RESUMO: Infertilidade. Alternativa. Maternidade substituta. Admissibilidade. Código Civil. ECA. Código Penal. Licitude. Gratuidade. Fim altruísta.
1- INTRODUÇÃO
O avanço da medicina traz em seu bojo o aprimoramento de técnicas mais diversas relacionadas à reprodução humana, dentre as quais se incluiu a utilização de útero de terceira para gestar, inseminação artificial, manipulação genética. A população mundial, cada vez mais moderna, abre-se a oportunidades não antes pensadas. Porém, juntamente com essas novas práticas de reprodução assistida, surgem também diferentes impactos, seja no campo social, da ética, do direito, o que exige também novos posicionamentos e estabelecimento de premissas.
Cada vez mais, cientistas, pesquisadores, laboratórios farmacêuticos se desdobram a fim de descobrir substâncias novas e técnicas mais eficazes, e, os homens passam a depositar cada vez mais esperança nessas pesquisas, em busca de solução à sua patologia. É o caso do “inférteis” que procuram de todas as formas a possibilidade de ter filhos com seu material genético. Essa a primeira vontade deles.
Nesse passo, no entanto, há que se instituir balizadores às novas práticas medicinais, a fim de que certos valores humanos sejam sempre preservados. Surge, então, infindável discussão ética e moral.
Será que tudo o que pode ser feito deve ser feito?
Como o direito se posiciona diante desses novos acontecimentos sociais?
Nesse diapasão, pinça-se uma das técnicas de reprodução assistida, cumprindo aqui analisar a figura da maternidade substituta, ou “barriga de aluguel”, como é popularmente conhecida.
Ressalta-se que o público brasileiro já foi espectador de programas televisivos que continham em seu bojo a discussão acerca da “barriga de aluguel”, que, diga-se, tomou um viés mais sensacionalista. No entanto, nem por isso menos importante é o assunto, e por isso merece ser esclarecido em suas minúcias, no que for possível.
A legislação brasileira, quanto a essa matéria, faz-se lacunosa, o que torna imperioso aos juristas um esforço hercúleo a fim de acompanhar a rápida evolução da sociedade contemporânea.
Diante disso, a utilização de princípios morais e éticos são, em regra, os principais balizadores à novas práticas no campo da pesquisa e biomedicina, usados também na integração do direito.
2- DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES.
Inicialmente, a prioridade é estabelecer princípios e normas éticas que permitam lidar com os numerosos problemas emergentes, a fim de se evitar retrocesso de valores humanos ou um casuísmo excessivo, em que para cada fato se assuma uma atitude jurídica diferente. Não existe, porém uma teoria moral plenamente elaborada, tampouco legislação norteadora concisa e absoluta, como já dito. [1]
Dessa forma, é necessário o entrelaçamento da Bioética e do Biodireito, buscando evitar catástrofes, que possam significar a própria extinção da espécie humana ou afetar valores imprescindíveis, como a dignidade da pessoa humana. Este é o princípio basilar, ao se avaliar a maternidade substituta.
A Bioética busca justamente um ponto de equilíbrio entre o ético e o científico, estudando a conduta humana e as técnicas científicas, observando-se os princípios norteadores, quais sejam: não-maleficência, justiça, beneficência e autonomia[2], tomando-se por base a teoria principialista.
Pelo princípio da autonomia, reconhece-se o direito do paciente diante de sua própria vida, o respeito à sua intimidade, como à sua decisão, cujo consentimento deverá ser livre e esclarecido. Para isso deverá o médico prestar todas as informações básicas necessárias ao paciente, acerca do procedimento a que será submetido, seus riscos, consequências, reações adversas.
O princípio da beneficência visa atingir o bem estar de quem se submete a algum procedimento específico, devendo sempre se buscar as melhores táticas para se chegar aos melhores resultados.
Correlacionado, está o princípio da não-maleficência que busca, por conseguinte, evitar o máximo possível de danos, enquanto o da justiça prega o tratamento igual dos pacientes, requerendo a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios, de forma a evitar discriminação posterior.
O Biodireito pretende, tomando por base conceitos da Bioética, aplicar o direito às novas situações fáticas, de forma a impedir que o avanço científico se sobreleve à ética e ao direito, tentando evitar o alastramento de infrações que atinjam valores integridade física, moral e ética.
