”, isso porque se percebe que ocorre exacerbação na ênfase dada à doutrina, de maneira que “continua recaindo exclusivamente sobre direitos fundamentais individuais”. Os direitos focados pela doutrina são os de primeira geração, que se consubstanciam em um não-fazer do Estado, esquecendo-se, porém, que existem os direitos sociais também presentes na ordem constitucional.[27]
Acrescenta, pois, Fischer:
“... para a (e na) proteção dos direitos e garantias fundamentais (individuais e coletivas) e na exigibilidade do cumprimento dos deveres fundamentais, há se observar que os princípios elencados funcionam como guias na dinâmica e harmônica configuração (na melhor medida possível) de todos os bens e valores protegidos constitucionalmente.” [28]
Pode-se afirmar, por conseguinte, que, embora a Constituição Federal brasileira seja garantista, “a teoria garantista não existe apenas para proteção dos interesses fundamentais individuais”[29]. Isso fica evidenciado no próprio artigo 5º da CF que traz um rol não taxativo de direitos e garantias, individuais e coletivos, os quais quando se encontrarem em rota de colisão não poderão, aprioristicamente, ter sua abrangência estabelecida de forma a sempre prevalecer diante de outro bem jurídico igualmente tutelado.
“... não concordamos com as posições doutrinárias e os entendimentos jurisprudenciais que (mesmo sem explicitamente reconhecer) interpretam que o garantismo penal importe a prevalência indiscriminada somente de direitos fundamentais individuais sobre os demais direitos, valores, princípios e regras constitucionais, sem sopesação alguma e, sobretudo, diante das interpretações lítero gramaticais e acorrendo a verdadeiros argumentos de autoridade (e não autoridade dos argumentos) como forma de justificar a decisão tomada.”[30]
Logo, o garantismo penal deve ser integral, do qual decorre a necessidade de proteção de bens jurídicos individuais, não se esquecendo de destinar, do mesmo modo, a proteção aos bens jurídicos coletivos, além de destinar “proteção ativa dos interesses da sociedade e dos investigados e/ou processados”. Com efeito, impede destacar que o garantismo penal, sendo integralmente aplicado, “impõe que sejam observados rigidamente não só os direitos fundamentais (individuais e coletivos), mas também deveres fundamentais (do Estado e dos cidadãos), previstos na Constituição.”[31]
Diante do exposto, outra não é a conclusão senão a que a presunção de inocência, apesar de possuir grande peso por se tratar de instrumento garantidor do exercício de outros direitos fundamentais, possui caráter relativo, podendo (e até devendo) ser limitada quando for necessário para se efetivar princípios igualmente constitucionais que com ela colidam.
Nesse diapasão, Vladimir Aras, posicionando-se contra o suposto direito de mentir do acusado no processo penal, demonstra que aceitação dessa decorrência da presunção de inocência é equivocada, salientando que:
“A presunção de inocência é um preceito constitucional que impõe ao Ministério Público ou ao querelante o ônus de produzir a prova válida e capaz de desfazer tal presunção, afastada qualquer dúvida razoável. O acusado não precisa mover-se sequer para “provar sua inocência”. Pode silenciar no seu interrogatório e disso não advirá conseqüência alguma, mas não pode falsear a verdade ou mutilá-la com o propósito de levar o julgador a erro.”[32]
Impende, pois, completar que a possibilidade de mitigação deste princípio está legitimada e positivada no ordenamento jurídico brasileiro ao estabelecer as prisões cautelares.
Nas exatas palavras do Min. Marco Aurélio: “O princípio da não-culpabilidade exclui a execução da pena quando pendente recurso, muito embora sem eficácia suspensiva”[33].
Com efeito, expõe-se que é assente o entendimento majoritário de que as prisões provisórias não configuram antecipação dos efeitos da sentença penal condenatória nem configuram desrespeito ao princípio da presunção de inocência. É oportuno, pois, destacar que Ricardo Bento entende que é coerente “existir uma ponderação entre a defesa da sociedade e a defesa da liberdade do indivíduo”.[34]
Pensa acertadamente o autor, uma vez que, a priori, a presunção de inocência destina-se a garantir a liberdade do indivíduo. Assim, ao se analisar a possibilidade de afastar o princípio da inocência, deve-se colocar no outro lado da balança outro direito fundamental a ser ponderado.
