Resumo: Aborda a importância do processo e método hermenêutico na atividade do operador do Direito, na busca do alcance e sentido da norma jurídica. Apresenta os Métodos Clássicos e os Princípios Constitucionais de Interpretação.
Introdução:
Não raras vezes, a norma jurídica não se reveste de suficiente clareza, tornando a atividade do operador do Direito tormentosa. Noutras, muito embora clara, o texto normativo mostra-se manifestamente alheio aos usos e costumes do tempo em que é interpretado, causando sérias dúvidas sobre como interpretá-lo e, mais que isso, extrair a máxima eficácia de seu texto.
O presente artigo aborda a necessidade e a importância da Hermenêutica Jurídica, vez que, através dela, de modo científico, pode o intérprete desvelar sentidos racionais para a norma, bem como aborda seus clássicos métodos, desde a estrita interpretação gramatical propagada pela Escola da Exegese, até os modernos Princípios da Hermenêutica Constitucional.
1. Hermenêutica.
A interpretação da norma (enquanto fato social valorado e normatizado) é objeto de estudo da Hermenêutica Jurídica que, nos dizeres de Carlos Maximiliano, tem por finalidade a sistematização dos processos aplicáveis com o intuito de delimitar o sentido e o alcance das expressões de Direito (MAXIMILIANO, 1993, p. 01)
O cientista do Direito tem como objeto de estudo e análise, basicamente, a palavra. Mais que a palavra enquanto unidade isolada, a união delas. E mais que o conjunto de palavras, o horizonte social, político, econômico e jurídico em que se inserem.
Com efeito, a descoberta do significado da norma (conjunto de palavras destinadas a expressar a valoração de determinado fato social) é tarefa a que o cientista do direito dedica, sem dúvida, longo tempo, pois nem sempre o sentido o alcance das expressões são facilmente aferíveis.
Isso porque, não raras vezes, o texto normativo lança mão da utilização de palavras e expressões de múltiplos significados, tornando, além de imprescindível, árdua a tarefa do hermeneuta.
Além disso, o lugar em que se dá a interpretação é o pensamento do hermeneuta. Toda a subjetividade do intérprete, de algum modo, aparece no momento da delimitação e do alcance do sentido das expressões que compõem a norma.
Não é por menos que o mestre Raimundo Bezerra Falcão chega a falar na inesgotabilidade de sentido das normas, nos seguintes termos:
O sentido é livre porque o palco de sua criação é o pensamento, que também o é por excelência. E é inesgotável por ser livre, digamo-lo sempre. Tão livre é o pensamento – e com ele o sentido – que Spinoza não hesitou em colocá-lo, juntamente com a extensão, como atributo da substância, esta que é o ser existente em si e por si, causa de si mesmo e, por isso, absoluto, identificável com a própria divindade (FALCÃO, 2000, p. 38).
Prossegue o mestre cearense afirmando que, muito embora a interpretação seja dotada de infinita liberdade, ainda sim é possível imprimir-lhe limites, posto que o homem possui liberdade, até mesmo, para se impor balizas:
O pensamento é, desse modo, livre, em essência. Se algum limite se lhe pode pôr, é a limitação pelo rumo, pela teleologia. Portanto, podemos asseverar: ao nosso ver, o pensamento só se limita pelo rumo, pela finalidade. Acontece que o rumo lhe pode ser imposto pelo homem. Logo, está dentro da liberdade, pois se trata de algo que espontaneamente o homem lhe imprime, e, dessa forma, continua tudo no reino da liberdade (FALCÃO, 2000, p.38)
Por tal razão, a escolha do sentido adequado à palavra que compõe a norma é tarefa que não se pode dar ao bel prazer do intérprete jurídico, sob pena de poder, inclusive, malferir a coerência interna da norma e a coerência externa com as demais existentes no ordenamento jurídico.
Como bem observado por Falcão, a finalidade é uma baliza que se deve ter para apontar qual ou quais são os sentidos que melhor surgem da interpretação do objeto hermenêutico.
