RESUMO: o artigo identifica e analisa os institutos de Direito Agrário presentes na Lei nº 11.259, de 25 de junho de 2009, que dispõe sobre a regularização fundiária nas ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal.
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Conceito de regularização fundiária; 3. Institutos de Direito Agrário na Lei nº 11.952/09; 3.1 Terras devolutas; 3.2 Cultura efetiva; 3.3 Posse agrária; 3.4 Propriedade familiar; 3.5 Latifúndio; 3.6 Função social da propriedade; 4. Conclusão.
1. Introdução
O Direito Agrário tem diversos institutos que o caracterizam como ramo autônomo da ciência jurídica, tais como posse agrária, função social da propriedade, latifúndio e terras devolutas.
A Lei nº 11.952, de 25 de junho de 2009, que dispõe sobre a regularização fundiária nas ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, no âmbito da Amazônia Legal, incorporou alguns institutos agrários.
O objetivo do presente trabalho é identificar nesse diploma legal tais institutos, observando se adotou os critérios didático-científicos desse ramo jurídico, e tecer comentários, com fundamento na melhor doutrina agrarista.
2. Conceito de regularização fundiária
A Lei nº 11.952/09 não definiu o conceito de regularização fundiária, conforme se verifica no seu artigo 2º.
Na legislação agrária, a Lei nº 4.504/64, o Estatuto da Terra, definiu seus principais contornos:
Art. 97. Quanto aos legítimos possuidores de terras devolutas federais, observar-se-á o seguinte:
I - o Instituto Brasileiro de Reforma Agrária promoverá a discriminação das áreas ocupadas por posseiros, para a progressiva regularização de suas condições de uso e posse da terra, providenciando, nos casos e condições previstos nesta Lei, a emissão dos títulos de domínio;
II - todo o trabalhador agrícola que, à data da presente Lei, tiver ocupado, por um ano, terras devolutas, terá preferência para adquirir um lote da dimensão do módulo de propriedade rural, que for estabelecido para a região, obedecidas as prescrições da lei.
Contudo, o conceito mais adotado e divulgado na doutrina agrarista, é o formulado por L. Lima Stefanin[[1]]:
A regularização fundiária é um modo derivado, oneroso, e preferencial de aquisição de terras públicas, mediante procedimento típico do órgão executivo em benefícios daqueles que, achando-se na posse dessas terras nas formas e sujeições da lei, fazem por provocar a liberalidade do Poder Público de alienar-lhes as terras apossadas, independente de concorrência pública.
A seguir, o autor discorre sobre os pontos básicos desse instituto[[2]].
1.º. É um modo derivado, porque a relação jurídica de que passa a ser titular não exsurge como um direito novo, sem vinculação com qualquer predecessor, mas configura-se diretamente ligado ao Estado, proprietário anterior, donde dá-se início a cadeia dominial.
2.º. É um modo oneroso de aquisição porque o beneficiário paga o valor da terra nua (vtn), custas e emolumentos devidos ao Poder Público regularizante. Configura-se uma autêntica compra e venda.
3.º. É uma aquisição preferencial, pois o Poder Público defere uma preempção ao possuidor na compra do lote de terras públicas que cultiva (o agricultor e sua família).
4.º. A regularização de posse (titulação dominial) é atingida através de processo administrativo típico, onde são analisadas as possibilidades jurídicas do pedido, os critérios normativos do órgão regularizador, etc.
5.º. Configura-se uma indiscutível liberalidade do Poder Público em alienar ou não a área, por deter o possuidor, em relação ao Estado, o proprietário, uma mera preferência à aquisição.
6.º. A alienação é feita independentemente de concorrência pública. A venda feita através da concorrência e materializada pela adjudicação facultativa do ocupante não é uma típica regularização fundiária.
Por fim, Ismael Marinho Falcão afirma que todo aquele que for titular de imóvel rural a justo título e boa-fé, fará jus ao processo administrativo de regularização fundiária, em que pese o ato de regularização se constitua em liberalidade da União e dos Estados-Membros, que o atenderão na medida em que o pretendente atenda aos requisitos absolutamente da cultura efetiva e da morada habitual e, ainda, ocupe área não excedente dos permissivos legais bem como, de parte do ente público, atenda à oportunidade e conveniência da administração[[3]].
