Distinguir princípios e regras obriga a, previamente, conhecer a rota da normativização dos princípios no mundo do conhecimento jurídico. Paulo BONAVIDES (p. 232) explica que a juridicidade dos princípios passa por três fases históricas: a jusnaturalista, a juspositivista e a pós-positivista.
Na fase jusnaturalista, os princípios são reconhecidos na dimensão ética e valorativa, tidos como norteadores dos postulados de justiça. Transitam em campo abstrato, e definitivamente não lhes é atribuída normatividade. São importantes em um contexto extrajurídico.
Na fase positivista, os princípios adentram as leis e códigos como fonte normativa subsidiária, unicamente como válvula de segurança. Na ordem constitucional, são tomados como diretrizes programáticas, meramente indicativas.
A terceira e atual fase, do pós-positivismo, iniciada no século XX, consagrou a hegemonia axiológica dos princípios sobre o ordenamento jurídico, uma das bases da “Nova Hermenêutica” de BONAVIDES (p. 238).
A aceitação da normatividade dos princípios é determinante para o pós-positivismo, que superou o positivismo ortodoxo. Segundo a doutrina em voga atualmente, inaugurada por Boulanger e desenvolvida por Crisafulli, Esser, Alexy e Dworkin (BONAVIDES, p. 239), as normas jurídicas são de duas espécies: regras e princípios.
Para José Afonso da SILVA (p. 91-92), normas são diferentes de princípios, e não se pode dizer que princípios são um tipo de norma. As normas contêm regras. Os princípios, não.
Entretanto, com o respeito devido à opinião do eminente constitucionalista, a maior doutrina atual considera regras e princípios espécies de normas e se ampara em construções bem estruturadas para estabelecer distinções entre as categorias.
Anota CANOTILHO (p. 172-173) que vários critérios são freqüentemente utilizados para distinguir as regras dos princípios, o que é essencial para a teoria dos direitos fundamentais: o grau de abstração (os princípios têm elevado grau de abstração; as regras não), o grau de determinação (os princípios carecem de mediações concretizadoras do legislador ou do juiz; as regras são diretamente aplicáveis), o caráter de fundamentalidade (os princípios têm papel mais importante no sistema jurídico do que as regras), caráter axiológico (os princípios aproximam-se da ideia de justiça; as regras têm conteúdo meramente funcional), natureza normogenética (os princípios são o fundamento das regras).
Contudo, tais referências, apesar de úteis e em certos casos suficientes, não servem para uma apropriada e sólida construção teórica em virtude de não trabalharem a essência própria do conteúdo e da forma de manifestação dos tipos de normas, conformando-se em ter lastro apenas em sintomas reflexos da diferença entre as regras e os princípios.
De fato, a distinção é qualitativa (“concepção forte dos princípios” – FARIAS, p. 23), pois radicada na estrutura dos referidos tipos de normas, em sua natureza, e não apenas na questão de grau ou importância (como entende a “concepção fraca dos princípios”, hoje em desvantagem – FARIAS, p. 23).
Segundo o jurista italiano Ricardo Guastini (apud BONAVIDES, p. 230-231), vários são os conceitos em que o termo “princípios” pode se desdobrar: normas com um alto grau de generalidade; normas com alto grau de indeterminação; normas de caráter programático; normas de posição elevada na hierarquia das fontes; e normas dirigidas aos órgãos de aplicação do Direito.
Robert Alexy (apud BONAVIDES, p. 250) define princípios como “mandamentos de otimização”: normas que determinam que algo seja realizado em uma medida tão ampla quanto possível relativamente a possibilidades fáticas e jurídicas.
A participação dos princípios é decisiva quando estamos diante dos chamados casos difíceis (os hard cases de Dworkin), que são aqueles cuja decisão normativa final não é alcançada com uma simples interpretação e aplicação de regras do ordenamento, o que ocorre no conflito de direitos fundamentais (FARIAS, p. 25). A solução não é a consequência de um imediato enquadramento normativo.
Regras, por sua vez, são normas que só podem ser cumpridas ou não cumpridas, pelo que Alexy lhes denomina “mandamentos definitivos”. São realizadas de maneira disjuntiva: ou se aplicam, ou não se aplicam, segundo a lógica do “tudo ou nada” (all or nothing) de Ronald Dworkin (apud BONAVIDES, p. 253): ou a norma é válida e aplicável aos fatos, caso em que sua previsão deve ser seguida, ou não é válida ou inaplicável aos fatos, situação que a afasta.
Das regras se extraem conseqüências jurídicas automáticas se e quando observadas as condições previstas, o que não acontece nos princípios. A aplicação de regras ao caso concreto se opera pela subsunção.
Os princípios possuem uma dimensão de peso ou importância. No conflito (quando duas normas conduzem a resultados incompatíveis entre si, “dois juízos concretos e contraditórios de dever-ser jurídico” – BONAVIDES, p. 251) de princípios, pondera-se o peso relativo de cada um para se concluir qual deles prevalecerá.