Nesse sentido, não é demais lembrar do famoso exemplo dado por Recaséns Siches sobre a aplicação das finalidades a que se pretende buscar no esforço hermenêutico. Trata-se da história da estação ferroviária em que havia uma placa com os dizeres “é proibida a entrada de cães”. Em seguida, aparece um homem com um urso que insiste em entrar, alegando que a proibição serve apenas para cachorros, e não para quaisquer outros animais. Empós, aparece um cego mutilado de guerra conduzido por um cão-guia (MAGALHÃES FILHO, 2009).
A pergunta que se faz é: qual dos dois pode entrar na estação ferroviária? As respostas são várias, ante as inimagináveis possibilidades que surgem da criatividade do intérprete. Contudo, apenas utilizando-se de ferramentas finalísticas é que o intérprete alcançará uma solução que entenda adequada para o exemplo dado.
No entanto, uma pergunta de grande relevo e magnitude deve ser realizada, referente a qual finalidade deve o intérprete ter como referencial na interpretação da norma: o hermeneuta deve buscar a finalidade pretendida por quem fez a norma ou a finalidade de quem interpreta a norma?
Tércio Sampaio Ferraz Jr. apresenta bem a dicotomia entre a doutrina hermenêutica subjetivista (que busca a interpretação conforme a vontade do legislador) e a doutrina objetivista (que entende que a norma possui sentido próprio, podendo, portanto, ser modificável ao longo do tempo e, por que não, de acordo com a vontade do intérprete), chegando à conclusão de que uma não prevalece sobre a outra, servindo a explanação para deixá-las mais em evidência do que para por fim à celeuma (FERRAZ JR., 2003, p. 268):
A doutrina subjetivista insiste que, em sendo a ciência jurídica um saber dogmático (a noção de dogma enquanto um princípio arbitrário, derivado de vontade do emissor de norma lhe é fundamental), é, basicamente, uma compreensão do pensamento do legislador; portanto, interpretação ex tunc (desde então, isto é, desde o aparecimento da norma pela positivação da vontade legislativa), ressaltando-se, em consonância, o papel preponderante do aspecto genético e das técnicas que lhe são apropriadas (método histótico). Já para a doutrina objetivista, a norma goza de um sentido próprio, determinado por fatores objetivos (o dogma é um arbitrário social), independente até certo ponto do sentido que lhe tenha querido dar o legislador, donde a concepção da interpretação como uma compreensão ex nunc (desde agora, isto é, tendo em vista a situação e o montante atual de sua vigência), ressaltando-se o papel preponderante dos aspectos estruturais em que a norma ocorre e as técnicas apropriadas e sua captação (método sociológico) (FERRAZ JR., 2003, p.267)
Assim, sem dirimir sobre qual viés hermenêutico é o mais apropriado ante ao que se quer interpretar, Tércio acaba por delimitar, no entanto, quais os métodos clássicos de interpretação que desembocam nas doutrinas subjetivistas e objetivistas, os quais passamos a expor.
2. A Hermenêutica Jurídica Clássica.
Os métodos clássicos de interpretação, definidos por Savigny, tem, na visão de Tércio Sampaio Ferraz Jr, uma finalidade de orientar o intérprete na tarefa de decidir os conflitos através de regras técnicas que o auxiliam na obtenção de um resultado (2003, p. 286), sendo tais problemas de ordem sintática, semântica e pragmática.
Nesse capítulo, trabalharemos mais detidamente com os métodos que serão utilizados em nossa investigação, buscando entender seus fundamentos para melhor utilizá-los no momento oportuno.
O método gramatical de interpretação tem por escopo realizar uma interpretação morfológica e sintática do texto normativo (MAGALHÃES FILHO, 2009, p. 35). Noutras palavras, a mera leitura do texto já seria capaz de revelar o sentido e o alcance da norma jurídica.
A operacionalidade do método gramatical foi posta em evidência pela chamada Escola de Exegese na França pós-revolucionária. Insta dizer que, após a Revolução Francesa, acreditavam os revolucionários (agora no poder do Estado francês) que o Direito Natural já estava positivado no Código de Napoleão, pelo que seria despicienda qualquer interpretação que não a literal, sob pena de desnaturar o sentido da norma.