3. Institutos de Direito Agrário na Lei nº 11.952/09
3.1 Terras Devolutas
Os artigos 3º e 4º estabeleceram o âmbito territorial de aplicabilidade da Lei nº 11.952/09:
Art. 3º São passíveis de regularização fundiária nos termos desta Lei as ocupações incidentes em terras:
I - discriminadas, arrecadadas e registradas em nome da União com base no art. 1º do Decreto-Lei nº 1.164, de 1º de abril de 1971;
II - abrangidas pelas exceções dispostas no parágrafo único do art. 1º do Decreto-Lei nº 2.375, de 24 de novembro de 1987;
III - remanescentes de núcleos de colonização ou de projetos de reforma agrária que tiverem perdido a vocação agrícola e se destinem à utilização urbana;
IV - devolutas localizadas em faixa de fronteira; ou
V - registradas em nome do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - Incra, ou por ele administradas.
Art. 4º Não serão passíveis de alienação ou concessão de direito real de uso, nos termos desta Lei, as ocupações que recaiam sobre áreas:
I - reservadas à administração militar federal e a outras finalidades de utilidade pública ou de interesse social a cargo da União;
II - tradicionalmente ocupadas por população indígena;
III - de florestas públicas, nos termos da Lei nº 11.284, de 2 de março de 2006, de unidades de conservação ou que sejam objeto de processo administrativo voltado à criação de unidades de conservação, conforme regulamento; ou
IV - que contenham acessões ou benfeitorias federais.
Denota-se, analisando os dispositivos acima transcritos, que somente podem ser regularizadas as terras devolutas, ou seja, aquelas nas quais o Poder Público não tenha destinado à promoção de alguma finalidade essencial.
Os critérios normativos do órgão regulador estão bem expressos e redigidos nos artigos 3º e 4º, da Lei nº 11.952/09, não deixando, pois, margem a qualquer interpretação em sentido contrário: as áreas afetadas e consagradas às terras indígenas, florestas públicas, unidades de conservação, territórios quilombolas e projetos de assentamento não passíveis de regularização fundiária.
Hely Lopes Meirelles assim define terras devolutas[[4]]:
Terras devolutas são todas aquelas que, pertencentes ao domínio público de qualquer das entidades estatais, não se acham utilizadas pelo Poder Público, nem destinadas a fins administrativos específicos. São bens públicos patrimoniais ainda não utilizados pelos respectivos proprietários.
Da mesma forma, os artigos 97 e 99, do Estatuto da Terra facultam aos legítimos possuidores de terras devolutas federais a regularização de suas posses mediante a expedição de um título de domínio obtido mediante regular processo administrativo.
Na doutrina, Getúlio Targino Lima versa que constitui elemento exigido para a regularização fundiária de imóvel rural a terra deve ser pública devoluta[[5]].
3.2 Cultura Efetiva
Para regularizar sua posse no imóvel rural, a legislação de regência exige que o ocupante pratique cultura efetiva (art. 5º, III, Lei 11.952/09)
O artigo 2º, V, da Lei nº 11.952/09 definiu cultura efetiva como a exploração agropecuária, agroindustrial, extrativa, florestal, pesqueira ou outra atividade similar, mantida no imóvel rural e com o objetivo de prover subsistência dos ocupantes, por meio da produção e da geração de renda.
E, consoante L. Lima Stefanini, o requisito da cultura efetiva é tão importante que os processos relativos a legitimações, regularizações, bem como revalidação de títulos, acordos e composições administrativas, todos estes procedimentos e expedientes têm por base a cultura e a exploração do solo[[6]]. Assim, o requisito da cultura efetiva, exigida para fins de regularização, tem como pressuposto a área do imóvel, conforme observa L. Lima Stefanini[[7]].
Daí, conclui-se que a área a ser regularizada é aquela que o ocupante e sua família praticam cultura efetiva.
3.3 Posse Agrária
É condição sine qua non para a regularização fundiária que os interessados estejam exercendo a posse agrária sobre determinado imóvel rural, ou seja, para regularização fundiária é indispensável à comprovação da posse agrária.
A posse agrária se traduz no exercício de ocupação e exploração direta, mansa e pacífica (art. 5º, IV, Lei 11.952/09).
Antonio José Mattos Neto conceitua posse agrária como o exercício direto, contínuo, racional e pacífico de atividades agrárias (propriamente ditas, vinculadas ou complementares, e conexas) desempenhadas em gleba de terra rural capaz de dar condições suficientes e necessárias ao seu uso econômico, gerando ao possuidor um poder jurídico de natureza real definitiva com amplas repercussões no Direito, tendo em vista o seu progresso e bem estar econômico e social[[8]].