Complementa Ricardo Bento, afirmando:
“Relativa à prisão preventiva, se constata uma divergência entre a observância da presunção de inocência e a prevalência do direito à liberdade, concluindo que em face da presunção de inocência a prisão preventiva só se justifica mediante observância irrestrita dos requisitos das medidas cautelares.”[35]
Conclui-se, por conseguinte, que a presunção de inocência não pode, de forma alguma, ser absoluta, de modo a garantir liberdade irrestrita ao acusado, desconsiderando a probabilidade de dano à sociedade, por exemplo. Não se quer dizer, com isso, que qualquer suspeita seja ensejadora do afastamento da presunção, mesmo porque se consubstancia numa garantia de outros direitos e, conseqüentemente, o seu afastamento não fundamentado devidamente poderá gerar lesão ao direito por ele protegido.
Como bem destaca Ricardo Bento, é a necessidade do caso concreto que justifica a adoção da medida:
“Nesta modalidade de prisão sem pena, obrigatoriamente devem estar presentes os requisitos da medida cautelar, fumus boni iuris, identificada como a probabilidade da existência do direito material infringido e periculum in mora, como o perigo da perda do objeto em face da demora na prestação jurisdicional definitiva (...) Se a Constituição só permite ser o acusado considerado culpado após sentença condenatória transitada em julgado, a prisão-pena não pode ocorrer antes de afirmada definitivamente a sua culpa, o que representaria indevida antecipação de pena. Só se justifica a prisão durante o processo quando tivesse natureza cautelar, ou seja, quando fosse necessária em face de circunstâncias concretas da causa.”[36] (grifamos)
Desse modo, é possível afirmar que a limitabilidade imposta aos direitos fundamentais se contrapõe a qualquer ideia de caráter absoluto que se pretende atribuir-lhe. Sabe-se que, no caso concreto, o juiz poderá limitar a abrangência dos direitos fundamentais, utilizando de ponderação.
Portanto, a presunção de inocência, não se constituindo exceção a essa regra, tem como limite os demais direitos humanos fundamentais, conforme afirma Celso Ribeiro Bastos, citado por Manoel Jorge: “pode-se argumentar corretamente que todos os direitos individuais são passíveis de limitação.”
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[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. 12 Ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 209.
[2] Idem. De acordo com Flávia Piovesan, uma das críticas feitas pelo culturalismo ao universalismo dos direitos humanos é o fato de serem uma versão imperialista, na tentativa de impor determinada cultura (ocidental) como geral
[3] SANTOS, Boaventura de Sousa. Uma Concepção multicultural dos Direitos Humanos. Revista Lua Nova, V. 39. p. 112. Para o autor, os direitos humanos devem ser construídos por meio de uma concepção multicultural, através de diálogo entre as diversas culturas.
[4] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 30.
[5] SILVA NETO, Manoel Jorge e. Direito Constitucional. 2. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 518
[6] BATISTI, Leonir. Presunção de inocência: Apreciação Dogmática e nos Instrumentos Internacionais e Constituições do Brasil e Portugal. Curitiba. Juruá, 2009. p. 27
[7] BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Ed. eletrônica: Ed. Ridendo Catigat Moraes. Disponível em http://www.4shared.com/get/zxAT6gmR/Dos_delito_e_das_Penas_-__Cesa.html. acessado em 04 de novembro de 2010. p. 13 - 14.
[8] Idem.. p. 22
[9] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. – 34. ed. – Rio de Janeiro: Vozes, 2007. p. 18.
[10] BENTO, Ricardo Alves. Presunção de Inocência no Processo Penal. São Paulo. Quartier Latin do Brasil. 2007. p. 31
[11] BENTO, Ricardo Alves. Presunção de Inocência no Processo Penal. São Paulo. Quartier Latin do Brasil. 2007. p. 32 e 33.
