INTRODUÇÃO
O Tribunal do Júri é a instituição competente para julgar os crimes dolosos contra a vida, bem como os crimes a ele conexos, conforme consagrado pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 em seu artigo 5º, inciso XXXVIII.
A Lei n° 11.689 de 09 de junho de 2008 trouxe várias mudanças importantes no que concerne ao procedimento do Tribunal do Júri no Direito Brasileiro, sobretudo com relação aos aspectos do desaforamento, que serve de objeto para o presente estudo.
Conforme artigo 70 do Código de Processo Penal, em regra, a competência jurisdicional é estabelecida pelo lugar onde foi cometida a infração Penal, ou, no caso de tentativa, a competência é estabelecida pelo lugar em que foi praticado o último ato da execução.
Disso resulta a regra de que, conforme doutrina dominante, o réu deve ser julgado no local onde cometeu a infração penal.
Entretanto, a regra mencionada no artigo 70 do Código de Processo Penal não é absoluta, pois poderá haver casos em que, devido às circunstâncias que gravitam em seu torno, reclama-se o seu afastamento, ou seja, o crime, embora cometido em uma comarca, pode vir a ser transferido o julgamento para outra comarca, da mesma região, caso esteja presente algumas das hipóteses previstas no artigo 427 e 428 do CPP, conforme redação conferida pela Lei nº 11.689/08.
Em síntese, o que a aqui se pretende é abordar questões relativas à negativa do desaforamento do Tribunal do Júri, fato que pode influenciar negativamente na correta prestação jurisdicional e trazer substancial prejuízo ao acusado quanto a correta apuração do delito, ou prejuízo ao direito de defesa do acusado.
DESENVOLVIMENTO
DO DAFORAMENTO
Conceito
Desaforamento é o ato pelo qual se transfere o processo para ser submetido a julgamento em foro diverso daquele do local onde ocorreu o fato tipificado como crime e em que se deu a pronúncia, ou seja, é o deslocamento de competência. O artigo 427 do Código de Processo Penal, que regulamenta a matéria, assim dispõe:
Art. 427 Se o interesse da ordem pública o reclamar ou houver dúvida sobre a imparcialidade do júri ou a segurança pessoal do acusado, o Tribunal, a requerimento do Ministério Público, do assistente, do querelante ou do acusado ou mediante representação do juiz competente, poderá determinar o desaforamento do julgamento para outra comarca da mesma região, onde não existam aqueles motivos, preferindo-se as mais próximas.
Qual se verifica, o desaforamento é medida excepcional e somente se afigura legítima se, rigorosamente, estiverem presentes os motivos taxativamente previstos pelo legislador.
Ou seja, somente é admitido o desaforamento em razão do interesse da ordem pública; por haver suspeita de imparcialidade dos jurados; risco à segurança do acusado; ou, ainda, conforme dispõe, em sequência, o artigo 428 do CPP, em razão do comprovado excesso de prazo se o julgamento não puder ser realizado no prazo de seis meses do trânsito em julgado da decisão de pronúncia.
Neste contexto, se a repercussão do crime influenciar a ordem pública a ponto de comprometer a segurança do acusado ou influenciar a decisão dos jurados, ou seja, havendo dúvidas da parcialidade dos jurados, o que pode ocorrer quando em, cidade pequenas o causado for pessoa pertencente a famílias importantes ou poderosas a ponto de, também, influenciar o resultado do julgamento, o desaforamento é medida que se impõe.
A propósito, confira-se os seguintes julgados:
HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO DE RECURSO PRÓPRIO. DESCABIMENTO.
TRIBUNAL DO JÚRI. DESAFORAMENTO DEFERIDO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM.
EXISTÊNCIA DE DÚVIDA QUANTO À IMPARCIALIDADE DOS JURADOS.
FUNDAMENTAÇÃO IDÔNEA. DESLOCAMENTO PARA COMARCA DA CAPITAL.
POSSIBILIDADE. ANÁLISE DO CASO CONCRETO. AUSÊNCIA DE FLAGRANTE
ILEGALIDADE. HABEAS CORPUS NÃO CONHECIDO.
