Introdução
Nos últimos tempos foi cada vez mais difundida a hoje solidificada teoria dos direitos fundamentais de Robert Alexy que coloca tais direitos na condição de princípios, ou seja, normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, incluindo as possibilidades fáticas e jurídicas existentes.[1] Trata-se de premissa em contrapartida ao conceito das regras, aplicáveis no sistema tudo-ou-nada (all or nothing): dada sua hipótese de incidência, ou são aplicadas, ou são afastadas por completo.
Por consequência, para que sejam efetivamente implementados, os direitos fundamentais estão sujeitos a restrições, ponte para as chamadas normas restritivas e conformadoras. Trata-se, pois, de um dever (e não opção) do legislador, na busca da eficácia ótima de tais direitos.
Primando-se pela precisão conceitual, registre-se que restrição não é sinônimo de conformação ou configuração de direitos fundamentais[2].
Apesar de tais modalidades se enquadrarem nas chamadas tarefas de legislação, as restrições estão diretamente ligadas á limitação do domínio de proteção dessas garantias, segundo expressa autorização da constituição, que geralmente utiliza expressões como “nos termos da lei”, “nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer”, “salvo nas hipóteses previstas em lei”.[3] Exemplo de restrição está no art. 5º, XXXIII, da CF/88 que, de um lado, garante o direito fundamental de receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, e, do outro, restringe os casos em que o sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.
Trata-se de premissa distinta das conformações, cujo objetivo é regular[4], precisar[5] ou densificar[6] os direitos fundamentais que se expressam por meio de um conceito jurídico indeterminado. É o caso, por exemplo, do direito à propriedade material e intelectual (art. 5º, XXII a XXVII), o direito das sucessões (art. 5º, XXX e XXXI), o direito à proteção do consumidor (art. 5º, XXXII), trazidos pela Constituição de 1988. Não há limitação a tais direitos: há, sim, concretização.
Não se nega, todavia, que o exercício da tarefa de conformar direitos fundamentais pode ser ponte para restrições camufladas e muitas vezes desarrazoadas. Daí a necessidade de se precisar tais conceitos.
Há outro ingrediente que não pode ser ignorado nesse contexto: o princípio da aplicação imediata dos direitos fundamentais, expressamente garantido na Constituição Brasileira de 1988 (art. 5º, § 1º)[7], que atribui eficácia imediata e independente da legislação ordinária.
Afinal, como conciliar tal princípio com a ideia de restrição acima abordada?
De um lado, uma lei que delimite essa aplicação imediata é, sem dúvida, considerada inconstitucional, permitindo a aplicação do direito ainda que contra a lei ou em vez da lei.[8]
Do outro, as restrições só atuam nos casos expressamente previstos pelo texto constitucional. Mesmo assim, o legislador deve respeitar o chamado conteúdo essencial dos direitos fundamentais a partir de um juízo calcado no princípio da proporcionalidade.
Fora os casos expressamente autorizados pela constituição, eventual restrição só é legítima no caso de concorrência entre direitos fundamentais, originando o que se chama de limites imanentes. Daí é possível afirmar que contam com eficácia direta amoldada às particularidades de cada caso concreto.
Direitos fundamentais e suas restrições
Como visto, encarar direitos fundamentais como mandamentos de otimização implica necessariamente em reconhecer que estão sujeitos a constantes restrições, seja por meio da atuação do legislador, seja por meio de colisões com outros direitos do mesmo patamar.
Para que sejam legítimas, as restrições devem passar pelo crivo do princípio da proporcionalidade que, segundo Alexy, decorre da própria estrutura dos direitos fundamentais[9], atuando como condição para a materialização de tais direitos.
Além disso, em todos os casos é preciso respeitar o chamado núcleo essencial dos direitos fundamentais, considerado um conteúdo mínimo inatingível de cada direito.
De origem alemã e consagrado definitivamente na Constituição de Bonn[10], o núcleo essencial conta com três teorias justificadoras.
A teoria absoluta prega que o núcleo essencial é uma unidade autônoma localizada em cada direito independente de qualquer situação concreta, permanecendo, assim, intocável. A teoria relativa foge desse aspecto de total independência e o coloca na condição de apurável a partir da situação concreta. Já a teoria mista, tenta conciliar as duas primeiras, admitindo um núcleo absoluto passível, porém, de conformação através de um processo de ponderação.[11]
Seja qual for a teoria adotada, haverá sempre um conteúdo mínimo em cada direito fundamental que não pode ser aniquilado pelo legislador.
