RESUMO: O presente ensaio abordará os pressupostos e as técnicas da “Velha Hermenêutica” e a passagem para a compreensão constitucional do Direito e da interpretação jurídica na chamada “Nova Hermenêutica”. Analisaremos o surgimento de um novo Direito, com forte apelo à supremacia constitucional, quando os autores no direito comparado e nacional passaram a buscar uma nova fundamentação para a compreensão, interpretação e aplicação do Direito.
PALAVRAS-CHAVE: Solução de conflitos. Hermenêutica jurídica clássica. Hermenêutica constitucional. Retomada da importância da Constituição.
1. INTRODUÇÃO:
De origem grega, hermeneuein, é percebida modernamente como a teoria ou a filosofia da interpretação viabilizando a percepção do texto além de suas palavras, de sua simples aparência. A palavra hermeios de origem grega referia-se ao sacerdote do oráculo de Delfos. Na mitologia grega hermeios simbolizava um deus-mensageiro-alado tido como o descobridor da linguagem e da escrita. Hermes era respeitado pelos demais como sendo aquele que descobriu o meio de compreensão humana no sentido de alcançar o significado das coisas e para o transmitir aos demais seres. Vinculava-se a sua figura a função de transmutação, de transformação de tudo aquilo que a compreensão humana não alcançava em algo que esta conseguisse compreender.[1]
A hermenêutica no campo jurídico é empregada para dizer o meio e o modo por que se devem interpretar as leis, para que dessa forma se obtenham o exato sentido ou o fiel pensamento do legislador. Dessa forma, ela está encarregada de elucidar a respeito da compreensão exata da regra jurídica a ser aplicada aos fatos concretos, ou seja, é responsável pelo estudo e sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o alcance das expressões do Direito.[2]
Para realizar efetivamente a interpretação, faz-se necessário seguir princípios e regras, que ao passar dos tempos e com o desenvolvimento da sociedade fizeram desabrochar as doutrinas jurídicas, passando a hermenêutica, pelos três aspectos: científico, filosófico e social. Desse modo, Maximiliano relata que a arte ficou subordinada ao Direito obediente, este por sua vez à Sociologia, aproveitando então a hermenêutica das conclusões filosóficas e com elas desenvolvendo novos processos de interpretação.[3]
Os operadores do Direito, para encontrar a solução dos conflitos que ocorrem no mundo dos fatos, devem aplicar a norma jurídica de tal forma a buscar o verdadeiro sentido das normas. Para esta aplicação, deve-se ter em mente que para captar o sentindo de qualquer dispositivo do texto constitucional observaremos sempre a preservação dos direitos fundamentais, demonstrando assim a forte influência do mundo dos fatos na interpretação constitucional.[4]
A interpretação especificamente constitucional surge de uma antítese entre a Carta Magna e a lei, que possuem diferenças com relação à forma, hierarquia, conteúdo, aplicação. Assim, notamos sutilmente a diferença entre a Hermenêutica clássica e a constitucional, pois a primeira é feita através da interpretação da norma e a segunda “situa-se no juízo da própria Constituição”[5]. Atualmente, o Direito Constitucional é visto e utilizado como um instrumento que busca fornecer efetividade à justiça através de suas interpretações. Assim, a transição da hermenêutica clássica para a constitucional surge diante da necessidade de haver uma melhor interpretação dos textos jurídicos e dos casos concretos, pois estes não devem ser vistos com o olhar frio da lei e sim com um olhar que busca uma essência: a justiça.[6]
Não obstante, há ainda muito desconhecimento, mal entendidos e equívocos em relação à temática. Por um lado, boa parte dos operadores do Direito continua a atuar com base no paradigma clássico, em que os postulados do Direito Privado e do Código Civil eram considerados os eixos nucleares do Direito. Por outro lado, vários entusiastas do neoconstitucionalismo e da nova hermenêutica passaram a interpretar o Direito segundo parâmetros frouxos e subjetivos, causando graves lesões aos postulados da segurança jurídica e da legalidade.
De fato, existe um novo modelo de interpretação e de aplicação do Direito que, há muito, deixou de ocupar apenas as preocupações das Academias. Esse novo parâmetro foi incluído no dia a dia da jurisdição e cobrado de todos, em especial daqueles que pretendem ver suas teses de defesa e de acusação acolhidas nos Tribunais Superiores e no STF.