Nessa esteira, pensa Maria Helena Diniz[3]:
“Urge, portanto, a imposição de limites à moderna medicina, reconhecendo-se que o respeito ao ser humano em todas as suas fases evolutivas (antes do nascer, no nascimento, no viver, no sofrer e no morrer) só é alcançado se se estiver atento à dignidade humana. Daí, ocupar-se a bioética de questões éticas atinentes ao começo e fim da vida humana, às novas técnicas de reprodução humana assistida, à seleção de sexo, à engenharia genética, à maternidade substituta etc., considerando a dignidade humana como valor ético, ao qual a prática biomédica está condicionada e obrigada a respeitar. Para a bioética e o biodireito a vida humana não pode ser uma questão de mera sobrevivência física, mas sim de “vida com dignidade”.
Esclarecidos os papéis do Biodireito e da Bioética, cabe adentrar em uma das inúmeras novas técnicas de reprodução humana assistida, a maternidade substituta. Porém, antes, necessária uma análise geral sobre os métodos de reprodução assistida.
3- MÉTODOS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA. CONCEITOS.
Existem métodos diferentes a fim de facilitar a reprodução do homem. Vejamos algumas.
Entende-se por fecundação artificial “a fusão de um óvulo e um espermatozóide fora do corpo humano, mediante assistência médica”[4].
Denomina-se concepção artificial o ato de gerar um ser humano, por qualquer método auxiliar da medicina. “Inseminação artificial é o processo por inteiro e que engloba, pois, as figuras anteriores[5]”.
A fertilização in vitro é o que se chama a fecundação de gametas externamente, efetivada em proveta, a baixíssimas temperaturas, juntando-se gameta masculino e feminino e posteriormente inseminando o zigoto, resultado da fecundação, em corpo da mulher.
Tecnicamente falando, os médicos classificam os tipos de inseminação artificial em: ZIFT (Zibot Intra Fallopian Transfer), que é a manipulação externa do óvulo da mulher com o sêmen do marido, introduzindo-se posteriormente em útero; e o GIFT (Gametha Intra Fallopian Transfer), que nada mais é do que a fecundação ocorrente no útero da mulher, introduzindo apenas o sêmen que naturalmente não consegue atravessar o canal vaginal e encontrar o óvulo[6].
A diferença reside, especificamente, na formação do zigoto. Na primeira hipótese, ocorre fora do corpo humano; na segunda, ocorre dentro do corpo da mulher. A artificialidade da primeira ocorre no encontro dos materiais fecundantes, que é externa, e na sua inseminação na cavidade uterina. Na segunda, utiliza-se método artificial tão-somente para introdução de sêmen, a formação zigótica se dará pelo modo natural.
Entendido o procedimento da inseminação artificial, há que se considerar que há peculiaridade acerca da proveniência dos gametas a serem utilizados. Daí a classificação em homóloga e heteróloga. Maria Helena Diniz conceitua as duas espécies da seguinte forma[7]:
“a) Inseminação artificial homóloga, praticada na esposa (convivente) com sêmen do marido (convivente), em vida deste, ou após a sua morte (AIH- Artificial Insemination by Husband);
b) inseminação heteróloga, durante matrimônio ou união estável, feita em mulher casada ou convivente, com esperma de terceiro. (AID – Artificial Insemination by Donor)”.
Em termos práticos, na fecundação homóloga, o material genético do filho será inteiramente dos pais conviventes, haja vista ser deles o óvulo e o esperma. Na heteróloga, há um gameta de terceiro ou os dois, não tendo o filho material genético de um de seus pais ou de nenhum dos dois. Fala-se em gametas bilateralmente heterólogos, ou seja, tanto o óvulo quanto o esperma seriam provenientes de terceiros, de modo que o filho não teria material genético de qualquer de seus pais. Ressalte-se que o conceito de maternidade e de paternidade como paradigmas neste trabalho ultrapassam o aspecto biológico. Assim, consideram-se pais aqueles que tiveram o ânimo de formar a família[8].