[12] Idem p. 27. “Dentre as principais disposições da Magna Carta, numa progressiva afirmação dos direitos humanos e da instituição do regime democrático de direito, o artigo 39, considerando um dos principais pontos, pois al;em de desvincular da pessoa do rei tanto da lei quanto da jurisdição, reconheceu que os homens livres devem ser julgados pelos seus pares de acordo com a lei da terra, como ditame originário da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa...”.
[13] COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos. – 6. ed. ver. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2008. p. 46.
[14] Idem p. 151
[15] Declaração do direitos do Homem e do cidadão. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3o. Acessado em 04 de novembro de 2010.
[16] BATISTI, Leonir. Presunção de inocência: Apreciação Dogmática e nos Instrumentos Internacionais e Constituições do Brasil e Portugal. Curitiba. Juruá, 2009. p. 31.
[17] Declaração do direitos do homem e do cidadão. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3o. Acessado em 04 de novembro de 2010.
[18] Artigo XI 1. Todo o homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa.
2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituiam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso.
[19] Convenção européia dos direitos do homem
[20] Pacto internacional sobre direitos civis e políticos art. 14.2 “Toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa.”
[21] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
[22] BATISTI, Leonir. Presunção de inocência: Apreciação Dogmática e nos Instrumentos Internacionais e Constituições do Brasil e Portugal. Curitiba. Juruá, 2009. p. 98 a 103. O Autor destaca que embora não estivesse expressa no texto, seria possível concluir pela existência de um conjunto protetivo a partir da Constituição de 1981 que incluía “a) quando o crime não tiver pena maior de que 6 meses ou desterro para fora da Comarca, poderá o réu livrar-se solto; b) mesmo havendo culpa formada, quem prestar fiança nos casos que a lei admite, mesmo que com culpa formada não será conduzido à prisão ou nela conservado; c) reduz a manutenção de prisão à hipótese de flagrante delito ou ordem escrita de autoridade legítima”
[23] BATISTI, Leonir. Presunção de inocência: Apreciação Dogmática e nos Instrumentos Internacionais e Constituições do Brasil e Portugal. Curitiba. Juruá, 2009. p. 15
[24] BAHIA, Saulo José Casali. O tribunal penal internacional e a Constituição Brasileira. Disponível em http://www.direitoufba.net/mensagem/saulocasali/tribunalinternacional.doc. Acessado em 05 de novembro de 2010. p. 4
[25] FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD Nelson. Direitos reais, 6. ed. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2009. p. 2
[26] FISCHER, Douglas; Et al. Garantismo Penal Integral. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 35 e 36 “Parece bastante simples constatar que a teoria do garantismo se traduz numa tutela daqueles valores e/ou direitos fundamentais, cuja satisfação, mesmo contra os interesses da maioria, constitui objetivo justificante do Direito Penal.”
[27] FISCHER, Douglas; Et al. Garantismo Penal Integral. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 27
[28] Idem. p. 31.
[29] Idem. p. 31
[30] Idem. p. 47
[31] FISCHER, Douglas; Et al. Garantismo Penal Integral. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 48
[32] Idem. p. 263 e 264
[33] HC 88.276, Rel. Min. Marco Aurélio, julgamento em 7/11/06, DJ de 16/ 03/07.
[34] BENTO, Ricardo Alves. Presunção de inocência no processo penal. São Paulo. Quartier Latin do Brasil. 2007. p. 154
[35] Idem p. 154.
[36] Idem. p. 155 – 156.
Doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestre em Segurança Pública, Justiça e Cidadania (UFBA). Bacharel em Direito (UFBA). Especialização em Direito Penal e Processo Penal pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci. Pesquisador do Grupo de Pesquisa de Direitos Humanos e Cidadania da Universidade Federal da Bahia. Promotor de Justiça do estado da Bahia.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: LIMA, JAIR ANTÔNIO SILVA DE. A presunção de inocência: conteúdo histórico e relativismo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 maio 2014, 05:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39504/a-presuncao-de-inocencia-conteudo-historico-e-relativismo. Acesso em: 23 dez 2024.
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