Na posse agrária exige-se o trabalho sobre a terra; a exploração econômica do bem; o exercício de atividade agrária. A exploração econômica da terra é o meio através do qual se consagra a posse agrária, como elemento determinante da propriedade agrária a quem trabalha a terra[[9]].
Assim, como bem observa Getúlio Targino Lima[[10]], gera a posse agrária considerável elenco de efeitos. Em se tratando de bem imóvel, tais resultados mais evidentes estão intimamente ligados à futura aquisição do instrumento formal da propriedade (título).
A seguir, o autor afirma que a posse agrária sobre bem imóvel gera diversas consequências, dentre as quais se destacam: o direito à regularização[[11]]. Por conseguinte, “aquele que deixa de exercer a atividade agrária, caracterizadora do instituto jurídico agrário, perde a posse agrária – perde assim, a proteção do Direito Agrário”[[12]].
A negligência no exercício da atividade agrária, ou mesmo o exercício de atividade predatória, em imóvel rural, são atos contrários aos princípios de Direito Agrário; logo, não merecem a sua proteção, sendo causa de perda da posse agrária[[13]].
Portanto, o exercício da posse agrária, ou seja, o exercício de ocupação e exploração direta, mansa e pacífica (art. 5º, IV, Lei 11.952/09), com a exploração econômica e atividade agrária no imóvel rural possibilita a titulação da área mediante processo de regularização fundiária.
3.4 Propriedade Familiar
Para os efeitos da Lei nº 11.952/09 (art. 2º, I e III), entende-se por:
I - ocupação direta: aquela exercida pelo ocupante e sua família;
(...)
III - exploração direta: atividade econômica exercida em imóvel rural, praticada diretamente pelo ocupante com o auxílio de seus familiares, ou com a ajuda de terceiros, ainda que assalariados;
Nessa linha, o conceito de propriedade familiar é conferido pelo artigo 4º, II, do Estatuto da Terra:
Art. 4º Para os efeitos desta Lei, definem-se:
II - "Propriedade Familiar", o imóvel rural que, direta e pessoalmente explorado pelo agricultor e sua família, lhes absorva toda a força de trabalho, garantindo-lhes a subsistência e o progresso social e econômico, com área máxima fixada para cada região e tipo de exploração, e eventualmente trabalho com a ajuda de terceiros;
Da leitura desses dispositivos legais, extrai-se a interpretação de que será expedido um único título de domínio relativo ao imóvel rural explorado economicamente pelo conjunto familiar, cuja área a ser regularizada não supere os limites estabelecidos pela legislação de regência.
Compreende-se, portanto, que interessado para fins de regularização fundiária são o ocupante e seu conjunto familiar.
L. Lima Stefanini, ao discorrer sobre os pontos básicos da regularização fundiária, asseverou que o possuidor ao qual o Poder Público defere a aquisição preferencial na compra do lote de terras públicas que cultiva é o agricultor e sua família[[14]].
Alfredo Abinagem[[15]], Oswaldo Opitz e Silvia Opitz[[16]] não destoam desse entendimento.
Por conseguinte, fica vedado subdividir a posse exercida pelo mesmo núcleo familiar para multiplicar a área regularizanda, em evidente burla aos princípios e normas legais que regem o processo de regularização fundiária.
Como conclusão deste item, impõe observar que o regime de economia familiar pressupõe trabalho conjugado em área de extensão única.
3.5 Latifúndio
Os artigos 6º, §1º, da Lei n. 11.952/09 e 17,§2º-A, II e §2º-B, II, da Lei n. 8.666/93 limitam a área a ser objeto de regularização fundiária a 15 (quinze) módulos fiscais, não excedentes a 1.500ha.
Ao fixar o limite máximo da área a ser regularizada, a Lei de Regularização Fundiária buscou evitar que as posses de terras públicas se transmudassem em verdadeiros latifúndios.
O imóvel rural mantido inexplorado em relação às possibilidades físicas, econômicas e sociais do meio, com fins especulativos, ou seja, deficiente ou inadequadamente explorado configura latifúndio (art. 4º, V, b, Lei n. 4.504/64).