DA MATERNIDADE SUBSTITUTA
Historicamente, há ocorrência de maternidade substituta em tempos em que não se usavam meios artificiais para sua implementação. Na Bíblia, há uma passagem em Gênesis, na qual Sara, mulher de Abraão, por ser estéril, autoriza seu marido a engravidar uma escrava, a fim de que concebesse um filho (capítulo XVI, versículo 1-4).
O código de Hamurabi, por sua vez, apesar de defender a monogamia, autorizava o esposo, caso a mulher não pudesse lhe dar filhos, a manter relações sexuais com terceira, com o fim procriativo[9].
Segundo Mônica Aguiar [10]:
“A maternidade substituta não foi concebida como algo resultante da técnica de reprodução medicamente assistida. Deveras, é conhecido o exemplo bíblico pelo qual Raquel permite, conscientemente, ao seu marido Jacó, uma relação adulterina, com o único intuito de fecundar outra mulher, sob o pressuposto de que o filho gerado seria do casal, pois a mãe geradora e geratriz renunciaria à maternidade.”
Quanto a maternidade substituta, então, há uma peculiaridade. Nesse tipo de técnica de reprodução, a mulher gestante cederá sua barriga à verdadeira mãe do bebê a nascer. A fecundação pode ocorrer pelos modos habituais, diga-se, com relação sexual da mãe substituta com o homem que pretende ser pai, ou pode-se utilizar a inseminação artificial, a fim de introduzir gametas ou o já o zigoto na mulher “cedente” do útero.
A primeira hipótese parece encontrar óbice moral. Caso haja pagamento, a técnica toma ares mercantis, encontrando impedimento, dessa vez, no ordenamento jurídico brasileiro.
No direito comparado, principalmente na Europa, há países que admitem o pagamento. Notícia recente, divulgada pelos telejornais brasileiros, mostrou um homem “reprodutor”, que, pelos métodos convencionais de sexo, engravidava mulheres, mediante pagamento. Tal fato, ainda que lícito pelo direito alienígena, causou certo estranhamento entre os leigos brasileiros, quiçá aos juristas. Até porque, atribuir um “preço” a espermatozoides, óvulos, zigotos encontraria óbice no princípio da dignidade da pessoa humana, pois nada mais seria do que torna-los “coisas” comerciais, objetos. Numa interpretação ampliada, futuramente, significaria aceitar, talvez, a instituição de preços variados a materiais genéticos diferenciados, tornando-os equivalentes a qualquer produto numa estante de mercado.
Logo, uma vez admitida a maternidade maternidade substituta, seja ela homóloga ou heteróloga, de acordo com os parâmetros principiológicos brasileiros, gratuita ela deve ser. A dignidade da pessoa humana é um limite não só ao Estado, como também às ações de todos os indivíduos inseridos na sociedade brasileira.
Esta “barriga de aluguel”, desde que gratuita não deve ser vista como ilícita. Por esse motivo, impróprio o termo “aluguel”, motivo pelo qual deve ser chamado de maternidade substituta ou sub-rogada.
Aventadas as classificações básicas, deve-se pontuar as diversas subclassificações que podem ocorrer. Segundo Maria Helena Diniz, são elas[11]:
“a) fecundação de um óvulo da esposa ou companheira com esperma do marido ou convivente, transferindo-se o embrião para útero de outra mulher;
b) fertilização in vitro com sêmen e óvulo estranhos, por encomenda de um casal estéril, implantando-se o embrião no útero da mulher ou no de outra;
c) fecundação, com sêmen do marido ou companheiro, de um óvulo não pertencente à mulher, mas implantado no seu útero;
d) fertilização, com esperma de terceiro, de um óvulo não pertencente à esposa ou convivente, com imissão do embrião no útero dela;
e) fecundação na proveta de óvulo da esposa ou companheira com material fertilizante do marido ou companheiro, colocando-se o embrião no útero da própria esposa (convivente);
f) fertilização, com esperma de terceiro, de óvulo da esposa ou convivente, implantando em útero de outra mulher;
g) fecundação in vitro de óvulo da esposa (companheira) com sêmen do marido (convivente), congelando-se o embrião para que, depois do falecimento daquela, seja inserido no útero de outra, ou para que, após a morte do marido (convivente), seja implantado no útero da mulher ou de outra”.