Reserva legal
Da relação entre aplicação dos direitos fundamentais e suas restrições feitas pelo legislador nasce a reserva legal, faceta do princípio da legalidade.
Há duas teorias que cuidam do tema.
A primeira delas é a chamada teoria externa, segundo a qual a restrição é criada por uma necessidade externa ao direito. Atua na compatibilização dos direitos individuais em contrapartida a outros direitos individuais contrários ou direitos coletivos. O resultado é um direito restringido.[12] Todos os direitos, de um modo ou de outro, são independentes segundo garantia do texto constitucional.
Já a teoria interna prega que os direitos individuais e suas restrições são definidos em um único ato e gera um único direito com determinado conteúdo. A ênfase seria, no caso, ao limite/conteúdo desse direito.[13]
De pouca utilidade prática, as teorias interna e externa se prestam a uma finalidade destacada por Robert Alexy: se os direitos fundamentais são considerados posições definitivas (regras), deve-se adotar a teoria externa; se considerados valores prima facie (princípios), o ideal é que se adote a teoria interna. [14]
Superada tal questão, destacam-se as espécies de reserva legal, que podem se originar da própria Constituição (restrições imediatas), ou de legislação infraconstitucional (restrições mediatas).
Exemplo das primeiras está no art. 5º, XI, que garante aos cidadãos brasileiros a inviolabilidade da residência “salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Já as restrições mediatas vêm imprimidas nas expressões na forma da lei ou nos termos da lei (CF/88, art. 5º, VI e VII).
Estas últimas, por sua vez, são divididas em reserva legal simples e reserva legal qualificada.
As reservas legais qualificadas têm como característica o fato de a constituição aclama a intervenção em determinado direito fundamental e, ao mesmo tempo, dita as condições especiais de tais intervenções (v.g. CF/88, art. 5º, XIII). Já as reservas legais simples não trazem essa segunda qualificação, limitando-se em determinar que o legislador regulamente o direito em questão conforme suas perspectivas, desde que legitimadas pela própria constituição (v.g. CF/88, art. 5º, VI).
Limites imanentes
Fora do campo da reserva legal, como já dito, a figura dos limites imanentes vem traduzida na ideia de que os direitos fundamentais, na condição de princípios, são restringidos a partir do conflito com outro direito também garantido pela constituição. Seria uma espécie de limites implícitos gerados a partir da ideia da constituição como sistema.
Sobre o tema, nos ensina Jorge Reis Novais:
A categoria dos limites imanentes dos direitos fundamentais, enquanto limites não escritos e residentes ab initio no interior do direito fundamental e delimitando as fronteiras do seu conteúdo juridicamente relevante, constituía-se, assim – juntamente com uma certa concepção restritiva da previsão normativa, em associação com ela ou integrando-a enquanto uma das suas modalidades –, como elemento nuclear da concepção de direitos fundamentais na teoria interna. Sendo todos os direitos fundamentais imanentemente limitados, não apenas pela sua qualidade jurídica – e daí a exclusão da proteção liminarmente derivada da interpretação da respectiva previsão normativa –, mas também pela sua necessária compatibilização originária com os outros valores igualmente dignos de proteção constitucional, tudo o que exigiria, no plano da atuação dos poderes constituídos nos direitos fundamentais sem reservas seria ou mera explicitação concretização, interpretação e revelação desses limites imanentes ou, em alternativa, violação do conteúdo constitucional dos direitos fundamentais.[15]
É a partir de um processo de ponderação de bens – principio da proporcionalidade – que se chega aos limites imanentes e, por consequência, ao conteúdo daquele direito em determinado caso concreto.
Os exemplos são infinitos. Cita-se um deles: de um lado, todo conteúdo de proteção ao meio ambiente do art. 225 da Constituição Federal. Do outro, as disposições expansivas da ordem econômica, explicitadas nos art. 170 e s. também da Constituição de 1988.