Essa espécie de imóvel rural, tipicamente subutilizada em relação ao seu verdadeiro potencial, é fortemente nociva à pacificação das relações sociais no campo, atravancando o progresso de toda a sociedade. Fere frontalmente o princípio constitucional da função social da propriedade agrária e deve, portanto, na visão estatutária, ser extinta através de medidas coercitivas e punitivas[[17]].
No caso de latifúndio por inexploração, ocorre um verdadeiro crime contra a humanidade, pois é inadmissível que enquanto o mundo precisa de alimentos, determinadas áreas de terras sejam mantidas ociosas e improdutivas apenas com o fim de especulação imobiliária, como reserva de valor. Observa-se, que as consequências maiores do latifúndio se dá pelo obstáculo que cria para os novos homens do campo tenham acesso à terra, impedindo, assim, a divisão racional da terra, daí, que impedirá, também, o desenvolvimento[[18]].
3.6 Função Social da Propriedade
A Lei nº 11.952/09 garantiu expressamente o cumprimento da função social da propriedade (art. 188, CF) pelo imóvel rural regularizando ao dispor que no título de domínio e/ou termo de concessão de direito real de uso deve conter cláusulas sob condição resolutiva que determinem o aproveitamento racional e adequado da área, a utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente, por fim, a observância das disposições que regulam as relações de trabalho:
Art. 15. O título de domínio ou, no caso previsto no § 4o do art. 6o, o termo de concessão de direito real de uso deverão conter, entre outras, cláusulas sob condição resolutiva pelo prazo de 10 (dez) anos, que determinem:
I - o aproveitamento racional e adequado da área;
II - a averbação da reserva legal, incluída a possibilidade de compensação na forma de legislação ambiental;
III - a identificação das áreas de preservação permanente e, quando couber, o compromisso para sua recuperação na forma da legislação vigente;
IV - a observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e
Deve-se entender que a função social é um limite encontrado pelo legislador para delinear a propriedade, em obediência ao princípio da prevalência do interesse público sobre o interesse particular. Tal princípio vem determinar que sempre que houver um interesse público em conflito com um interesse particular, aquele deve prevalecer, porque representa a vontade da coletividade, que não pode ser submetida à vontade de um indivíduo apenas[[19]].
Importante destacar que a necessidade do cumprimento da função social da propriedade, ao contrário das Constituições anteriores não está mais apenas no capítulo referente à ordem econômica, mas sim como um direito e garantia do homem, direito básico do ser humano, cláusula pétrea da Carta de 1988, isto é, imutável. Portanto, o direito ao cumprimento da função social da propriedade foi erigido a um direito fundamental do povo brasileiro[[20]].
A supremacia se verifica na necessidade de produção de riquezas e de redução das desigualdades sociais, que são um interesse coletivo, sobre o direito de propriedade, que é um direito privado[[21]].
O artigo 18, da Lei nº 11.952/09 versa que o descumprimento das condições resolutivas pelo titulado ou pelo terceiro adquirente implica rescisão do título de domínio ou do termo de concessão, com a consequente reversão da área em favor da União.
Dessa forma, não há que se falar em posse, mas apenas em detenção, haja vista a forma irregular que o bem público vem sendo ocupado. De fato, a utilização de bem público sem instrumento autorizativo configura mera detenção (art. 1.198, CC).
Registre-se, ainda, que esses pretensos posseiros não podem receber tal qualificação jurídica, em razão de serem meros detentores de bens públicos, uma vez que imóveis públicos não podem ser objeto de usucapião (art. 183, §3º, CF).
Sobre o tema, a jurisprudência iterativa do Superior Tribunal de Justiça:
BEM PÚBLICO. OCUPAÇÃO INDEVIDA. DIREITO DE RETENÇÃO POR BENFEITORIAS. PRECEDENTES DA CORTE.
1. Configurada a ocupação indevida de bem público, não há falar em posse, mas em mera detenção, de natureza precária, o que afasta o direito de retenção por benfeitorias.
2. Recurso especial conhecido e provido.
(REsp 699.374/DF, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Terceira Turma, julgado em 22/03/2007, DJ 18/06/2007 p. 257);
Posse eivada de vício não merece a tutela jurisdicional, muito menos posse injusta sobre bem imóvel público federal (artigo 1.200, Código Civil).