A hipótese “a” é ectogênese pelo método ZIFT, homóloga, ocorrendo fecundação externa ao corpo da mulher, gestada em útero de terceira, caracterizando a maternidade de substituição. É uma possibilidade para mulheres que têm paredes do útero fracas, incapazes de suportar uma gestação.
A alternativa “b” seria a inseminação heteróloga bilateral, visto que os gametas não pertencem ao casal, utilizando-se também a gestação de substituição.
A opção “c” seria a inseminação heteróloga unilateral, pelo método GIFT, havendo a introdução de gameta feminino de mulher estranha ao casal, mas a gestação ocorreria na mãe convivente. Seria, portanto, a utilização de óvulo de terceira, através de inseminação artificial.
A hipótese “d” seria a inseminação heteróloga bilateral, com os dois gametas de terceiros, ocorrendo a fecundação externa e introdução do zigoto em útero da mãe convivente.
A alternativa “e” seria a inseminação de zigoto homólogo, com fecundação externa e gestação em útero da mãe convivente.
A opção “f” seria a utilização de esperma de terceiro (fecundação heteróloga unilateral) e óvulo da mãe convivente, com o uso da maternidade sub-rogada e, finalmente a hipótese “g”, que seria a fecundação homóloga, mas tendente a uma fecundação futura em barriga substituta, após o falecimento dos pais.
5- UM OLHAR ACERCA DA LICITUDE
Em países econômica e tecnologicamente mais evoluídos como a Holanda e EUA, a maternidade substituta já ocorre devidamente regulamentada. Foram necessárias discussões sobre o tema, com o fim de delimitar a legalidade de tal prática. O Brasil ainda não chegou nesse patamar.
O avanço social e ideológico em países europeus é indubitavelmente maior, logo, as normas lá produzidas procuraram caminhar ao mesmo passo. A morosidade na elaboração de normas jurídicas pode engessar o avanço social; é o que acontece no Brasil.
Discussões infindáveis, longe de se tornarem uma solução, implicam a prática de atos “novos” sem quaisquer parâmetros legais, propensos a infringirem direitos fundamentais da pessoa humana.
Diz Sílvio de Salvo Venosa [12]:
“Quanto ao denominado contrato de gestação, as chamadas barrigas de aluguel, o movimento científico e legislativo internacional tem mostrado repulsa a qualquer modalidade de pagamento para essa atividade, quando não ao próprio fato. Há países, todavia, que admitem a prática e até mesmo a incentivam, como os Estados Unidos. A fecundação em ventre alheio somente deve ser admitida, em ultima ratio, por motivos de solidariedade e de afeto, da mesma forma que a doação de esperma. Nesse sentido já existem legislações, como a lei espanhola de 1988 (Brossert e Zannoni, 1996: 475). Na ausência de norma, entre nós, um contrato oneroso dessa espécie deve ser considerado nulo, porque imoral seu objeto, e a obrigação dele decorrente pode ser considerada, quando muito, obrigação natural. É como conclui, por exemplo, Francisco Vieira Lima Neto, para quem o pacto de gestação não fere a moral e os bons costumes quando é feito de forma gratuita e para solucionar problemas de infertilidade da mulher (In: SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite (Org.). Biodireito, 2001:140). Acrescenta ainda o autor que o Código de Ética Médica passou a admitir a prática desde que os participantes estejam esclarecidos.”
Quanto à aplicação da técnica da maternidade substituta há quem defenda ser adequada apenas aos casos de infertilidade. Nessa esteira, o jurista Silvio Venosa :
“A lei deverá restringir a reprodução assistida unicamente para situações permitidas nela, casos de infertilidade e quando todos os tratamentos possíveis para a reprodução natural tenham-se frustrado...”.
Partindo-se da premissa civil “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, e considerando a inexistência de um tipo penal que a incrimine, não se pode dizer que o empréstimo gratuito de útero é proibido.
Na gratuidade reside a licitude. O crime tipificado no artigo 238 do Estatuto da Criança e do Adolescente parece criminalizar conduta assemelhada. Vejamos:[13]
“Art. 238. Prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa:
Pena - reclusão de um a quatro anos, e multa.
Parágrafo único. Incide nas mesmas penas quem oferece ou efetiva a paga ou recompensa.”
