Kazuo Watanabe afirma que no Brasil ainda prevalece a cultura da sentença.
Isso significa que a sociedade brasileira busca na maioria das vezes o Judiciário para solucionar os seus conflitos, apesar da crise da morosidade da prestação jurisdicional.
A questão é cultural e qualquer conflito, do mais simples ao mais complexo, tem dependido do Poder Judiciário para ser resolvido.
Tendo em vista esse elevado número de processos e o volume de questões existentes, algumas diferenciadas, mas outras tantas repetidas, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, editou a Resolução n. 125/2010, para estabelecer a “Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário”.
A Resolução em questão prevê que cabe ao Judiciário estabelecer política pública de tratamento adequado dos problemas jurídicos e dos conflitos de interesses, que ocorrem em larga e crescente escala na sociedade, de forma a organizar, em âmbito nacional, não somente os serviços prestados nos processos judiciais, como também os que possam sê-lo mediante outros mecanismos de solução de conflitos, em especial dos consensuais, como a mediação e a conciliação. [1]
E com o propósito de diminuir o número de processos, o Judiciário tem incentivado campanhas em prol da conciliação (como, por exemplo, o Movimento pela Conciliação), onde o CNJ promove semanas de conciliação com atuações planejadas e a participação de litigantes habituais.[2]
Questiona-se se a criação dessa Política Nacional, que prevê a solução de conflitos por meio de outros mecanismos - como a conciliação e a mediação-, e não somente os serviços prestados nos processos judiciais, é capaz de promover uma mudança de cultura na sociedade, transformando-a, e tornando-a mais fortalecida e independente seus próprios conflitos sem a necessidade de uma decisão judicial.
De toda forma, o atual papel do Judiciário de encorajar a utilização dos meios alternativos tem colaborado para uma mudança gradual da cultura litigiosa e tem estimulado os outros Poderes a discutirem e também utilizarem os meios alternativos de solução de conflitos.
E nesse movimento de buscar meios alternativos à chamada cultura da sentença, os Poderes Executivo e Legislativo também tem prestado sua colaboração.
Em breves palavras, o Poder Legislativo tem dado sua contribuição com a tramitação no Congresso Nacional do Novo Código de Processo Civil e de projetos de lei sobre mediação e arbitragem. O projeto do Novo CPC, que está sendo votado na Câmara dos Deputados, traz novos artigos e avança muito no tema conciliação. Já os projetos de lei que estão sendo discutidos no Senado tem gerado grande expectativa, porque está em discussão a criação de um marco regulatório para o instituto da mediação, assim como já existe para a arbitragem (Lei 9.307/96, em revisão). Acreditam os entusiastas que uma lei específica sobre mediação trará inúmeros benefícios, servindo para uniformizar, regulamentar e fiscalizar minimamente a prática desse instituto.
Em relação ao Poder Executivo, e mais especificamente à Administração Pública Federal, apesar da União e seus órgãos da Administração Indireta serem tidos como grandes litigantes[3], tanto no âmbito judicial, como extrajudicialmente, estão sendo adotadas medidas de redução de litigiosidade. Além da participação ativa dos representantes da Administração Pública nas campanhas promovidas pelo Poder Judiciário, a prática conciliatória tem sido incentivada no âmbito da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal - CCAF[4], órgão pertencente à Advocacia-Geral da União.
De toda forma, tem custado caro para ao Judiciário preservar a chamada cultura da sentença como via única para a solução das controvérsias porque cada vez com menos eficiência tem se garantido o acesso à Justiça.
Segundo João José Custódio da Silveira, existem dois dogmas principais a serem rompidos para a derrocada da cultura da sentença: o primeiro diz respeito à disseminação da noção de exclusividade do Poder Judiciário para dissolver conflitos. Promover o fortalecimento da cultura administrativa “permitiria a realização do Direito sem intervenção judicial”[5]; o segundo seria a compreensão de que solução alternativa ou derradeira para os conflitos deve ser a sentença, destinada tão somente àqueles onde o apaziguamento mediado ou conduzido – solução principal – mostrou-se inalcançável.
Voltando aos ensinamentos de Kazuo Watanabe, para esse autor a política judiciária adotada pela Resolução 125 já trouxe uma profunda mudança no paradigma dos serviços judiciários e por via de consequência atualizou o conceito de acesso à justiça. Nesse sentido, evoluiu o conceito para o acesso à ordem jurídica justa, e não mero acesso aos órgãos judiciários para a obtenção de solução adjudicada por meio de uma sentença[6].
