Sem dúvida, o fenômeno de constitucionalização do direito processual nasceu ao lado de correntes críticas do Direito[9], chegando-se ao que na teoria constitucional se denomina como “processo de abertura da Constituição” em prol das sociedades pluralistas[10] e, na teoria processual civil, poderíamos perfeitamente justificá-lo com a idéia de “processo de cidanização da jurisdição”[11].
As ditas sociedades pluralistas, também chamadas de “sociedades abertas” são colocadas por um de seus maiores idealizadores, Karl Popper, em relação direta com a Democracia.[12]
Na atualidade talvez sejam Pëter Haberle na Alemanha e Gustavo Zagrebelsky na Itália os principais defensores dessa abertura no pensamento constitucional contemporâneo.
Segundo Zagrebelsky, referidas sociedades são marcadas pela presença de uma diversidade de grupos sociais com interesses, ideologias e projetos distintos, sem que nenhuma tenha força suficiente para se manifestar como dominante.[13]
Já Häberle, além de seu método aberto de interpretar a Constituição[14], afirma que “um dos conceitos básicos para captar esta forma de pluralismo consiste no que se denomina a própria ‘abertura’, ou seja, a própria Constituição, suas teorias e doutrinas, suas interpretações e intérpretes – sobretudo em nível de direitos fundamentais –, e sua inerente dogmática jurídica, junto com seu posterior desenvolvimento e progresso”. [15]
O marco fundamental dessas sociedades é o afastamento de princípios absolutos em busca da tão almejada concordância prática – na expressão de Konrad Hesse[16] – entre os bens constitucionais, ainda que conflitantes.
Nas palavras de Zagrebelsky:
Se cada princípios e cada valor se entendessem como conceitos absolutos seria impossível admitir outros juntos a esses. O tema de conflito de valores, que queríamos resolver dando a vitória a todos, ainda quando não ignoramos sua tendencial inconciliabilidade.
No tempo presente, parece dominar a aspiração a algo que é conceitualmente impossível, porém altamente desejável na prática: a não-prevalência de um só valor e de um só princípio, senão a salvaguarda de vários simultaneamente. O imperativo teórico da não-contradição – válido para a scientia juris – não deveria obstaculizar a atividade própria da jurisprudentia de intentar realizar positivamente a ‘concordância prática’ das diversidades, e inclusive das contradições que, ainda que assim se apresentem na teoria, nem por isso deixam de ser desejáveis na prática. ‘Positivamente’: não, portanto mediante a simples amputação de potencialidades constitucionais, senão principalmente mediante prudentes soluções acumulativas, combinatórias, compensatórias, que conduzam os princípios constitucionais a um desenvolvimento conjunto e não a um declínio conjunto.[17]
No Brasil, podemos extrair essa fórmula pluralista a partir da opção constituinte da consagração de um Estado Democrático de Direito, fundado no “pluralismo político” (CF/88, art. 1º, V). Além disso, o próprio preâmbulo constitucional traz os valores supremos de uma “sociedade pluralista”.
A partir desse raciocínio, podemos inclusive ir mais além ao legitimar a constitucionalização do processo e das mais diversas áreas do Direito.[18]
Com a ascensão daquele novo constitucionalismo, nascido a partir da superação do jusnaturalismo e da derrota política do positivismo – diretamente ligados aos resultados nefastos da Segunda Guerra Mundial – o direito já não mais cabia naquela aplicação mecanicista da lei a partir de um processo de subsunção. Bases filosóficas vieram fundar a reaproximação entre o direito e a ética, fenômeno chamado pelos alemães de virada kantiana.
Nesse contexto, os direitos fundamentais ao lado da dignidade humana foram elevados ao centro do sistema, atuando como a mais pura manifestação dos “direitos humanos transformados em direito constitucional positivo”, na expressão de Robert Alexy.[19]
Os princípios constitucionais, a partir de então, atuam como a síntese jurídica dos valores políticos resguardados por uma sociedade, com influência direta e imediata em todos os ramos do direito.
