RESUMO: O presente trabalho pretende se debruçar sobre as questões que envolvem a pertinência temática nas ações civis públicas propostas pelos entes federativos
PALAVRAS CHAVE: Ação Civil Pública. Pertinência Temática. Interesse. Ação de Improbidade.
INTRODUÇÃO
Segundo Alexandre de Moraes, pertinência temática é “o requisito objetivo da relação de pertinência entre a defesa do interesse específico do legitimado e o objeto da própria ação.”[1]
Pedro Rangel Dinamarco, por sua vez, ensina que a pertinência temática deve ser “entendida como a proteção específica daquele bem que é o objeto da ação civil pública ajuizada pela associação, ou com ela compatível”[2] .
Pertinência Temática e entes federativos
É certo que o requisito da pertinência temática é exigido no caso das ações diretas de inconstitucionalidade, se proposta por alguns dos legitimados:
“Assim, enquanto se presume de forma absoluta a pertinência temática para o Presidente da República, Mesa do Senado e da Câmara dos Deputados, Procurador-Geral da República, Partidos políticos com representação no Congresso nacional e Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em face de suas próprias atribuições institucionais, no que se denomina legitimação ativa universal; exige-se a prova da pertinência por parte da Mesa da Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, do Governador do Estado ou do Distrito Federal, das confederações sindicais ou entidades de âmbito nacional.” [3]
Isto porque as finalidades para as quais as associações tenham sido criadas devem ter, segundo a doutrina, um nexo de dependência/inter-relação com a tutela jurisdicional pretendida.
No caso das ações civis públicas, a maior parte da doutrina não trata da exigibilidade do requisito de “pertinência temática” especificamente em relação aos entes federativos.
A Lei no 7.347/85 em sua redação original disciplinava que:
Art. 5o A ação principal e a cautelar poderão ser propostas pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios. Poderão também ser propostas por autarquia, empresa pública, fundação, sociedade de economia mista ou por associação que:
I – esteja constituída há pelo menos um ano, nos termos da lei civil;
II – inclua entre as suas finalidades institucionais a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
A redação poderia eventualmente confundir se seria necessário também analisar as finalidades institucionais das autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista.
Hugo Nigro Mazzilli, ao analisar o artigo 5o da Lei no 7.437/85 afirma que “essa redação não prima pela clareza, pois pode restar a dúvida sobre se os requisitos de pré-constituição e de finalidades institucionais apenas se aplicam às associações civis ou também se estendem a outros co-legitimados como autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista.”[4]
Pedro da Silva Dinamarco, por exemplo, admitia a exigência de pertinência temática apenas para as associações e entes da Administração Pública indireta.[5]
Analisando a possibilidade de controle judicial da legitimação coletiva, o professor Fredie Didier Jr. sistematiza os entendimentos doutrinários sobre a necessidade de “pertinência temática” para propositura de ação civil pública:
Há quem afirme que, no Brasil, para averiguação da legitimação coletiva, é suficiente o exame do texto de lei. Não poderia o magistrado, por exemplo, afirmar que um ente legalmente legitimado não tem, em determinado caso, o direito de conduzir o processo. Para esta doutrina, que é a dominante, a adequação do representante ao objeto litigioso (ou sua pertinência temática, na linguagem adotada pelo STF) não é requisito exigido para a sua legítima atuação em defesa dos interesses difusos e coletivos, pois o legislador teria disposto um rol taxativo de legitimados, estabelecendo uma presunção absoluta de que são “representantes adequados”, não cabendo ao magistrado essa avaliação. A verificação da adequacy of representation seria tarefa do legislador. A legitimação coletiva seria, pois, ope legis. (grifos nossos)
Há outros, porém, que, com base na experiência americana (art. 23 das Federal Rules, já mencionado), admitem o controle judicial da “representatividade adequada”. Para esses autores, não basta a previsão legal da legitimação; é necessário que exista um tal vínculo entre o legitimado e o objeto do processo, que o habilite, em determinado caso, para a condução do processo. A jurisprudência do STF deu a este vínculo o nome de “pertinência temática”. A análise da legitimação coletiva (e, portanto, do representante adequado) dar-se-ia em duas fases – sendo que a primeira é preliminar da segunda; a) legislativa (ope legis): verifica-se se há autorização legal para que determinado ente possa conduzir o processo coletivo; b) judicial (ope iudices), em que o controle se opera in concreto, à luz da relação que existe entre aquele que está legalmente legitimado e aquela determinada situação jurídica de direito substancial por ele deduzida em juízo. Surge, então, a figura da pertinência temática, que decorreria da cláusula do devido processo legal, aplicada à tutela jurisdicional coletiva. É a corrente que seguimos.[6]
Parece-nos, portanto, não haver discussão acerca da necessidade de comprovação do requisito “pertinência temática” quando da propositura de ação civil pública pelos entes federados.