- O Superior Tribunal de Justiça, na esteira do entendimento Firmado pelo Supremo Tribunal Federal, tem amoldado o cabimento do remédio heróico, adotando orientação no sentido de não mais admitir habeas corpus substitutivo de recurso ordinário/especial. Contudo, a luz dos princípios constitucionais, sobretudo o do devido processo legal e da ampla defesa, tem-se analisado as questões suscitadas na exordial a fim de se verificar a existência de constrangimento ilegal para, se for o caso, deferir-se a ordem de ofício.
- Correta, na hipótese em testilha, a decisão do Tribunal de origem, que, com base em fatos concretos, deferiu o desaforamento do processo em razão da existência de dúvida quanto à imparcialidade do júri, tendo em vista que o crime cometido causou forte comoção na comarca de origem, tendo sido relatado o temor do corpo de jurados em compor o conselho de sentença, salientando que, conforme o Parquet local (fl. 500), o paciente comanda organização criminosa que controla o tráfico de drogas na comunidade e determinava o assassinato de traficantes concorrentes e outras pessoas que ameaçavam a continuidade dos negócios ilícitos do grupo.
- A jurisprudência desta Corte Superior sedimentou-se no sentido de que o desaforamento do processo, com sua transferência para a comarca da capital não afronta o art. 427 do CPP, tendo em vista que a escolha da nova comarca deve ser feita levando-se em conta o caso concreto, não havendo obrigatoriedade de se remeter o feito à comarca mais próxima.
Habeas corpus não conhecido.
HC 255945 / CE
Relator(a) Ministra MARILZA MAYNARD (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/SE) (8300)
Órgão Julgador T6 - SEXTA TURMA
Data do Julgamento 08/05/2014; Data da Publicação/Fonte
DJe 19/05/2014
HOMICÍDIO SIMPLES. TRIBUNAL DO JÚRI. DESAFORAMENTO. EXISTÊNCIA DE FUNDAMENTOS CONCRETOS QUE JUSTIFICAM A MEDIDA. DESNECESSIDADE DE AFASTAMENTO EXPRESSO DAS DEMAIS COMARCAS QUE PODERIAM RECEBER O FEITO. COAÇÃO ILEGAL NÃO EVIDENCIADA.
1. A fixação da competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida, em regra, se dá no local onde se consumou a infração penal, de acordo com o disposto no artigo 70, primeira parte, do Código de Processo Penal.
2. Admite-se, de forma excepcional, a modificação desta competência em razão da verificação de eventos específicos elencados no artigo 427 do Código de Processo Penal.
3. No caso em apreço, o desaforamento foi deferido não com base em meras conjecturas, mas em razões concretas e objetivas no sentido de que eventual julgamento do paciente pelo Tribunal do Júri no distrito da culpa estaria comprometido, diante da influência que sua família exerce na região, razão pela qual o convencimento dos jurados não se formaria de modo livre e consciente.
4. Esta Corte Superior de Justiça já decidiu que o artigo 427 do Código de Processo Penal não impõe que o desaforamento seja feito para localidade mais próxima da original, mas apenas que seja escolhida comarca da mesma região, na qual o julgamento possa ser efetivado de forma isenta.
5. Habeas corpus não conhecido.
HC 281961 / PE
Relator(a) Ministro JORGE MUSSI (1138)
Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA
Data do Julgamento 24/04/2014
Data da Publicação/Fonte
DJe 05/05/2014
Por oportuno, cabe o registro de que, eventuais atrasos no julgamento que não caracterizem uma demora excessiva e que não seja provocada por desídia, ou que o atraso seja decorrente da complexidade da causa ou de excessivo número de processo, não ensejam, por si só, que o processo seja transferido para outra comarca.
Neste sentido, veja-se:
PLURALIDADE DE AGENTES, DE VÍTIMAS E DE CRIMES. INCIDENTES PROCESSUAIS. DESAFORAMENTO. PEDIDO JÁ JULGADO. JÚRI EM VIAS DE SE REALIZAR. TRÂMITE REGULAR DO FEITO. AUSÊNCIA DE DESÍDIA DA AUTORIDADE JUDICIÁRIA. OBSERVÂNCIA AO PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE.
ILEGALIDADE AUSENTE.
1. Os prazos para a conclusão da instrução criminal não são peremptórios, podendo ser flexibilizados diante das peculiaridades do caso concreto, em atenção e dentro dos limites da razoabilidade.
