INTRODUÇÃO
A Constituição Federal, no Capítulo destinado à Educação, Cultura e Desporto, estabelece a educação como direito fundamental a ser assegurado pelo Estado. A propósito da relevância do direito fundamental à educação, os valiosos ensinamentos de José Luiz Quadros de Magalhães (in Direito Constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, t. 1, p. 279):
“É o direito à educação um dos mais importantes direitos sociais, pois é essencial para o exercício de outros direitos fundamentais. É a educação instrumento para o direito à saúde e para a proteção do meio ambiente, preparando e informando a população sobre a preservação da saúde e respeito ao meio ambiente. Educação não é apenas o ato de informar. Educação é a conscientização, ultrapassando o simples ato de reproduzir o que foi ensinado, preparando o ser humano para pensar, questionar e criar”.
Neste sentido, o art. 210, caput, da Constituição Federal estipula sejam fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
Para tanto, assegura às comunidades indígenas, em seu parágrafo 2º, a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Previsão idêntica contém o art. 32, parágrafo 3º, da Lei 9.394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação).
É sobre as peculiaridades da educação indígena que trata o presente artigo.
DO INCENTIVO E DA PROMOÇÃO À EDUCAÇÃO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES INDÍGENAS EM CONSONÂNCIA COM SUAS PECULIARIDADES CULTURAIS E SOCIOECONÔMICAS.
Ao Estado incumbe “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art. 227, caput, da Constituição Federal).
E, com vistas ao pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, o Estado e a família, com auxílio da sociedade, deverão promover e incentivar a educação, direito fundamental de segunda dimensão (art. 205 da Constituição Federal).
A Fundação Nacional do Índio – FUNAI, entidade cuja missão é a promoção e a proteção dos indígenas e de suas comunidades, tem, portanto, o dever prioritário de atuar na promoção e no incentivo à educação de crianças e adolescentes indígenas – princípio da absoluta prioridade (arts. 205, 227 e 231 da Constituição Federal).
A propósito de tal encargo, vale transcrever o art. 26 da Convenção 169/OIT, ratificada pelo Decreto 5.051/04:
“ARTIGO 26
Medidas deverão ser adotadas para garantir aos membros dos povos interessados a oportunidade de adquirir educação em todos os níveis, pelo menos em condições de igualdade com o restante da comunidade nacional.”
No desempenho do dever de atuar na promoção e incentivo à educação de crianças e adolescentes indígenas, a FUNAI deverá observar as prescrições contidas no art. 210, caput, e § 2º, da Constituição Federal, verbis:
“Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais.
(...)
§ 2º. O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.”
O dispositivo constitucional garante aos indígenas a utilização de processos próprios e diferenciados de aprendizagem, em respeito à diversidade e à especificidade cultural, e em oposição à imposição dos valores e normas culturais da sociedade envolvente.
Neste sentido, a Portaria Interministerial MJ/MEC nº 559/91 estabelece a necessária observância, na normatização de escolas indígenas, de características específicas da educação escolar indígena. A propósito, vale transcrever o art. 8º:
“Art. 8º. Determinar que, no processo de reconhecimento das escolas destinadas às comunidades indígenas, sejam consideradas, na sua normatização, as características específicas da educação indígena no que se refere a:
a. conteúdos curriculares, calendário, metodologias e avaliação adequados à realidade sociocultural de cada grupo étnico;
b. materiais didáticos para o ensino bilíngue, preferencialmente elaborados pela própria comunidade indígena, com conteúdos adequados às especificidades socioculturais das diferentes etnias à aquisição do conhecimento universal;
c. cumprimento das normas legais e respeito ao ciclo de produção econômica e às manifestações socioculturais das comunidades indígenas;
d. funcionamento de escolas indígenas de ensino fundamental no interior das áreas indígenas, a fim de não afastar o aluno índio do convívio familiar e comunitário;
e. construção das escolas nos padrões arquitetônicos característicos de cada grupo étnico.”
Infere-se, da Constituição Federal e da Portaria Interministerial MJ/MEC nº 559/91, que, para a garantia do ensino diferenciado, com respeito à diversidade cultural, a educação escolar indígena deverá ser adequada à realidade sociocultural de cada grupo étnico, com materiais didáticos próprios para o ensino nas línguas materna e portuguesa.