Até porque se as finalidades institucionais da União estão dispostas no artigo 3o da Constituição Federal, não sendo possível vislumbrar sequer um exemplo de tutela coletiva na qual ela padeceria de ausência do requisito “pertinência temática”:
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Com a edição da Lei no 8.078/90, o legislador primou pela técnica, deixando claro que o requisito “pertinência temática” somente é exigível para as associações civis:
Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:
I - o Ministério Público,
II - a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;
III - as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;
IV - as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear.
Surgem, assim, no âmbito das ações coletivas, duas classes de legitimados para a defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos:
a) a dos legitimados 'amplos', que não se sujeitam ao requisito da pertinência temática, aqui incluída a União;
b) a dos legitimados 'restritos', que tenham sido criados visando a defesa dos interesses tutelados pela Lei no 8.078/90 ou que a sua atuação tenha correlação com o objeto do Código de Defesa do Consumidor.
Utilizando-se de uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, visualiza-se que no caso das ações civis públicas que visem a defesa de interesses difusos e coletivos distintos da tutela consumerista, aplicar-se-ia a mesma mens legis utilizada pelo CDC.
De qualquer forma, visando também dirimir qualquer dúvida quanto a divisão dos legitimados nas classes de 'amplos' e 'restritos', foi editada a Lei no 11.448, de 15.01.2007, in verbis:
Art. 5º Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar:
I - o Ministério Público;
II - a Defensoria Pública;
III - a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;
IV - a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista;
V - a associação que, concomitantemente:
a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil;
b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico.
Dessa forma, resta claro que somente às associações será exigido o requisito de pertinência temática quando da propositura de ação civil pública que visem a defesa de interesses difusos e coletivos não tutelados pelo Código de Defesa do Consumidor.
Assim, se outrora existiram discussões acerca da necessidade de exigência do requisito “pertinência temática” para os legitimados a propor ação civil pública, atualmente, após a edição da Lei no 11.448/07, estas dúvidas parecem ter desaparecido, não havendo a exigência do requisito “pertinência temática” para a propositura de ação civil pública pelos entes federados.
O requisito “pertinência temática” nas ações de improbidade administrativa:
É cediço que as demandas de improbidade administrativa nada mais são que uma espécie de ação civil pública, o que não implica na desnecessidade de analisar o artigo 17 da Lei no 8.429/92, in verbis:
Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. (grifos nossos)
Diante da exigência, pela Lei 8.429/92, da demonstração do interesse pela pessoa jurídica que promove a ação de improbidade, a doutrina passou a interpretar literalmente o dispositivo.
Ora, se por um lado o artigo 17 exige a demonstração de interesse, por outro tem-se que: a) o interesse público a ser tutelado deveria ser preservado por qualquer dos legitimados já que a ação civil pública (incluindo aí as ações civis públicas de improbidade administrativa) primam pela defesa do interesse público primário e secundário, e não direitos individuais; b) a jurisprudência admite a cumulação de pedidos de ressarcimento com outras punições decorrentes da lei de improbidade administrativa, o que geraria a esdrúxula situação de um ente poder somente propor ação civil pública enquanto outro poderia cumular pedidos.
Emerson Garcia e Rogério Pacheco Alves explicam que:
A Lei de Improbidade trata da legitimação ad causam ativa em seu art. 17: a ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar. Tal regra deve ser complementada pela previsão contida no § 2o do próprio art. 17, que autoriza a Fazenda Pública a promover as ações necessárias à complementação do ressarcimento do patrimônio público.