Não se nega, todavia, a presença necessária de instrumentos para que Estados fadados por essa perspectiva principiológica possam promover, a partir de um ideal sistemático, todos esses valores igualmente resguardados. Veremos posteriormente que o princípio da proporcionalidade é o principal deles.
Esse novo jeito de pensar constitucionalista, ao lado da consagração cada vez mais reconhecida das sociedades pluralistas, serve de base para justificar um fenômeno atualmente constatado entre nós por Jônathas Luiz Moreira de Paula, denominado de processo de cidanização da jurisdição –muito próximo ao já tratado pluralismo constitucional – voltado, porém, à jurisdição em si como fenômeno da inclusão social.
Nas palavras do Autor:
Com a inclusão social, ter-se-á a presença de grupos na disputa pela produção e distribuição da riqueza nacional. Auferindo as benesses da riqueza nacional, os indivíduos tornar-se-ão cidadãos, numa transformação do real para o ideal.
Essa transformação, ora denominada “processo de cidanização”, que se coloca como inverso ao fenômeno jurídico, pois este sai do plano ideal para alcançar o real (denominado por hipostasiação do ordenamento jurídico).
Já a inclusão social oferta um fenômeno inverso: a exclusão social é uma realidade, onde com o “processo de cidanização”, transforma a realidade, alcançando concretamente a idealização, que é a inclusão social.[20]
Pegamos a deixa para afirmar: assim como a promoção da inclusão social, a jurisdição deve-se valer como forma de complemento[21] ou instrumento de realização[22] dos direitos fundamentais.
Não é a toa que autores do peso de Willis Santiago Guerra Filho ressalte que a Constituição possui uma natureza processual e as normas processuais também possuem estatuto constitucional, logo, são de natureza material.[23]
Voltando à idéia pluralista de encarar a Constituição, invocamos mais uma vez Peter Häberle para afirmar as normas do direito processual devem ser examinadas à luz de uma interpretação especificamente jurídico-constitucional, sendo encaradas como o direito constitucional concretizado.[24]
Temos com isso a elevação do direito de ação como típico direito fundamental.
3. Conclusão
O fenômeno da constitucionalização do direito em geral, e do direito processual em especial, é inegável. Como consequência imediata, cresce a importância das decisões do Supremo Tribunal Federal que tem por objetivo justamente por em prática os apontamentos teóricos e filosóficos acima explorados.
O direito processual, nesse contexto, aparece como resposta à exigência de racionalidade, característica das sociedades modernas [25], em busca daquele Direito Justo que vem defendendo Karl Larenz[26].
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[1] Alexy, Robert. Tres escritos sobre los derechos fundamentales y la teoría de los princípios. Bogotá: Universidad Externado de Colômbia, 2003, p. 47.
[2] Silva, Virgílio Afonso. A constitucionalização do Direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 39-45.
[3] Essa, aliás, é apontada como a primeira fase histórica do direito processual, denominada de sincretismo, onde o processo era considerado como simples forma de exercício do direito (cf. Cintra, Antônio Carlos de Araújo; Grinover, Ada Pellegrini; Dinamarco, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 11ª ed., São Paulo: Malheiros, 1995, p. 42).
[4] Conferir dentre outros: Guerra Filho, Willis Santiago. Processo constitucional e direito fundamentais. 4ª ed., São Paulo: RCS Editora, 2005; ______. Teoria processual da Constituição. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002; Medina, Paulo Roberto de Gouvêa. Direito processual constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2003; Oliveira, C. A. Alvaro de (org.). Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004; Dantas, Ivo. Constituição & Processo: introdução ao direito processual constitucional. Curitiba: Juruá, 2003; Cruz, José Raimundo Gomes da. Estudos sobre o Processo e a Constituição de 1988. São Paulo: RT, 1993.