2. Não se constata indícios de desídia quanto ao processamento da ação penal, que segue seu curso normal, em que se apura a prática de cinco crimes, envolvendo cinco réus e com pluralidade de vítimas, em que houve a necessidade de expedição de precatórias, dado o encarceramento dos acusados em comarca distante, e incidentes processuais, como o exame do pedido de desaforamento ajuizado, já julgado.
3. As particularidades havidas no trâmite do feito exigiram maior tempo para a solução da causa, demonstrando a sua complexidade e a ausência de excesso injustificado, principalmente quando há informações de que o julgamento popular está em vias de ocorrer.
4. Habeas corpus não conhecido, com a recomendação de que seja conferida prioridade ao julgamento do paciente pelo Júri.
Processo HC 276732 / AM
HABEAS CORPUS 2013/0295765-2
Relator(a) Ministro JORGE MUSSI (1138)
Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA
Data do Julgamento 06/05/2014
Data da Publicação/Fonte DJe 14/05/2014
Aspectos anteriores a vigência da Lei nº 11689/2008.
Analisando os aspectos anteriores a reforma, ou seja, antes da referida lei, o desaforamento era tratado apenas no artigo 424 do Código do Processo Penal, o qual dispunha que o desaforamento poderia ocorrer a requerimento de qualquer das partes ou por representação do juiz, e ouvindo sempre o procurador-geral.
Com relação às circunstâncias que autorizavam o desaforamento, não houve significativas alterações.
Com efeito, o desaforamento poderia ocorrer caso houvesse dúvida sobre a imparcialidade do júri, segurança pessoal do réu e interesse da ordem pública.
Constava no parágrafo único do referido artigo a disposição que o desaforamento poderia ocorrer se o julgamento não ocorresse no período de um ano, contado do recebimento do libelo. Cabe o registro que, para que ocorresse o desaforamento, a demora não poderia ser imputada ao réu ou à sua defesa. Ou seja, ele – o réu ou a defesa - não poderiam ter causado a demora ou, ao menos, concorrido para tanto
Assim, depreende-se que, com o advento da Lei nº 11.689/2008, ocorreram algumas mudanças com relação às questões sujeitas ao desaforamento no Tribunal do Júri, que, em consonância aos preceitos abordados no artigo 424 do CPP, também foram contemplados nos artigos 427 e 428 em seção própria, qual seja, a Seção V do Capítulo II do CPP. Outras alterações pertinentes ao caso serão melhor abordadas mais adiante.
Questões Relativas ao desaforamento - Lei nº 11.689/08.
Com a reforma processual, o rol de legitimados e de situações autorizadoras do desaforamento foi ampliado para evitar-se o adiamento sucessivo do julgamento dos réus e a consequente inaplicabilidade da lei penal.
Em virtude da realidade da estrutura do poder judiciário brasileiro, em algumas comarcas é praticamente impossível realizar continuamente julgamentos do Tribunal do Júri, principalmente quando são incluídos réus de extrema periculosidade.
Diversos são os motivos desta impossibilidade, dentre eles: Júri instalado em local precário, que não oferece condições mínimas de segurança, não dispondo, por exemplo, sequer de auditório adequado; a existência de imparcialidade dos jurados ou, ainda, o comprometimento da segurança pessoal do acusado, o que, por conta disso, pode transmitir à população uma indesejável intranquilidade e inquietação social.
Neste sentido, é de extrema importância que o desaforamento seja deferido, visando-se assim não oportunizar motivos que possam resultar em nulidades e, acima de tudo, promover um julgamento justo, de acordo com os princípios legais, preservando-se, sempre, a soberania dos veredictos e o senso verdadeiro de Justiça.
Com o desaforamento transfere-se não somente o julgamento pelo Júri, mas o próprio feito, afinal, apenas após o trânsito em julgado da sentença o processo retornará a comarca de origem.
Sendo assim, o recurso eventualmente interposto à manutenção ou não do réu na prisão ou qualquer outra questão processual será decidida pelo juiz da comarca para onde o processo foi desaforado.
OUTROS ASPECTOS DO DESAFORAMENTO
Como já abordado, o pedido de desaforamento poderá ser requerido pelo Ministério Público, pelos assistentes do acusado ou do querelante, ou, ainda, por representação do juiz competente.