O racionalismo e a crença positivista estavam tão arraigadas na cultura francesa naquele momento que se acreditava que a volunté générale estavam devidamente codificadas, pelo que a lei, naquele momento, era perfeita e acabada.
Tal concepção teórica decorria da forte inspiração iluminista que permeava o ar daquele tempo e lugar. No ancien regime, o déspota era a lei. Melhor dizendo, a sua vontade, falível e volátil, era a norma. E mais que isso, o monarca a interpretava livremente, alterando seu alcance e conteúdo quando fosse conveniente.
Montesquieu, ao defender a rígida separação dos poderes, propunha que o Legislativo condensasse a vontade normativa, não cabendo ao Judiciário ampliá-la ou diminuí-la, apenas cumpri-la.
Assim, a vontade da lei (teoria subjetivista) era evidente, não cabendo qualquer interpretação que não aquela que advinha do correr dos olhos sobre o texto. O professor Falcão nos ensina que na França pós-revolucionária:
Em torno da lei, então acolhida como a norma jurídica por excelência, erigem-se altares, onde nem sempre, é bem verdade, se entroniza a justiça ou se incesa a real liberdade. Até o sentido é, ali, sacrificado à sua letra. O alcance social da interpretação também cede espaço ao novo fetichismo legalista. As mentes inclinam-se por um liberalismo tão extremado que à prática da interpretação só resta a obediência que na lei se diz, em coro, que se inscreveu (FALCÃO, 2000, p. 156).
O método gramatical termina, em última análise, por resgatar antigo brocardo jurídico, que ensina que “na clareza cessa a interpretação[i]”, pois, ante a evidente redação normativa, não caberiam discussões sobre o sentido da norma. Trata-se do conhecido “brocardo da clareza”
À insuficiência, contudo, beira o método gramatical.
Segundo o professor Glauco Barreira Magalhães Filho (2009, p. 23), o brocardo da clareza pressupõe a existência de termo unívocos, isto é, dotados de um único sentido. Com efeito, a não ser numa linguagem estritamente científica, o que não é o caso da ciência do Direito, dificilmente se encontram termos unívocos.
Assim, o método gramatical, embora útil, é, muitas vezes, insuficiente para a delimitação do alcance e sentido da norma jurídica. Como bem menciona o professor Hugo de Brito Machado:
O elemento literal, embora indispensável, quando utilizado isoladamente pode levar a verdadeiros absurdos. O significado das palavras em geral é impreciso, seja por vaguidade, nos casos em que não se tem como definir as fronteiras do conceito, seja por ambigüidade, nos casos em que o conceito se aplica a duas ou mais realidades distintas. Daí a necessidade que sempre tem o intérprete das normas jurídicas de se utilizar também outros métodos ou elementos de interpretação (MACHADO, 2010, p.112)
Outro método hermenêutico clássico é o sistemático. Esse método tem por característica a busca do sentido da norma através de sua análise interna e externa, que seja, a análise da norma frente às demais que estão dentro do mesmo diploma normativo (análise interna) e frente às demais normas que compõem o ordenamento jurídico (análise externa).
Nesse sentido, o professor Glauco Barreira chega a afirmar que “o legislador não cria o ordenamento jurídico, mas um conjunto de normas que são desconexas”, cabendo ao jurista o dever de sistematizá-las, dando-lhes um sentido coerente. Diz ainda que “A interpretação sistemática procura compatibilizar as partes entre si e as partes com o todo, é a interpretação do todo pelas partes e das partes pelo todo” (MAGALHÃES FILHO, 2009, p. 42).
O método sistemático busca analisar, portanto, as normas em seu conjunto, evitando a análise de forma fragmentária, de forma a não perder de vista o sentimento que permeia o inteiro[ii], uma vez que tem como axioma apriorístico o fato de o sistema jurídico ser um complexo harmônico de normas. Isso porque o ordenamento jurídico pátrio é um emaranhado amorfo de normas, ao qual, se não lhe for atribuído um sentido único, oriundo de seu substrato de validade, segundo a teoria kelseniana,será um grande e contraditório engodo prescrições normativas.