[5] Exemplo trivial desse processo de constitucionalização através de reforma legislativa pode ser encontrado após a Emenda Constitucional nº 45 e a inserção no rol de direitos fundamentais a garantia de um processo célere. Nesse caso específico, seguindo imperativo da própria Emenda Constitucional (art. 7º), o Congresso foi obrigado a instalar após sua promulgação comissão especial mista para fins de promover, em cento e oitenta dias, alterações na legislação processual objetivando tornar mais amplo o acesso à Justiça e mais célere a prestação jurisdicional.
[6] Oliveira, Carlos Alberto Álvaro. Processo Civil e Constituição. Revista do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, ano II, n. 6, 1985, p. 63.
[7] Miranda, Jorge. Constituição e processo civil. Revista de Processo, n. 98, São Paulo: RT, 2000, p. 29.
[8] Miranda, Jorge. Op. cit., p. 29.
[9] V. Coelho, Luis Fernando. Teoria crítica do Direito. 3 ª ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
[10] Häberle, Peter. Constitución como cultura. Bogotá: Instituto de estudios constitucionales Carlos Restrepo Piedrahita, 2002, p. 116 e s.
[11] Paula, Jônatas Luiz Moreira de. A Jurisdição como elemento da inclusão social: revitalizando as regras do jogo democrático. Barueri: Manole, 2002, p. 205.
[12] Popper, Karl R. A sociedade aberta e seus inimigos. Tomo 1, Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1998, p. 188.
[13] Zagrebelsky, Gustavo. El derecho dúctil: ley, derechos, justicia. 5ª ed., Madrid: Editorial Trotta, 2003, p. 13.
[14] Häberle, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p. 19 e s.
[15] Häberle, Peter. Pluralismo y constitución: estudios de teoría constitucional de la sociedad abierta. Madrid: Tecnos, 2002, p. 103.
[16] Konrad Hesse. Elementos de direito constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 159 e s.
[17] Zagrebelsky, Gustavo. Op. cit., p. 16.
[18] No direito administrativo, v. Justen Filho, Marçal. Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 13 e s. e Moraes, Germana de Oliveira. Controle jurisdicional da Administração Pública. 2ª ed., São Paulo: Dialética, 2004, p. 29-30. No direito penal, v. Ferrajoli, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. 6ª ed., Madri: Editorial Trotta, 2004; No direito civil, v. Sarmento, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Lummen Júris, 2004; Steinmetz, Wilson Antonio. A vinculação dos particulares a direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2004.
[19] Alexy, Robert. Tres escritos sobre los derechos fundamentales y la teoría de los principios. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2003, p. 26.
[20] Paula, Jônatas Luiz Moreira de. Op. cit.,, p. 205
[21] Medina, Paulo Roberto de Gouvêa. Op. cit., p. 9.
[22] Oliveira, Carlos Alberto Álvaro de. O processo civil na perspectiva dos direitos fundamentais. In: ______. (org.). Processo e Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 3.
[23] Guerra Filho, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 27-8. ______. Quadro teórico referencial para o estudo dos direitos humanos e dos direitos fundamentais em face do direito processual. Revista de Ciências Jurídicas e Sociais da Unipar, vol. 5, Toledo: Unipar, 2002, p. 265.
[24] Häberle, Peter. O recurso de amparo no sistema germânico de Justiça Constitucional. Direito Público, nº 2, Porto Alegre: Síntese, 2003, p. 98.
[25] Guerra Filho, Willis Santiago. Teoria processual da Constituição. São Paulo: Celso Bastos Editor, 2002, p. 31.
[26] Larenz, Karl. Derecho justo: fundamentos de ética jurídica. Reimpresión, Madri: Civitas, 2001, passim.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. A constitucionalização do processo Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 31 maio 2014, 16:30. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39510/a-constitucionalizacao-do-processo. Acesso em: 23 dez 2024.
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