Ademais, os bens públicos estão sujeitos ao regime especial de anuência ou consentimento para sua utilização. Vale dizer, para que a ocupação de um imóvel rural pertencente à Autarquia Agrária seja legitimamente reconhecida há de ter seu assentimento, é o que se depreende do artigo 71 do Decreto-Lei n. 9.760/46:
Art. 71. O ocupante de imóvel da União, sem assentimento desta, poderá ser sumariamente despejado e perderá, sem direito a qualquer indenização, tudo quanto haja incorporado ao solo, ficando ainda sujeito ao disposto nos arts. 513 515 e 517 do Código Civil.
Nesse sentido, Odete Medauar leciona que o uso privativo do bem por particular depende de consentimento da Administração, que é o título legal para esse uso e que a ausência de consentimento possibilita medidas da Administração visando reaver o bem[[22]].
É importante observar o item 4 da ementa da Apelação Cível n. 2000.01.00.075664-8/RO, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, na qual restou consignado que: o imóvel sempre será restituído ao Poder Público, de quem quer que o detenha, restando apenas saber se, em alguns casos, quando muito, haverá direito à indenização.
Destaca-se do voto condutor do Relator Juiz Federal César Augusto Bearsi a seguinte passagem:
Neste processo, a boa ou má-fé são inócuas, assim como a lentidão do INCRA em tomar providências, simplesmente porque os imóveis públicos são IMPRESCRITIVEIS e a qualquer momento podem e devem ser retomados das mãos do particular que os detém.
Pode-se discutir direito a ser indenizado, na via processual correta, mas, provada a propriedade da União, inconteste neste caso, não há possibilidade de o imóvel permanecer das mãos do particular, mesmo que exerça a posse há séculos e ainda o Poder Público tenha sido desidioso em retomá-la.
O imóvel é público e para a União, via INCRA, deve retornar, até que possa ter uma destinação de interesse público (princípio da supremacia do interesse público sobre o privado), única que se coaduna com o imóvel deste tipo.
A posse que legitima o procedimento de regularização fundiária é a que se encontra gravada com justo título e boa-fé, nos termos da alínea e do artigo 5º do Decreto-lei n. 9.760/46 e artigo 97, da Lei n. 4.504/64.
Justo título é todo ato escrito, público ou privado, revestido de todas as formalidades legais extrínsecas, e transcrito no respectivo registro, apto para transferir o domínio da coisa. É qualquer ato jurídico atributivo da propriedade. Todo modo legítimo de adquirir a coisa ou o direito, independentemente do direito do transmitente[[23]].
Apenas o título de domínio outorgado pela União, após o competente processo de regularização fundiária, ao qual se verificará se o interessado atendeu todos os requisitos da legislação de regência, é o instrumento jurídico apto a conferir tal qualificação jurídica à ocupação.
4. Conclusão
A Lei nº 11.952/09 incorporou os institutos agrários das terras devolutas, cultura efetiva, posse agrária, propriedade familiar, latifúndio e função social da propriedade.
A dimensão territorial da regularização fundiária compreende somente as terras devolutas, as quais não foram destinadas e consagradas ás terras indígenas, florestas públicas unidades de conservação, territórios quilombolas e projetos de assentamento não passíveis de regularização fundiária (art. 3º e 4º).
A cultura efetiva tem relevo nos processos de regularizações fundiárias em razão da exploração do solo, por meio da produção e da geração de renda, visando o progresso econômico social dos posseiros.
É requisito essencial para a regularização fundiária que os interessados estejam exercendo a posse agrária sobre o imóvel rural. A posse agrária se traduz no exercício de ocupação e exploração direta, mansa e pacífica (art. 5º, IV, Lei 11.952/09). O exercício da posse agrária gera o direito à regularização fundiária.
Conjugando-se sistematicamente o artigo 2º, I e III, da Lei nº 11.952/09 com o artigo 4º, II e III, do Estatuto da Terra, extrai-se que será expedido um único título de domínio relativo ao imóvel rural explorado economicamente pelo conjunto familiar. O regime de economia familiar pressupõe trabalho conjunto em imóvel de extensão única. Compreende-se, portanto, que interessado para fins de regularização fundiária são o ocupante e seu conjunto familiar.
Ao delimitar o máximo da área a ser regularizada (art. 6º, §1º), a Lei nº 11.952/09 buscou evitar que as posses de terras públicas se transformassem em verdadeiros latifúndios. Esse tipo de imóvel rural é nocivo à pacificação das relações sociais no campo, em contrariedade ao princípio constitucional da função social da propriedade, devendo ser extinto por intermédio de medidas coercitivas e punitivas.