Tem-se ainda o método sociológico, que tem por escopo adequar o sentido da norma às finalidades sociais almejadas pelo legislador (teoria subjetivista). Trata-se, noutras palavras, do método que permita ao hermeneuta buscar a melhor interpretação que se adéqüe à busca pelo “bem comum”.
Por fim, a interpretação teleológica ou finalística é a interpretação da norma a partir do fim (vantagem) social a que se destina (MAGALHÃES FILHO, 2009, p. 47).
Ao iniciar este segundo capítulo, nos debruçamos sobre a necessidade de se interpretar finalisticamente a norma jurídica, sob pena de deixar ao alvedrio da criatividade do pensamento a interpretação da prescrição legal.
Com efeito, o fundamento dos métodos teleológicos de interpretação é que sempre é possível atribuir um propósito às normas (FERRAZ JR., 2003, p. 292). É imperioso dizer que a interpretação teleológica é umbilicalmente ligada aos princípios jurídicos que existem no ordenamento, sendo ela, pois, o método que busca a efetivação e permeamento deles no caso concreto.
Com efeito, Miguel Reale afirma que os princípios jurídicos são balizas que regem a atividade legislativa e que norteiam a atividade do intérprete, nos seguintes termos:
Ao nosso ver, princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão de ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas. (REALE, 2006, p. 304)
Assim, podemos afirmar que o método teleológico é aquele que busca a efetivação dos princípios existentes no ordenamento jurídico voltados à realização de uma vantagem socialmente estabelecida.
3. A Necessidade de uma Hermenêutica Constitucional.
Paulo Bonavides afirma que os métodos clássicos de interpretação são insuficientes para ajudar a tarefa do hermeneuta em desvelar o sentido e alcance das atuais normas constitucionais[iii], pelo que, apenas uma hermenêutica puramente constitucional, seria capaz de captar seu real alcance e sentido.
Com o advento do Estado Social (através do surgimento de novas necessidades e anseios sociais) e o abandono do liberalismo clássico as constituições deixaram de ser meros veículos de normatização estatal (repartição de atribuições e competências, limitações de seus poderes e as garantias individuais), passando a ser, antes de tudo, verdadeiras cartas políticas.
No Estado Liberal, enquanto fruto das Revoluções Iluministas, que conseguiram positivar o que antes era encarado enquanto Direito Natural, as Constituições careciam de maiores esforços hermenêuticos, pois tudo o quanto era tido por superior na ideologia liberal já estava lá assente.
Com efeito, chega a afirmar Bonavides que:
A Constituição considerada assim lei ou tomada na sua acepção jurídica predispunha pois os juristas a interpretá-la como qualquer outra lei, sendo esse estado de ânimo bastante expressivo da profunda e ilimitada confiança depositada na obra racional dos constituintes e nos fundamentos sobre os quais repousava a sociedade. (...). De modo que toda sua tarefa de percepção do sentido da norma se movia no interior da própria norma, bem como de uma exegese que, ainda alargada às possibilidades derradeiras, resultantes do emprego conjugado dos elementos interpretativos clássicos, enunciados por Savigny, não excedia a esfera positiva da Constituição (2008, p. 464).
Afirma ainda que os constitucionalistas perfilhavam um método interpretativo que os colocavam à distância de quaisquer valores ideológicos, interpretando, digamos, de modo puro a norma constitucional. Ao professarem uma neutralidade, lançando mão apenas de recursos hermenêuticos e da lógica jurídica, estavam, em verdade, sendo defensores da ideologia liberal clássica.
Por tal razão Paulo Bonavides defende que:
Os métodos clássicos de interpretação exerceram um influxo inovador mínimo com respeito ao alargamento material da Constituição, por se prenderem de preferência aos quadros fechados da norma jurídica, sem um salto mais ousado para o sistema, cujos fins, na época do liberalismo, se compadeciam valorativamente, ou seja, ideologicamente, com esse conhecimento restrito da norma, vista por seu exclusivo teor jurídico (2008, p. 466).
Por sim, sustenta o autor que, com o colapso da sociedade liberal, “por obra da mudança social”, a constituição estava fadada a desintegrar-se, ruindo, assim, a estrutura técnico-jurídica sobre a qual se apoiavam os intérpretes clássicos (2008, p. 466).