Quais seriam as “pessoas jurídicas interessadas” a que se refere a norma? A princípio aquelas mencionadas no caput do art. 1o, quais sejam, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, por sua administração direta, indireta ou fundacional, desde que a conduta improba tenha repercutido efetivamente em seu patrimônio. [7]
Da mesma forma, leciona Wallace Paiva Martins Júnior:
A pessoa jurídica interessada é a entidade da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (conceituadas no art. 1o) lesada pelo ato de improbidade administrativa em seus valores morais ou patrimoniais, detentora do dever de preservação da legalidade (de reprimi-lo em razão do interesse público primário) e do princípio da moralidade (em que se inclui a probidade) e da impessoalidade administrativas, inscritos no art. 37 da Carta Magna, uma vez que é titular dos princípios e regras que regem a atividade de seus agentes públicos (amplamente definidos no art. 2o) é a entidade que teve o seu interesse violado pelo ato de improbidade administrativa.[8]
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Andrade Nery utilizando-se de interpretação sistemática do ordenamento jurídico, entendem que “para a correta solução dos problemas processuais decorrentes da tutela jurisdicional dos direitos difusos e coletivos, não se pode raciocinar com o instituto do interesse processual, como se estivéssemos diante de tutela meramente individual. Assim, o Estado de São Paulo, legitimado que está pela norma comentada, tem, ipso facto, interesse processual em ajuizar ACP no Amazonas, para tutela dos direitos difusos”.[9]
Salientamos também o entendimento de Helly Lopes Meirelles:
Daí se verifica que o autor da ação de improbidade será, via de regra, o Ministério público (na qualidade de substituto processual, em virtude de suas funções institucionais), ou a própria pessoa jurídica lesada (qualquer uma das listadas no art. 1o, conforme for o caso, tais como a União, um Estado, um Município ou uma empresa da Administração indireta ou fundacional). É o que consta expressamente da lei, inclusive o caput do art. 17. A propositura da ação por um não impede a iniciativa do outro, como já decidiu o plenário do STF. Os réus serão, normalmente, os agentes públicos responsáveis pela prática do ato de improbidade.[10]
A decisão citada pelo doutrinador é a seguinte:
CONSTITUCIONAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA PROTEÇÃO DO PATRIMÔNIO PÚBLICO. ART. 129, III, DA CF. Legitimação extraordinária conferida ao órgão pelo dispositivo constitucional em referência, hipótese em que age como substituto processual de toda a coletividade e, conseqüentemente, na defesa de autêntico interesse difuso, habilitação que, de resto, não impede a iniciativa do próprio ente público na defesa de seu patrimônio, caso em que o Ministério Público intervirá como fiscal da lei, pena de nulidade da ação (art. 17, § 4º, da Lei nº 8.429/92). Recurso não conhecido. (RE 208.790-4. Rel. Min. Ilmar Galvão. DJ 15.12.2000)
Cumpre salientar que “tendo em vista o caráter do interesse jurídico tutelado (preservação da probidade administrativa) e, ainda, a natureza das normas veiculadas, de nítido caráter restritivo de direitos, o Ministério Público ou a entidade interessada não têm disponibilidade para ingressar com a ação de improbidade, disposição que se prolonga com a proibição de transação ou acordo”.[11]
CONCLUSÃO
Com a edição da Lei no 11.448/07, não restaram dúvidas quanto a inexigência do requisito “pertinência temática” para a propositura de ação civil pública pelos entes federados. No entanto, a despeito da ação de improbidade administrativa ser uma espécie de ação civil pública, é estabelecida a comprovação do interesse dos entes federativos para atuar como autor da demanda.
Referências
Didier Jr. Fredie. Direito Processual Civil – Tutela Jurisdicional Individual e Coletiva. Vol. I. 5ª ed. Juspodivm. Salvador. 2005
Dinamarco, Pedro Rangel. Ação Civil Pública. Saraiva. 2001.
Garcia, Emerson; Alves, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Lumen Juris. 2002
Martins Júnior, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 2ª ed. Saraiva. 2002.
Mazzilli, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. Saraiva. São Paulo. 2002.
Meirelles, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 27ª ed. Malheiros. 2004
Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. 11a Ed. Atlas. 2002.
Nery Jr, Nelson; Andrade Nery, Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado. RT. 10ª ed. São Paulo
[1] Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. 11a Ed. Atlas. 2002. p. 615
[2] Dinamarco, Pedro Rangel. Ação Civil Pública. Saraiva. 2001. p. 244
[3] Moraes, Alexandre de. op. cit. p. 615/616
[4] Mazzilli, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. Saraiva. São Paulo. 2002. P. 269
[5] Dinamarco, Pedro Rangel. op. cit. p. 257
[6] Didier Jr. Fredie. Direito Processual Civil – Tutela Jurisdicional Individual e Coletiva. Vol. I. 5ª ed. Juspodivm. Salvador. 2005. pp 195/196.
[7] Garcia, Emerson; Alves, Rogério Pacheco. Improbidade Administrativa. Lumen Juris. 2002. p. 544/545
[8] Martins Júnior, Wallace Paiva. Probidade Administrativa. 2ª ed. Saraiva. 2002. p. 360
[9] Nery Jr, Nelson; Andrade Nery, Rosa Maria. Código de Processo Civil Comentado. RT. 10ª ed. São Paulo. p. 1.137
[10] Meirelles, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 27ª ed. Malheiros. 2004. p. 216/217.
[11] Figueiredo, Marcelo. Probidade Administrativa. 5ª ed. Malheiros. 2000. p 215
Procurador Federal.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: SAMPAIO, Ricardo Ramos. O requisito da pertinência temática nas ações civis públicas propostas pelos entes federativos Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 30 jun 2014, 04:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40008/o-requisito-da-pertinencia-tematica-nas-acoes-civis-publicas-propostas-pelos-entes-federativos. Acesso em: 23 dez 2024.
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