O conflito de princípios se desenrola na dimensão do valor, pela ponderação, sendo que o princípio preterido se mantém, podendo vir a prevalecer em uma situação distinta (BONAVIDES, p. 251). O princípio não é considerado inválido, mas sim menos importante do que outro em determinadas circunstâncias (FARIAS, p. 27).
Em resumo, as regras conflitantes se resolvem na dimensão da validade, ao passo que os princípios se harmonizam na dimensão do peso. Entretanto, essa distinção vem sendo aperfeiçoada pela doutrina e pela jurisprudência, no sentido de se atribuir também ao conflito de regras a faculdade de solução pela medida de seus pesos.
Assim, o operador do Direito pode decidir pela aplicação casual, específica, de uma regra em vez de outra, mas sem considerar inválida a regra momentaneamente preterida, que permanece no ordenamento, apta a ser utilizada em outras situações. Essa teoria, intitulada “derrotabilidade da norma-regra”, já é expressamente adotada por nossos Tribunais, como se verifica pela seguinte ementa de julgado do Tribunal Regional Federal da 1ª Região:
“EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. TRANSFERÊNCIA DE ESTUDANTE DEPENDENTE DE EMPREGADO DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA. INEXISTÊNCIA, NO LOCAL DE DESTINO, DE INSTITUIÇÃO CONGÊNERE. "DERROTABILIDADE" DA VEDAÇÃO CONTIDA NO ARTIGO 99 DA LEI 8.112/90. APLICAÇÃO DA PARTE FINAL DA SÚMULA 43 DESTA CORTE.
1. A alegação de que à vista do disposto no artigo 173, § 1º, II, da Constituição, os empregados de sociedade de economia mista e de empresas públicas que exploram atividade econômica não poderiam ser equiparados, para o fim da transferência deles e de seus dependentes, não tem, com a devida vênia, forte relevância jurídica, uma vez que o objetivo da norma constitucional não é restringir os direitos dos empregados daquelas pessoas jurídicas, mas sim não permitir que elas possam competir com as empresas privadas, usufruindo vantagens não aplicáveis a estas.
2. Por outro lado, o disposto na parte final da súmula 43 da jurisprudência predominante desta Corte ("A transferência compulsória para instituição de ensino congênere a que se refere o art. 99 da Lei 8.112/90, somente poderá ser efetivada de estabelecimento público para público ou de privado para privado, salvo a inexistência, no local de destino, de instituição de ensino da mesma natureza") não atenta contra a decisão do Plenário da Suprema Corte que, ao julgar a ADI 3324/DF, relator Ministro MARCO AURÉLIO (Carta Magna, art. 102, § 2º), uma vez que nesse caso (inexistência no local de destino de instituição da mesma natureza), a vedação em causa é "derrotável", porquanto o legislador, ao editar o dispositivo em referência, não considerou essa circunstância em sua formulação normativa, de forma que o princípio do direito constitucional à educação (Carta Magna, art. 205), bem como o de que as normas restritivas devem ser interpretadas restritivamente "derrotam" a vedação contida no referido dispositivo legal.
3. Embargos de declaração não providos.”
(EDAMS 2001.35.00.005553-9 / GO, Rel. DESEMBARGADORA FEDERAL MARIA ISABEL GALLOTTI RODRIGUES, publicação: DJ de 18/04/2005, p. 100)
Adotando-se que o conflito de regras se soluciona na dimensão da validade, com a declaração de nulidade de uma das regras conflitantes, tem-se que as antinomias entre regras são resolvidas, em princípio, por três critérios: cronológico (prevalece a regra posterior – lex posterior derogat priori), hierárquico (prevalece a norma hierarquicamente superior – lex superior derogat inferiori) e da especialidade (prevalece a norma especial – lex specialis derogat generali).
Há casos em que os critérios não são suficientes, ou colidem entre si (antinomia de segundo grau). Mas a solução, qualquer que seja, sempre implica a escolha de uma norma aplicável, sendo a outra descartada ou excepcionada: “Os princípios coexistem; as regras antinómicas excluem-se” (CANOTILHO, p. 174). A decisão sobre a regra a ser respeitada fica submetida a considerações exteriores às próprias regras em disputa (BONAVIDES, p. 254).
O sistema jurídico não dispensa nem as regras nem os princípios. A falta destes ocasionaria lapsos no campo de atuação do Direito e congelaria sua função de ordenar as mutáveis relações sociais. A falta daquelas cercearia sua incisividade e operacionalidade.
O reconhecimento da normatividade dos princípios é passo decisivo rumo à transposição dos direitos fundamentais de simples palavras impressas em um documento para a concretização na realidade social. De toda forma, não basta enumerar e explicar os direitos fundamentais. É necessário que toda a organização jurídica e social estejam voltadas para a sua efetiva promoção.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 1992.
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos. Porto Alegre: Fabris, 1996.
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26a ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARTINS, Rodrigo Bezerra. Algumas linhas sobre a distinção entre princípios e regras Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jun 2014, 18:54. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39628/algumas-linhas-sobre-a-distincao-entre-principios-e-regras. Acesso em: 22 nov 2024.
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