Por último, a função social da propriedade ao estatuir que no título de domínio e/ou termo de concessão de direito real de uso deve conter cláusulas sob condição resolutiva que determinem o aproveitamento racional e adequado da área, a utilização adequada dos recursos naturais e preservação do meio ambiente, por fim, a observância das disposições que regulam as relações de trabalho (art. 15).
Como remate, sublinhe-se que o descumprimento das condições resolutivas pelo interessado implica rescisão do título de domínio ou do termo de concessão, com a consequente reversão do imóvel rural em favor da União. Os bens públicos estão sujeitos ao regime especial de anuência ou consentimento para sua utilização, nos termos do artigo 71 do Decreto-Lei n. 9.760/46.
Nessa hipótese, o interessado deixa condição de legítimo posseiro para detentor, porquanto utiliza bem público sem instrumento autorizativo, e o imóvel público não pode ser objeto de usucapião (art. 1.198, CC; e art. 183, §3º, CF).
Apenas o título de domínio outorgado pela União, após o procedimento traçado na Lei nº 11.952/09, no qual se verificará se o interessado atendeu todos os requisitos da legislação de regência, é o instrumento jurídico apto a conferir qualificação jurídica de legítima à ocupação.
REFERÊNCIAS:
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LIMA, Getúlio Targino. A posse agrária sobre bem imóvel: implicações no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1992.
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MATTOS NETO, Antonio José. A posse agrária e suas implicações jurídicas no Brasil. Belém: CEJUP, 1988.
MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 253.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
MIRANDA, A. Gursen de. O instituto jurídico da posse agrária. Belém: CEJUP, 1992.
_____________________. Teoria de Direito Agrário. Belém: CEJUP, 1989.
OPITZ, Oswaldo e OPITZ, Silvia. Princípios de Direito Agrário. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1970.
RESEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – agrariedade, ruralidade e rusticidade. Curitiba: Juruá, 2007. p. 69.
STEFANINI, L. Lima. A propriedade no direito agrário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1978.
VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao Direito à Reforma Agrária. Leme: Led – Editora de Direito, 1998.
NOTAS:
[[1]] STEFANINI, L. Lima. A propriedade no direito agrário. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1978. p. 159.
[[3]] FALCÃO, Ismael Marinho. Direito Agrário brasileiro: doutrina, jurisprudência, legislação e prática. Bauru: EDIPRO, 1995. p. 119.
[[4]] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 555.
[[5]] LIMA, Getúlio Targino. A posse agrária sobre bem imóvel: implicações no direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1992. p. 102/103.
[[8]] MATTOS NETO, Antonio José. A posse agrária e suas implicações jurídicas no Brasil. Belém: CEJUP, 1988. p. 68.
[[9]] MIRANDA, A. Gursen de. O instituto jurídico da posse agrária. Belém: CEJUP, 1992. p. 110 e 113.
[[15]] ABINAGEM, Alfredo. A família no direito agrário. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. p. 127 e 134.
[[16]] OPITZ, Oswaldo e OPITZ, Silvia. Princípios de Direito Agrário. Rio de Janeiro: Editor Borsoi, 1970. p. 80/87.
[[17]] RESEK, Gustavo Elias Kallás. Imóvel Agrário – agrariedade, ruralidade e rusticidade. Curitiba: Juruá, 2007. p. 69.
[[19]] VARELLA, Marcelo Dias. Introdução ao Direito à Reforma Agrária. Leme: Led – Editora de Direito, 1998. p. 217.
[[21]] MARQUESI, Roberto Wagner. Direitos reais agrários & função social. 1 ed. (2001). 4 reimpr. Curitiba: Juruá, 2008. p. 156.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União. Pós-graduado em Direito Público e Direito do Trabalho. Ex-advogado da Caixa Econômica Federal. Ex-advogado da Assembleia Legislativa do Estado do Maranhão. Ex-analista processual do Ministério Público da União. Ex-conciliador federal. Ex-advogado privado.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ERICEIRA, Cássio Marcelo Arruda. Os institutos de direito agrário na Lei nº 11.259/09 Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 05 jul 2014, 06:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40070/os-institutos-de-direito-agrario-na-lei-no-11-259-09. Acesso em: 23 dez 2024.
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