Trata-se de uma tensão já corriqueira no Direito Ambiental, que vê seus conceitos tradicionais sendo revistos a cada momento. Nesse sentido, afirma Canotilho: “O efeito irradiante dos atos ou procedimentos das autoridades nas sociedades de risco ganha, por isso, uma dose relevante de atratividade na teoria do direito público. Em vários domínios, mas sobretudo no direito do ambiente, no direito urbanístico, no direito dos consumidores, é patente que algumas das tradicionais construções jurídicas se vêem hoje em sérias dificuldades para captar satisfatoriamente a complexidade subjacente à imbricação dos vários interesses convergentes, concorrentes ou contrapostos”[16]
Conclusão
Como visto, ao falar de restrições em direitos fundamentais as possibilidades são indefinidas e somente o caso concreto é capaz de ditar determinada solução palpável.
Isso não nos impede, porém, de fixar algumas conclusões imperiosas.
As duas principais são o necessário respeito ao núcleo essencial de cada direito fundamental envolvido e a necessária observância do princípio da proporcionalidade, instrumento para correta atuação do legislador nos casos de reserva legal ou do julgador e administrador nos casos dos limites imanentes.
Bibliografia
Alexy, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002.
Dworkin, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003.
Gomes Canotilho, José Joaquim; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1992.
Gomes Canotilho, José Joaquim Gomes. “Privativismo, associativismo e publicismo na justiça administrativa do ambiente”, Revista de Legislação e Jusrisprudência, Coimbra, v. 128, n. 3857, dez. 1995.
Häberle, Peter. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2003.
Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004.
Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002.
Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1998.
Novais, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003.
Steinmetz, Wilson Antonio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
[1] Cf., sobretudo, Dworkin, Ronald. Levando os Direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 39 e Alexy, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002, p. 87. Nas palavras desse último: “O ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e reais existentes. Por outro lado, os princípios são mandados de otimização, que são caracterizados pelo fato de que podem ser cumpridos em diferentes graus e que a medida devida de seu cumprimento não só depende das possibilidades reais mas também das jurídicas”.
[2] Sobre o tema: Mendes, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 15 e s.; Steinmetz, Wilson Antonio. Colisão de direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 39-42; Alexy, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 2002, p. 321-9; Häberle, Peter. La garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2003, p. 69-75; Novais, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 182; Gomes Canotilho, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7ª ed., Coimbra: Almedina, 2003, p. 1263-4.
[3] Mendes, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 15.
[4] Alexy, Robert. Op. cit., p. 322.
[5] Gomes Canotilho, José Joaquim. Op. cit., p. 1263.
[6] Mendes, Gilmar Ferreira. Op. cit., p. 16.
[7] “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.
[8] Gomes Canotilho, José Joaquim; Moreira, Vital. Constituição da República Portuguesa Anotada. 3ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1992, p. 146-7.
[9] Alexy, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de estúdios constitucionales, 2002, p. 111.
[10] “Pretendendo assumir as lições do período anterior, a consagração da garantia do conteúdo essencial surge, diferentemente, na Lei Fundamental de Bonn, ligada a esse esforço de atribuição de um sentido constitucional efetivo aos direitos fundamentais, que se refletiria, igualmente, como temos visto, num conjunto de outros institutos e doutrinas, desde os limites aos limites propriamente ditos e o acesso direto ao Tribunal Constitucional para defesa dos direitos fundamentais até aos princípios e regras da vinculação de todas as entidades públicas, da sua aplicabilidade imediata, do seu efeito de irradiação, da teoria do efeito recíproco, da Drittwirkung ou da associação dos direitos fundamentais ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito natural enquanto impedimentos à sua eventual afetação em processo de revisão constitucional” (Novais, Jorge Reis. As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 779).
[11] Mendes, Gilmar Ferreira; Coelho, Inocêncio Mártires; Branco, Paulo Gustavo Gonet. Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2002, p. 243-4; Miranda, Jorge. Manual de direito constitucional. Tomo IV, 2ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1998, p. 307-8; Novais, Jorge Reis. Op. cit.,p. 782.
[12] Alexy, Robert. Teoría de los Derechos Fundamentales. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 2002, p. 268.
[13] Alexy, Robert. Op. cit., p. 268-9.
[14] Alexy, Robert. Op. cit., p. 269.
[15] Novais, Jorge Reis. Op. cit., p. 438.
[16] Gomes Canotilho, José Joaquim. “Privativismo, associativismo e publicismo na justiça administrativa do ambiente”, Revista de Legislação e Jusrisprudência, Coimbra, v. 128, n. 3857, dez. 1995, p. 233.
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: VICTORINO, Fábio Rodrigo. As restrições aos direitos fundamentais Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 12 jun 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39742/as-restricoes-aos-direitos-fundamentais. Acesso em: 23 dez 2024.
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