2. DESENVOLVIMENTO:
A Hermenêutica Jurídica Clássica conquistou sua autonomia teórica com o advento dos Estados de Direito em fins do século XVIII e início do século XIX. Influenciada em toda sua extensão pelos postulados do Direito Privado Clássico, integrou de tal maneira a prática e os estudos jurídicos a ponto de ter influenciado Getúlio Vargas, então Presidente da República de 1942, a positivar técnicas interpretativas clássicas na famosa “Lei de Introdução ao Código Civil”, hoje denominada “Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro” (Decreto-Lei nº 4657).[7]
São óbvios, nesse sentido, especialmente os artigos 4º e 5º:
“Art. 4º. Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito.
Art. 5º. Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum.”
No primeiro caso, positivou-se uma das técnicas clássicas de integração normativa, isto é, um método de aplicação do direito nos casos de verificação das chamadas lacunas. No segundo caso, positivou-se a preferência por um dos métodos clássicos de interpretação das normas, denominado doutrinariamente método teleológico. Nesse ponto, é imperioso destacar a forte influência do Direito Privado Clássico e dos valores liberais que o informavam. Em termos mais detalhados, os alicerces deste direito fundavam-se na autonomia da vontade, liberdade contratual e disponibilidade dos interesses, pelo que o princípio do pacta sunt servanda surge como o grande princípio regente das relações jurídicas. Associado à ideia então vigente da perfeição do legislador (a lei é perfeita, pois fruto da vontade da nação), da racionalidade, sistematicidade e ubiquidade do ordenamento jurídico (do qual o Código Civil Napoleônico de 1804 era o modelo mais entusiasmado) e de que o papel do Poder Judiciário era apenas aplicar o direito segundo um silogismo normativo quase matemático (“o juiz é a mera ‘boca da lei’”) sobrava muito pouco para a Hermenêutica.[8]
Em resumo, a Hermenêutica tem início como uma disciplina à margem da Teoria Geral do Direito, em um momento de supervalorização do Direito Privado e de estímulo à codificação racional do Direito. O Código de Napoleão é o exemplo simbólico mais importante dessa fase. Esta perspectiva advém do paradigma liberal do Direito, em que o Direito Privado e não o Direito Constitucional representa o ideal normativo da sociedade, por congregar os ideais de liberdade, patrimônio e segurança. Consequentemente, a técnica hermenêutica, à época, sofre grande influência dos pressupostos privatistas.[9]
Por outras palavras: em um contexto em que se hipervalorizava a função e a estrutura do direito positivo, outorgando-lhe um caráter de extrema racionalidade e exaustividade, a hermenêutica tinha pouquíssima função, servindo apenas para resolução de três problemas específicos, que vão aqui denominados de a) incompletude normativa, b) obscuridade semântica e c) antinomia normativa.
Essa “incompletude normativa” ou, por outros termos, a “lacuna” tornou-se um problema a ser resolvido pela hermenêutica. Criaram-se, assim, os chamados “métodos de integração do direito”, dos quais são exemplos mais usuais a analogia, os costumes, a equidade e os tais “princípios gerais do direito”. Por outro lado, o mito da perfeição do legislador não impediu o surgimento de dúvidas acerca dos sentidos das normas, muitas delas derivadas de má redação legislativa e de problemas de cognição. Essa “obscuridade semântica” impulsionou a criação, pela Hermenêutica Jurídica Clássica, dos famosos “métodos de interpretação do direito”, dos quais os mais famosos são os métodos literal, lógico, sistemático, teleológico e histórico. Por último, o direito legislado em regras detalhadas por vezes se deparava com conflitos de normas (regras), as chamadas “antinomias normativas”, pelo que foi necessário também definir critérios solucionadores, sendo os mais comuns os da hierarquia, cronológico e o da especialidade.[10]
O desgaste da concepção jusprivatista da Hermenêutica Jurídica Clássica tornou-se insuportável a partir de meados do século XX. Forjada em valores liberais atinentes a não intervenção estatal nos contratos privados, à concepção de sociedade civil como espaço das relações privadas de cunho patrimonialista, ao predomínio do Código Civil como grande codex social, a disciplina teve que se readaptar aos novos tempos que solicitavam não apenas mais intervenção estatal (paradigma social), como a retomada da importância da Constituição e de seu papel de norma suprema. Importante ressaltar que essa “mudança de eixo” – a diminuição da importância do Código Civil (seu confinamento à sua específica área de regulação) e a realocação da Constituição como centro do Direito e como norma mais importante de organização social – trouxe novos e relevantes desafios para a interpretação e a aplicação do Direito.[11]