De fato, o colapso jurídico liberal decorreu da não aceitação de que os fatos e valores sobre os quais se apoiavam os dogmas jurídicos, inclusive os hermenêuticos, ruíram. A Revolução Industrial, o nascente capitalismo financeiro, os movimentos beligerantes que surgiam na Europa (a partir) da segunda metade do século XIX, não mais conseguiam ser amparados pelos ideiais liberais.
Com o total colapso da antiga ordem mundial, iniciado no fim do século XIX e terminado após a 2ª Guerra, o Estado (do bem estar) Social surge para ocupar um espaço até então lacunoso, exigindo um novo tipo de Constituição, bem como de novos paradigmas para interpretá-la.
Nesse sentido, as Constituições do século XX, notadamente a partir da Constituição da República de Weimar, ganharam um aporte principiológico jamais visto, a fim de fazer valer plenamente os direitos sociais conquistados.
Com efeito, o surgimento de um novo constitucionalismo fez surgir a necessidade de novos métodos hermenêuticos, uma vez que:
Com o reconhecimento da supremacia normativa da Constituição no Estado Moderno, os direitos fundamentais são considerados como limite não apenas da atividade administrativa, mas também, da legiferante. Não há, portanto, nenhuma dúvida mais sobre a juridicidade e aptidão de eficácia dos princípios estabelecidos no Estatuto Básico da Sociedade, e esse reposicionamento dos direitos fundamentais tornou necessário o surgimento de uma nova hermenêutica, porquanto as normas que os definem, possuem estrutura diferente daquelas que têm as normas infraconstitucionais (MAGALHÃES FILHO, 2011, p. 31)
Isso porque, segundo Glauco Barreira, os “cânones tradicionais de hermenêutica foram concebidos pra a interpretação de normas com estrutura de regras e, principalmente, para as normas de Direito Privado”. E, com o advento das constituições contemporâneas, uma elevada ênfase social lhes tem sido dispensada, exigindo do jurista um novo arcabouço hermenêutico (2011, p. 34).
Portanto, a interpretação constitucional não pode se dar de maneira desvencilhada do caráter político e ideológico que permeiam a constituição, não podendo o intérprete agir de modo alheio aos fatores sociais que deram origem ao texto constitucional. Com efeito:
O erro do jurista puro ao interpretar a norma constitucional é querer exatamente demembrá-la de seu manancial político e ideológico, das nascentes da vontade política fundamental, do sentido quase sempre dinâmico e renovador que de necessidade há de acompanhá-la (BONAVIDES, 2008, p. 461).
No entanto, a utilização da moderna hermenêutica constitucional, adverte Bonavides, não pode se dar de modo a dispensar a cautela crítica, sob pena de se cair em uma “valorização exclusiva e unilateralíssima do social”, de modo a sacrificar a “juridicidade das Constituições” (BONAVIDES, 2008, p. 486).
Mais que isso, o apego imoderado e irracional do viés político que permeiam as modernas constituições são capazes, não raras vezes, de exceder o limite do razoável e criar direitos “contra legem”, em decorrência do alargamento que se dá à norma constitucional.
Por tal razão é que Paulo Bonavides chama a atenção do estudioso da hermenêutica constitucional para manter o equilíbrio entre os pratos da balança constitucional, que sejam, o jurídico e o político, ambos indispensáveis à atividade interpretativa da constituição moderna (2008, p. 463).
Uma ponderação, no entanto, se faz necessária. Não é que fossem propriamente os métodos clássicos de interpretação os empecilhos à adequação da ordem normativa liberal aos novos fatos que surgiam.
Não se pode conferir-lhes a culpa daqueles que os manejavam. Os métodos, em verdade, eram muito mais técnicas, que serviam enquanto ferramentas que poderia ser utilizadas tanto para a manutenção da ordem jurídica do liberalismo clássico quanto para sua adaptação aos novos tempos. Tanto que alguns doutrinadores chegam a afirmar que os métodos da hermenêutica constitucional nada mais são que uma releitura dos métodos clássicos, como se observa na obra do professor Uadi Lammêgo Bulos e do professor Glauco Barreira.