Porém, esse tipo não se adequa à maternidade substituta gratuita. Ainda quanto à filiação, cabe pontuar que é pré-estabelecida, atribuindo-se a quem não pode gestar, logo, não se assemelha à situação fática que o artigo retromencionado pretende punir.
Segundo Valter Ishida, nesse artigo, o elemento subjetivo é o dolo, a vontade livre e consciente de entregar o filho, em troca de paga ou recompensa. É, também, a vontade livre e consciente de oferecer paga ou recompensa aos pais ou tutores, visando a entrega do filho.
Na maternidade substituta gratuita, não se deve considerar “pagamento” o custo com alimentação, vestuário e educação da mãe “cedente” do útero, pois visa a manutenção da saúde do bebê.
Sob mesmo argumento da necessidade de dolo específico, também se exclui o enquadramento da maternidade substituta como tipo do Código Penal Brasileiro previsto no artigo 242 do CPB, que reza o seguinte[14]:
“Art. 242. Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil:
Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos.
Parágrafo único. Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza:
Pena - detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos, podendo o juiz deixar de aplicar pena”. (grifo nosso)
Não se pode dizer que há na maternidade subrogada ou substituta a conduta de dar parto alheio como próprio. Há um ajuste prévio, e desde já se sabe que os pais do bebê vindouro são aqueles que quiseram procriar, apesar de biologicamente impedidos.
O tipo em tela exige dolo especifico. Um documento comprobatório da cessão gratuita elidiria a intenção necessária no artigo acima. O problema é que raramente esse documento é elaborado e assinado. Daí a necessidade de se estabelecer um procedimento próprio que garanta segurança aos envolvidos. Ou, recorrer às vias judiciais.
Segundo Júlio Fabrini Mirabette[15]:
“O dolo é a vontade de praticar qualquer das condutas previstas no tipo. No crime de parto suposto, basta apenas a consciência de que tem o agente de afirmar o fato que sabe não ser verdadeiro (RF 135/252). Quanto ao fato de registrar como seu o filho de outrem, porém, já se decidiu pela ocorrência de erro sobre a licitude do fato, afastando a culpabilidade, na hipótese de registro de menor abandonado como filho próprio praticado por motivo de reconhecida nobreza e não ocultado pelo agente, que tinha plena convicção de estar atuando licitamente, nos termos do art. 21 do CP ( RT 680/339)”.
Segundo entende a Profa. Minahim[16], tendo o Código Civil permitido a inseminação artificial heteróloga, o que turba mais fortemente o estado de filiação, não pode, posteriormente, o direito penal considerar crime o mesmo fato. De outro lado, se a terceira mulher apenas cede o útero, há menor violação do estado de filiação porque os vínculos biológicos são preservados na inseminação homóloga. Assim, não é possível permitir o mais e proibir menos.
A falta de norma jurídica não impediu, porém, que o Conselho Federal de Medicina, em 1992, adotasse normas éticas que norteassem os trabalhos médicos no campo da biomedicina, através da Resolução n. 1358/92. Vê-se que há mais de uma década a classe médica já se propõe a lidar com questões que envolvam inseminação artificial e maternidade substituta. Consta, na resolução citada, item específico acerca da maternidade sub-rogada, impondo limites à atuação médica:
“VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO)
As Clínicas, Centros ou Serviços de Reprodução Humana podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contra-indique a gestação na doadora genética.
1 - As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família da doadora genética, num parentesco até o segundo grau, sendo os demais casos sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina.
2 - A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial [17]”.
Dessa forma, tem-se tal resolução como único limite normativo à maternidade substituta, no Brasil. Sabe-se que não é lei, portanto, o não cumprimento de suas determinações não gerará ilicitude, se não contrapuser outros direitos previstos em lei. As punições a seu descumprimento são advertências e penalidades éticas direcionadas aos médicos infringentes.
Até então, já tramitaram vários projetos de lei dispondo sobre procriação medicamente assistida. Muitos admitem a maternidade sub-rogada, seguindo a linha de pensamento da resolução n. 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, como, por exemplo, o projeto de n. 90 (substitutivo) de 1999. Muitos outros, porém, não admitem a “maternidade substituta”. Nenhum foi aprovado, haja vista a necessidade de ainda se debater sobre o tema.