O i. professor Rodolfo Viana Pereira cita quatro razões essenciais para a retomada da importância da Constituição e seu papel de norma suprema, com força irradiadora e dirigente sobre todos os ramos do direito, inclusive sobre o Direito Privado:[12]
- O assentamento mundial dos sistemas de controle de constitucionalidade: o controle de constitucionalidade foi o grande responsável pela consolidação do princípio da supremacia constitucional. Desde seu surgimento nos Estados Unidos da América originado do famoso julgamento Marbury v. Madison (decisão de 1803), o sistema espalhou-se pela América, chegando ao Brasil com a Constituição de 1891;
- A eficácia horizontal dos direitos fundamentais: trata-se de um postulado jurídico advindo do julgamento do caso Eric Lüth pelo Tribunal Constitucional Alemão em 1958, aonde se decidiu que os direitos fundamentais não regulam apenas a relação “vertical” Particular v. Estado, mas também dirigem a relação “horizontal” Particular v. Particular. Na prática, isso implica o fim da blindagem das relações privadas e a possibilidade de o negócio jurídico privado ser anulado quando verificada lesão a direito fundamental. Tal teoria se encontra na base das novas reformas cíveis e empresarias no Brasil a ponto de se ter consolidado a expressão “Direito Civil Constitucional’;
- A dignidade humana como núcleo axiológico dos direitos fundamentais: após o evento do holocausto na Segunda Guerra Mundial, restou claro que os valores fundamentais merecedores de proteção jurídica já não se resumiam aos valores liberais ou meramente assistencialistas. Ato contínuo, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana foi erigido o vetor axiológico dos direitos fundamentais. Não por menos, o princípio vem disposto no artigo 1º da Constituição da Alemanha libertada (Lei Fundamental de Bonn de 1949): “Die Würde des Menschen ist unantastbar. Sie zu achten und zu schützen ist Verpflichtung aller staatlichen Gewalt”, isto é, “A dignidade da pessoa humana é intocável. Todos os poderes públicos têm a obrigação de respeitá-la e protegê-la”. Sendo assim, reforçou-se a importância da Constituição como a “casa” de proteção dos valores fundamentais, aí incluído o respeito ao ser humano em sua integral dignidade.
- O Bloco de constitucionalidade: Surgida na França a partir de decisão do Conselho Constitucional francês, a teoria do Bloco de Constitucionalidade implica outro reforço à supremacia da Constituição, sobretudo por implicar um expansionismo constitucional. A teoria gira em torno da identificação de normas constitucionais fora do código constitucional, isto é, normas que passam a se beneficiar do status/ranking constitucional, sem estar contidas no texto da Constituição escrita. Aqui, a teoria reforçou as teses, inclusive no Supremo Tribunal Federal, de que as normas constitucionais de direitos fundamentais não se resumem ao texto literal da Constituição, mas podem englobar outras densificadas pelo Supremo, à luz do art. 5º, §2º da CR/1988. A questão tomou novo fôlego com a introdução do §3º no referido art. 5º, por determinar que tratados internacionais de direitos humanos possam ter status equivalente às emendas constitucionais acaso aprovados segundo o rito destas.
Segundo leciona Pereira, “há um grande reforço da centralidade constitucional e do postulado de sua supremacia, a ponto de se falar em um: “efeito de irradiação” (as normas constitucionais são “irradiadas” para todo o ordenamento jurídico, devendo todos os seus ramos se reportar a elas para buscar seu fundamento de validade), “giro hermenêutico” (quebra-se a ilusão de um intérprete racional, neutro e a-histórico. Todo fenômeno de compreensão é influenciado por um conjunto de pré-compreensões, sendo derrubado o mito de um silogismo imparcial por parte do intérprete), “giro linguístico” (quebra do mito de que o texto legal é claro e unívoco, o que possibilitaria a busca de uma mens legis ou ratio legis para o texto da lei. A linguagem é vista como convenção social, devendo a interpretação estar atenta para a dispersão de sentido das palavras, inexistindo chance de o intérprete escavar o texto legal para procurar seu “verdadeiro sentido”) e um “giro pragmático” (o efeito normativo só pode ser, de fato, analisado quando da aplicação da norma ao caso concreto. É ressaltada a importância prática do Direito e a insuficiência dos discursos meramente teóricos e escolásticos para preencher suas lacunas. Os efeitos dos Direitos Fundamentais, bem como seus contornos, devem ser analisados nos casos concretos, inexistindo hierarquia a priori entre eles).