3.1 Princípios Constitucionais de Interpretação em espécie.
Vimos acima a necessidade histórica de se buscar novos métodos de interpretação constitucional, mais adequados ao caráter principiológico das constituições do século XX, por uma questão de conveniência em relação aos fins desse trabalho, analisaremos os princípios que norteiam a atividade hermenêutica constitucional.
Assim procederemos em razão de considerarmos que, mais importante do que o método (caminho) a ser trilhado pelo intérprete, é a escolha dos parâmetros e balizas que norteiam a atividade exegética, sendo estas, pois, estabelecidas pela própria Constituição.
Por isso, caso o hermeneuta opte por diferentes métodos, desde que observe os princípios de interpretação constitucional, chegará às mesmas conclusões, pois, embora tivesse percorrido caminhos distintos, sempre rumou para o mesmo lugar.
Antes de nos debruçarmos sobre os princípios em espécie, convém discorrer sobre duas observações aos princípios constitucionais feitas por Inocêncio Mártires Coelho.
A primeira delas é a de que, com base na teoria constitucional de Ernst Böckenförde, esses princípios, per si, não possuem força normativa, “o que significa dizer que eles não encerram interpretações de antemão obrigatórias, valendo apenas como simples tópicos ou pontos de vista interpretativos” (2009, p. 132).
A segunda diz respeito à função dogmática, esclarecendo o autor que, muito embora tais princípios se apresentem enquanto enunciados lógicos, parecendo, por isso, anteriores, são na verdade anteriores. Servem, pois, como “fórmulas persuasivas”, continua o autor, a fim de justificar “pré-decisões” já tomadas pelo intérprete.
Nesse sentido chega a dizer Inocêncio que:
Não por acaso já se proclamou que a diversidade de métodos e princípios interpretativos potencializa a liberdade do juiz, a ponto de lhe permitir antecipar as decisões – à luz da sua pré-compreensão sobre o que é correto e o justo em cada situação concreta – e só depois buscar os fundamentos de que precisa para dar sustentação discursiva a essas soluções, puramente intuitivas, num procedimento em que as conclusões escolhem as premissas, e os resultados selecionam os meios (COELHO, 2009, p. 133)
O que quer dizer o autor é que, na prática, a utilização irracional dos princípios hermenêuticos poderia levar o intérprete a tomar qualquer decisão, ainda que desvinculada de qualquer lógica jurídica. Poderia o juiz, simplesmente, escolher por esta ou aquela decisão, ainda que diametralmente opostas, utilizando-se dos princípios constitucionais.
No entanto, não é por isso que se deixará de utilizar os princípios. Ora, não é difícil perceber uma interpretação “forçada” de outra calcada em argumentos coerentes e racionais. Mais que desvelar um coerente esforço hermenêutico, deve o intérprete fazê-lo de tal forma que ele subsista à analise alheia, afinal, certamente o cientista não guarda a descoberta de sua investigação apenas para si.
São os princípios são: da unidade da constituição; da concordância prática; do efeito integrador; da força normativa da constituição e da máxima efetividade, os quais passamos a examinar.
O princípio da unidade da constituição preceitua que as normas constitucionais devem ser vistas não como normas isoladas, mas como normas que estão em conjunto num sistema dotado de princípios únicos, que seja, a Constituição. Noutras palavras, para se entender uma parte, não se pode perder de vista o todo, como bem alertava Gregório de Matos.
Insta dizer ainda que segundo esse princípio não há hierarquia entre as normas constitucionais, pelo que cabe ao hermeneuta, ante uma aparente antinomia entre elas, harmonizá-las, sob pena de gerar incoerência interna no texto constitucional[iv].
O princípio da concordância prática (ou da harmonização prática) dispõe que:
Quando houver colisão de direitos fundamentais num caso concreto, se fará a harmonização prática entre eles, através de uma ponderação axiológica, mediante a qual se fará uma hierarquização dos valores na situação fática, para encontrar-se a solução ótima (MAGALHÃES FILHO, 2011, p. 45)
Indo além, Konrad Hesse ensina que o intérprete deve, em verdade, deparando-se com situações em que concorram bens constitucionalmente protegidos, adotar a solução que os compatibilize, sem excluir nenhum deles (HESSE, 1998, p. 66).