Objetivando adequar o ensino à realidade de cada etnia, bem como preservar o convívio familiar e comunitário da criança/adolescente e a manutenção da língua materna, a alínea “d” do artigo 8º da Portaria Interministerial estabelece que as escolas indígenas de ensino fundamental deverão funcionar no interior das respectivas terras indígenas.
Não poderia ser de outro modo. Apesar dos aspectos culturais que assemelham os diversos grupos indígenas existentes no país e que permitem alguma generalização, é preciso resguardar as inúmeras diferenças culturais e linguísticas que eles possuem entre si. Não atentar para tais diferenças seria recorrer ao etnocentrismo e incidir no erro de aplicar noções ocidentais a casos onde estes não se aplicam.
As diversas etnias indígenas possuem línguas e realidades culturais próprias. Deste modo, o respeito aos valores culturais e artísticos e a utilização da língua materna só são possíveis se cada escola for adaptada às peculiaridades da comunidade à qual se volta, funcionando, preferencialmente, no interior da respectiva terra indígena.
A Convenção 169/OIT também estabelece a necessidade de adaptação dos processos de aprendizagem à realidade indígena, além do ensino na língua materna. É o que dispõem os arts. 27 e 28, verbis:
“Artigo 27
Programas e serviços de educação destinados aos povos interessados deverão ser desenvolvidos e aplicados em cooperação com eles, a fim de atender as suas necessidades particulares, e deverão abranger sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas as suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais.
Artigo 28
Sempre que viável, dever-se-á ensinar às crianças dos povos interessados a ler e escrever na sua própria língua indígena ou na língua mais comumente falada no grupo a que pertencerem. Quando isso não for possível, as autoridades competentes deverão consultar esses povos com vistas à adoção de medidas que permitam alcançar esse objetivo.”
Verifica-se, por conseguinte, que a preservação da língua materna e à educação diferenciada é direito reconhecido aos indígenas por normas internas e internacionais, e pela própria Constituição Federal.
A propósito do respeito às especificidades dos índios, a lição de Hartmut-Emanuel Kayser (in Os Direitos dos Povos Indígenas do Brasil – Desenvolvimento histórico e estágio atual. Porto Alegre: safE, 2010, p. 337):
“A Convenção 169 desistiu do objetivo de incorporação dos povos indígenas. A desistência do objetivo de incorporação na nova Convenção ocorreu principalmente por pressão das organizações indígenas dos Estados-membros, desde 1977. Estas haviam se pronunciado de modo veemente contra uma continuação da vigência das normas de integração da Convenção 169, e assim tiveram o apoio da parte predominante da literatura sobre o Direito Internacional Público.”
Neste sentido, a FUNAI, autarquia cuja missão é a defesa dos direitos e interesses dos indígenas, tem o dever de atuar na preservação da língua materna das comunidades indígenas, bem como na educação diferenciada de todos os seus membros, crianças, adolescentes e adultos.
CONCLUSÃO
A garantia do acesso à educação bilíngue, intercultural e diferenciada é uma forma de impedir a negação de culturas diferenciadas e a imposição dos valores da sociedade nacional a comunidades indígenas. A escola indígena ganha um novo significado e um novo sentido, como meio para assegurar o acesso a conhecimentos gerais sem negação às especificidades culturais e à identidade daqueles grupos, construindo-se projetos educacionais específicos às suas realidades socioculturais e históricas.
O incentivo e a promoção do direito dos indígenas à educação mediante a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem é a materialização do direito fundamental à educação, previsto no artigo 6º da Constituição Federal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MAGALHÃES, José Luiz Quadros. “Direito Constitucional”. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, t. 1.
KAYSER, HARTMUT-EMANUEL. “Os Direitos dos Povos Indígenas do Brasil – Desenvolvimento histórico e estágio atual”. Porto Alegre: safE, 2010.
Procuradora Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MARENSI, Marcela de Andrade Soares. Peculiaridades da educação indígena no ordenamento jurídico brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 20 jun 2014, 04:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39858/peculiaridades-da-educacao-indigena-no-ordenamento-juridico-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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