3. CONCLUSÃO:
A doutrina jurídica reconhece a insuficiência das regras hermenêuticas clássicas, usadas ordinariamente para interpretar toda a legislação infraconstitucional, no que tange à interpretação da Constituição da República.
Para que entendamos o motivo dessa insuficiência é essencial que discutamos as diferenças básicas entre os objetos de interpretação. No constitucionalismo moderno, o ordenamento jurídico tem no mínimo dois patamares hierárquicos de normas, as normas definidas pela legislação ordinária e as normas constitucionais.
É muito importante ter a exata noção do papel atual da Constituição no ordenamento jurídico. O grande desafio é, portanto, atuar na jurisdição de modo adequado, utilizando as conquistas do Direito Constitucional e das novas técnicas de interpretação, sem violar a segurança e a certeza jurídicas.
REFERÊNCIAS:
- GRUNWALD, Astried Brettas. Uma visão hermenêutica comprometida com a Justiça. Disponível em http://jus.com.br/artigos/4351/uma-visao-hermeneutica-comprometida-com-a-justica. Acesso em 17 de junho de 2014.
- MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1-2.
- BARROS, Alice Monteiro. Curso de direito do trabalho. 5 ed. rev.e ampl. São Paulo:LTR, 2009, p. 125-126; MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1-2.
- GUERRA FILHO, Willys Santiago. Hermeneutica constitucional, direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. in: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu, 2002.
- TORRENS, Haradja Leite. Da Hermenêutica clássica para a hermenêutica constitucional: o papel de uma hermenêutica principiológica. Revista Jurídica da FIC. Fortaleza, v. 3, n. 4, ano 2004.
- PEREIRA, Rodolfo Viana. Constituição, Democracia e Hermenêutica. Caderno de Estudos e Pesquisa. Curso de Pós-Graduação lato sensu em Advocacia Pública, na modalidade EaD, 2014. Faculdade AVM.
[1] GRUNWALD, Astried Brettas. Uma visão hermenêutica comprometida com a Justiça. Disponível em http://jus.com.br/artigos/4351/uma-visao-hermeneutica-comprometida-com-a-justica. Acesso em 17 de junho de 2014.
[2] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1-2.
[3] BARROS, Alice Monteiro. Curso de direito do trabalho. 5 ed. rev.e ampl. São Paulo:LTR, 2009, p. 125-126; MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1-2.
[4] GUERRA FILHO, Willys Santiago. Hermeneutica constitucional, direitos fundamentais e princípio da proporcionalidade. in: BOUCAULT, Carlos Eduardo de Abreu, 2002.
[5] TORRENS, Haradja Leite. Da Hermenêutica clássica para a hermenêutica constitucional: o papel de uma hermenêutica principiológica. Revista Jurídica da FIC. Fortaleza, v. 3, n. 4, ano 2004.
[6] TORRENS, op. cit.
[7] PEREIRA, Rodolfo Viana. Constituição, Democracia e Hermenêutica. Caderno de Estudos e Pesquisa. Curso de Pós-Graduação lato sensu em Advocacia Pública, na modalidade EaD, 2014. Faculdade AVM.
[8] PEREIRA, op. cit.
[9] PEREIRA, op. cit.
[10] PEREIRA, op. cit.
[11] PEREIRA, op. cit.
[12] PEREIRA, op. cit.
Procuradora Federal em exercício na Procuradoria-Seccional Federal em Campinas/SP.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BITTENCOURT, Isabela Cristina Pedrosa. Considerações sobre a hermenêutica jurídica clássica e a hermenêutica constitucional Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 23 jun 2014, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39894/consideracoes-sobre-a-hermeneutica-juridica-classica-e-a-hermeneutica-constitucional. Acesso em: 23 dez 2024.
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