No entanto, na prática, adverte Inocêncio Coelho, essa concordância terminará por excluir um dos “contendores”, ainda que em parte, “restando ao outro conformar-se com a decisão que lhe for adversa”, como no caso de lides que não admitem transação (2009, p. 136)
O princípio do efeito integrador da constituição tem por pressuposto de que o Texto Maior é o instrumento que aglutina as aspirações de diferentes segmentos sociais, pelo que, sob pena de malferir a própria noção de democracia, a melhor interpretação da norma constitucional é aquela que mais contribuir para a integração social.
O princípio da força normativa da constituição dispõe que, na solução dos problemas jurídico-constitucionais, o hermeneuta deve procurar dar preferência à interpretação que melhor ajuste historicamente o sentido das normas, conferindo-lhes a maior eficácia possível.
Por sua vez, o princípio da máxima efetividade orienta os aplicadores do direito a interpretar a norma jurídica de tal forma a otimizar-lhes a eficácia da norma jurídica, sem prejuízo de seu conteúdo. É evidente a sua ligação com o princípio da força normativa da constituição.
Assim como no princípio da concordância prática, pode ocorrer de o intérprete, ao maximizar um direito constitucionalmente assegurado em face de outro, terminar por extirpar um dos dois. Em face disso, “impõe-se harmonizar a máxima efetividade com essas e outras regras de interpretação, assim como impõe conciliar, quando em estado de conflito, quaisquer bens ou valores protegidos pela Constituição” (COELHO, 2009, p. 141).
Conclusão
A atividade do intérprete da norma jurídica, por mais que possa se dar ad infinitum, posto que assim é o pensamento, lugar em que acontece a interpretação, não pode ser desvinculada de mínimos parâmetros que orientem essa atividade.
Dessa forma, deve o intérprete utilizar os métodos de interpretação da norma jurídica, sejam eles os postos pela hermenêutica jurídica clássica, sejam os postos pela moderna hermenêutica constitucional.
E mais que isso: sua interpretação não se encontra desvinculada do mundo ao redor, tampouco das pessoas que nele habitam. A exegese do operador do direito tem conseqüências concretas, atingindo a muitos, todos os dias.
Por isso, nessa tarefa o exegeta deve buscar fazê-la de tal forma que extraia da norma o sentido e alcance que nela foram postos a fim de buscar a finalidade nela contida.
Referências
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 23ª ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2008.
COELHO, Inocêncio Mártires. Curso de Direito Constitucional. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 2004.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2003.
HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da República Federativa da Alemanha. 20ª ed. Tradução alemã por Luís Afonso Heck. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1998.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 31ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
MAGALHÃES FILHO, Glauco. Hermenêutica Jurídica Clássica. Florianópolis: Conceito Editora, 2009.
______________, Hermenêutica e Unidade Axiológica da Constituição. 4ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
MAXIMILLIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 13ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1993.
REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito. 27ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
[i] Em latim: In claris cessat interpretatio.
[ii] Gregório de Matos já dizia que “O todo sem a parte não é todo; a parte sem o todo não é parte; mas se a parte o faz todo, sendo parte, não se diga que é parte, sendo todo”.
[iii] Em verdade, os métodos clássicos de interpretação propostos por Savigny são insuficientes, por vezes, para a interpretação também das normas constitucionais.
[iv] “Em conseqüência, a Constituição só pode ser compreendida e interpretada corretamente se nós a entendermos como unidade, do que resulta, por outro lado, que em nenhuma hipótese devemos separa uma norma do conjunto em que ela se integra, até porque – relembre-se o círculo hermenêutico – o sentido da parte e o sentido são interdependentes.” (COELHO, 2009, p. 136)
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Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: UBIRAJARA SOUZA FONTENELE JúNIOR, . A Hermenêutica Jurídica Clássica e A Hermenêutica Jurídica Constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 03 jun 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39588/a-hermeneutica-juridica-classica-e-a-hermeneutica-juridica-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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