O referido pedido se origina a partir de certas hipóteses em que o crime, ainda na fase de julgamento, gera grande comoção social, atingindo, consideravelmente, a opinião da população local e a imprensa como um todo, gerando, consequentemente, influências no corpo de jurados, o que pode causar grande desequilíbrio no julgamento da ação penal ou, ainda, risco a integridade física do acusado.
Ressalta-se que, com ocorrência de tais hipóteses fica evidente a necessidade da transferência do julgamento, desde que, a toda evidência, estejam presentes os elementos para o desaforamento, recomendando-se o deferimento do desaforamento de modo a preservar a imparcialidade dos julgados.
Os dispositivos processuais penais, artigos 427 e 428, refletem a preocupação do legislador infra constitucional quanto a im/parcialidade dos julgados oriundos dos Tribunais do Júri em consagração ao Princípio da Ampla Defesa protegido pela Carta Magna em seu artigo 5º inciso XXXVIII alínea "a", uma vez que o princípio da ampla defesa, por ser garantia fundamental e interesse superior da justiça em um país democrático, não pode ser admitida a sua violação.
Neste contexto, possibilitar julgamentos em comarcas cuja imparcialidade dos jurados esteja gerando dúvidas, enseja flagrante afronta à garantia constitucional da ampla defesa e o direito a um julgamento justo e isento, conforme anseios constitucionais.
Isso porque, não custa lembrar, a função do Tribunal do Júri proporcionar um julgamento justo, e não fazer justiça a qualquer custo, sendo-lhe inadmissível qualquer possibilidade de se utilizar a satisfação de interesses ou vinganças pessoais, em respeito à ordem constitucional e ao estado de direito, garantidores do justo julgamento.
À guisa de exemplo podemos citar o ilustre professor Júlio Fabrini Mirabete:
"Estará a imparcialidade comprometida quando o crime, apaixonando a opinião pública, gera no meio social animosidade, antipatia e ódio ao réu, por vezes provocando manifestação de pessoas que, eventualmente, podem vir a compor o Conselho de Sentença, (2008 p.496)
CONCLUSÃO
Uma vez verificado que o contexto fático reclama o desaforamento, o seu deferimento é a única medida plausível a ensejar um julgamento imparcial pelo Tribunal do Júri, considerando-se que esta é a instituição competente para decidir o pleito, e se constitui por pessoas comuns, e, em sua maioria, com conhecimento leigo acerca do ordenamento jurídico e os direitos e garantias fundamentais da pessoa do acusado.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ARAS, Vladimir. Federalização dos crimes contra os direitos humanos. Disponível em <http://www1.jus.com.br/doutrina/texto.asp?id=6762>. Acesso em: maio 2014.
BRASIL. Lei Nº 11.689, de 9 de junho de 2008. Altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos ao Tribunal do Júri. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11689.htm#art1>. Acesso em: maio 2014.
CAMPOS, Walfredo Cunha. Tribunal do Júri. 1. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2011.
MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de direito penal: parte geral: parte especial. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2008.
Pos-graduado em direito público pela UnB. Bacharel em direito pela Universidade de Fortaleza/UNIFOR. Vasta experiência na advocacia privada. Foi Defensor Público no Estado do Ceará após aprovação em Concurso Público. Foi também aprovado em concurso público para o cargo de Defensor Público da Defensoria Pública do Estado de Sergipe, não tendo assumido o cargo devido a aprovação para o mesmo cargo na Defensoria Pública do Estado do Ceará. Aprovado no Concurso Público para a Advocacia Geral da União para o cargo de Procurador Federal. Atualmente é Procurador Federal responsável pela coordenação de Consultoria da Procuradoria Geral Federal Especializada do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes/DNIT, na Cidade de Brasília/DF.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SOUZA, José Alves de. Desaforamento do julgamento afeto ao Tribunal do Júri Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 06 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39637/desaforamento-do-julgamento-afeto-ao-tribunal-do-juri. Acesso em: 27 dez 2024.
Por: Nathalia Sousa França
Por: RODRIGO PRESTES POLETTO
Por: LEONARDO RODRIGUES ARRUDA COELHO
Por: Gabrielle Malaquias Rocha
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