6- CONCLUSÃO
Dessa forma, a maternidade de substituição gratuita aparece como uma forma de beneficiar os que não podem ter filhos pelo modo convencional. Baseado na liberdade de um ser autônomo, digno e livre para tomar decisões, inclusive de ceder seu útero gratuitamente, como um ato de bondade, pode-se concluir que os fins lícitos a que se propõe garantem a licitude da maternidade substituta.
O Código Penal e o Estatuto da Criança e do Adolescente não trazem tipos que tipifiquem a conduta. O dolo específico, necessário aos artigos elencados, não existe nesse tipo de reprodução assistida, haja vista haver um ajuste prévio de empréstimo de útero e ser a ação movida eminentemente por motivo altruísta. No que diz respeito à remuneração, conclui-se pela sua não aceitação, pois, caso contrário, estaria se transformando o homem em uma coisa mensurável, medida por preço.
Por fim, permanece imperiosa a necessidade de lei que regulamente a maternidade substituta no Brasil, de forma a preservar valores humanos, a dignidade da pessoa humana, não sendo suficiente que as práticas atuais sejam direcionadas apenas por resoluções do Conselho Federal de Medicina. O direito deve cuidar de acompanhar as transformações sociais e, assim, perquirir a justiça e a paz social.
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Analista processual do Ministério Público do Distrito Federal E Territórios. Pós graduanda em Direito Administrativo
[1]SCHOTSMANS, Paul T. “O homem como criador?” In: Bioética - Cadernos Adenauer, Rio de Janeiro. Fundação Konrad Adenauer. 2002, Pág. 12.
[2] DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª edição. Editora Saraiva. São Paulo 2002. Pág. 14
[3] DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª edição. Editora Saraiva. São Paulo 2002. Pág. 18
[4] Dolores Loyarte e Adriana E. Retonda. Procreaciónhumana artificial: um desafio bioético. Apud Mônica Aguiar. Direito à filiação e Bioética. 1ª Edição. Rio de Janeiro. 2005. Pág. 15
[5] AGUIAR, Mônica. Direito à filiação e Bioética. 1ª Edição. Rio de Janeiro. 2005. Pág. 15
[6]DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo 2002
Pág. 452
[7] DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo 2002
Pág. 453
[8] AGUIAR, Mônica. Direito à filiação e Bioética. 1ª Edição. Rio de Janeiro. 2005 Pág. 115.
[9]Biodireito. Ciência da vida, novos desafios. Organizadora Maria Celeste C. L. Santos. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo. 2001. Pág.129.
[10] AGUIAR, Mônica. Direito à filiação e Bioética. 1ª Edição. Rio de Janeiro. 2005. Pág. 107.
[11] DINIZ, Maria Helena. O Estado Atual do Biodireito. 2ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo 2002
Pág. 452
[12] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Direito de Família. 3ª Edição. São Paulo. Atlas. 2003. Pág. 284
[13] ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do Adolescente, Doutrina e Jurisprudência. 5ª edição. São Paulo 2004. Pág. 417
[14] BRASIL. Código Penal Brasileiro. Edições jurídicas Manole. 1ª edição. São Paulo. 2003.
[15]MIRABETTE, Júlio Fabrini. Manual de Direito Penal. Volume 3.Jurídico Atlas. São Paulo 2001. Pág. 61.
[16] MINAHIM, Maria Auxiliadora. Notas de Aula. Disciplina Direito da Criança e do Adolescente; Faculdade de Direito da UFBA. 2005.
[17] Conselho Federal de Medicina. Resolução 1358/92, publicada no site http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/1992/1358_1992.htm, visitado em 15/10/2006.
Analista processual do Ministério Público do Distrito Federal E Territórios. Pós graduanda em Direito Administrativo.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: FERNANDES, Camila Padilha. Maternidade substituta - uma visão geral acerca da sua licitude frente ao Código Civil, ECA e Código Penal Brasileiro Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 24 jun 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39924/maternidade-substituta-uma-visao-geral-acerca-da-sua-licitude-frente-ao-codigo-civil-eca-e-codigo-penal-brasileiro. Acesso em: 23 dez 2024.
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