Ainda sob o enfoque da atualização do conceito do acesso à justiça, Mauro Capelletti destaca como a terceira onda de reformas, o “novo enfoque de acesso à justiça”[7], que tem como norte a melhoria do conjunto de instituições e mecanismos, pessoas e procedimentos utilizados para processar e prevenir disputas na sociedade contemporânea. As inúmeras melhorias, consoante Capelletti[8] consistem em:
Inicialmente, como já assinalamos, esse enfoque encoraja a exploração de uma ampla variedade de reformas, incluindo alterações nas formas de procedimento, mudanças na estrutura dos tribunais ou a criação de novos tribunais, o uso de pessoas leigas ou para profissionais, tanto como juízes quanto como defensores, modificações no direito substantivo destinadas a evitar litígios ou facilitar sua solução e a utilização de mecanismos privados ou informais de solução de litígios. Esse enfoque, em suma, não receia inovações radicais e compreensivas, que vão muito além da esfera de representação judicial. Ademais, esse enfoque reconhece a necessidade de correlacionar e adaptar o processo civil ao tipo de litígio. Existem muitas características que podem distinguir um litígio do outro. Conforme o caso, diferentes barreiras ao acesso podem ser mais evidentes, e diferentes soluções, eficientes.
Extrai-se do texto produzido por Capelletti que no anseio do novo enfoque de acesso à justiça, os métodos ditos alternativos de solução de conflitos se apresentam como instrumentos de reforma e podem ser utilizados tanto dentro de um processo judicial como fora dele.
Necessário registrar, no entanto, que os meios alternativos de resolução de controvérsias devem ser estudados não como solução para a crise da morosidade da Justiça, ou como forma de reduzir a quantidade de processos acumulados no Judiciário. Concordamos com o pensamento de Kazuo Watanabe que afirma que os instrumentos em questão devem servir na verdade para dar tratamento mais adequado aos conflitos de interesses.[9] Nesse sentido também João José Custódio da Silveira, para quem as medidas alternativas, se enaltecidas e prestigiadas podem representar um marco na concepção de acesso e distribuição de Justiça[10].
Esse mesmo autor[11] diz que a consolidação das soluções consensuais apresentará a face amistosa da Justiça, menos interessada em dizer o direito e mais aberta a resolver o problema do jurisdicionado, em tempo razoável e promovendo a pacificação do conflito.
Quiçá, um dia, se mudará realmente o enfoque do acesso ao processo para o acesso à justiça.
[3] A União como grande litigante. Disponível em: http://www.slideshare.net/abradtbrasil/a-unio-como-grande-litigante. Acesso em 27.05/2014.
[4] A Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal - CCAF, órgão da Consultoria-Geral da União, foi criada pelo Ato Regimental nº 05, de 27 de setembro de 2007, e tem sua forma de atuação regulamentada pelo Decreto 7.392/2010 e pela Portaria AGU nº 1.281, de 27 de setembro de 2007. Seu objetivo principal é evitar litígios entre órgãos e entidades da Administração Pública Federal e destes com a Administração Pública Estadual, ou do Distrito Federal e Municipal.
[5] SILVEIRA, João José Custodio da. Desafios à nova ordem de soluções diferenciadas para acesso à justiça. In SILVEIRA, João José Custodio da e NEVES AMORIM Jose Roberto. A Nova ordem das soluções alternativas de conflitos e o conselho nacional de justiça/Ada Pellegrini Grinover... [et al.]. 1 ed. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013, p. 163.
[6] WATANABE, Kazuo. Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses – Utilização dos meios alternativos de resolução de controvérsias. In SILVEIRA, João José Custodio da e NEVES AMORIM Jose Roberto. A Nova ordem das soluções alternativas de conflitos e o Conselho Nacional de Justiça/Ada Pellegrini Grinover... [et al.]. 1 ed. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013, p. 229.
[7] CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Nortthfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988. Reimpressão em 2002, p. 31.
[8] Idem, p. 71
[9] WATANABE, Kazuo. Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos de Interesses – Utilização dos meios alternativos de resolução de controvérsias. In SILVEIRA, João José Custodio da e NEVES AMORIM Jose Roberto. A Nova ordem das soluções alternativas de conflitos e o Conselho Nacional de Justiça/Ada Pellegrini Grinover... [et al.]. 1 ed. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013, p. 227.
[10] SILVEIRA, João José Custodio da. Desafios à nova ordem de soluções diferenciadas para acesso à justiça. In SILVEIRA, João José Custodio da e NEVES AMORIM Jose Roberto. A Nova ordem das soluções alternativas de conflitos e o conselho nacional de justiça/Ada Pellegrini Grinover... [et al.]. 1 ed. Brasília, DF: Gazeta Jurídica, 2013, p. 170.
[11] SILVEIRA, João José Custodio da. Desafios à nova ordem de soluções diferenciadas para acesso à justiça. In SILVEIRA, João José Custodio da e NEVES AMORIM Jose Roberto. A Nova ordem das soluções alternativas de conflitos e o conselho nacional de justiça/Ada Pellegrini Grinover... [et al.]. 1 ed. Brasilia, DF: Gazeta Jurídica, 2013, p. 182.
Formada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Especialista em Direito Público pela Universidade de Brasília - UNB e em Direito Processual Civil pelo Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP. Procuradora Federal desde 2004.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: COSTA, Helena Dias Leão. A cultura da sentença e a necessária atualização do conceito de acesso à justiça Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 26 jun 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/39945/a-cultura-da-sentenca-e-a-necessaria-atualizacao-do-conceito-de-acesso-a-justica. Acesso em: 23 dez 2024.
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