RESUMO: O presente artigo terá como escopo explicar a teoria da abstrativização do controle difuso, para, então, aferir a possibilidade de se implementar tal tese no ordenamento jurídico pátrio. Para tanto, será feita uma exposição breve sobre os modelos de controle de constitucionalidade, podendo ser concentrado ou difuso, elencando suas características básicas e os efeitos das decisões proferidas pelo Poder Judiciário em cada caso. Após, por ser este o controle sobre o qual há maior necessidade de se aprofundar, vez que a referida teoria busca modificar o entendimento da teoria tradicional, serão declinadas as hipóteses em que o Supremo Tribunal Federal poderá se deparar com o controle de constitucionalidade difuso, ou incidental. Superadas tais questões propedêuticas, será aprofundado o estudo da teoria da abstrativização do controle difuso, no qual se evidenciarão análises doutrinárias e o entendimento do STF, a fim de evidenciar que a pertinência de seus fundamentos não é suficiente para a sua aplicação, porquanto desequilibrar a harmonia entre os poderes.
Palavras-chave: abstrativização; controle; Supremo.
1.Introdução
A Constituição Federal de 1988, lei fundamental do Estado brasileiro, deve ser respeitada por todas as demais normas que permeiam o sistema jurídico pátrio. Para tanto, mecanismos são necessários para que se possa aferir a compatibilidade ou não de determinado ato jurídico e a Carta Política, sendo um deles o controle de constitucionalidade.
Este, por sua vez, pode ser efetuado de formas diversas, variando desde o momento a ser efetuado o controle (em face de um projeto de lei ou em face de uma lei propriamente dita), até o órgão que efetuará o controle (a exemplo do Poder Judiciário).
Em regra, o controle efetuado pelo Poder Jurisdicional é em face de um ato normativo já em vigor, podendo ser de forma concentrada ou de forma difusa.
No controle concentrado, por via principal ou abstrato (em regra tais nomenclaturas são utilizadas como sinônimas no Brasil) tem-se que o Poder Judiciário, mais especificamente o Supremo Tribunal Federal, será provocado numa ação própria, cujo objetivo único seja o de aferir se determinada norma está em desacordo ou não com a Constituição Federal, prescindindo de um caso em concreto, ou seja, uma averiguação em tese da constitucionalidade ou não de algum dispositivo. Os efeitos desse controle de constitucionalidade, em regra, são erga omnes, ex tunc e vinculante.
Por sua vez, no controle difuso, por via incidental ou concreto (tais nomenclaturas também são, em regra, utilizadas como equivalentes no Brasil) tem-se o modelo de controle que pode ser efetuado por qualquer órgão do Poder Judiciário no âmbito de sua respectiva competência, em uma ação na qual, embora se averigue a constitucionalidade ou não de um dispositivo infraconstitucional, o objetivo principal seja resolver um litígio, ou seja, a análise da constitucionalidade decorre de um caso concreto. Os efeitos desse controle de constitucionalidade, em regra, são inter partes, ex tunc e não vinculante.
Entretanto, caso o STF declare inconstitucional um dispositivo normativo por decisão definitiva num caso concreto (havendo efeito inter partes), é possível que o Senado Federal, com fulcro no art. 52, X, da CF, amplie a todos (erga omnes) os efeitos dessa decisão proferida no controle difuso, bastando que edite resolução suspendendo a execução, no todo ou em parte, do referido dispositivo.
Em que pesem tais considerações, alguns doutrinadores, a exemplo do Ministro Gilmar Mendes, já se manifestaram no sentido de que a decisão definitiva proferida pelo STF no controle difuso teria efeitos erga omnes, independentemente de resolução do Senado (a este caberia apenas publicar essa decisão). Tal teoria foi alcunhada de “teoria da abstrativização do controle difuso”, eis que pretende conferir à decisão exarada no controle difuso os mesmos efeitos da decisão prolatada no controle abstrato.
Os que se filiam a esse entendimento fundamentam que a literalidade do art. 52, X, da CF, não deve mais subsistir, tendo em vista a ocorrência da mutação constitucional sobre esse dispositivo: diante de diversas inovações legislativas, a exemplo da criação do próprio controle abstrato em 1965 (com uma ampliação significativa em 1988), ocorreu uma mudança na situação de fato (a decisão definitiva do STF que declare inconstitucional um dispositivo legal num caso concreto não deve mais se limitar às partes), acarretando a alteração no sentido da norma constitucional (como a aludida decisão, para quem perfilha esse entendimento, teria efeito erga omnes, ao Senado Federal caberia apenas publicá-la, e não mais suspender a execução de tal norma).
Alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal se manifestaram expressamente sobre o tema na reclamação 4335/AC. Será evidenciado, porém, que a Excelsa Corte, embora perceba o anacronismo do referido dispositivo, não perfilha o entendimento da teoria da abstrativização do controle difuso. Isso porque seria uma mutação inconstitucional invadir a esfera de competência de outro poder por meio da hermenêutica constitucional, havendo necessidade, portanto, para a modificação do que dispõe o inciso X, art. 52, da Carta Política, a atuação Poder Constituinte Derivado.
2. Breve Revisão Teórica
2.1Controle de Constitucionalidade
É cediço que toda e qualquer norma infraconstitucional deve estar em conformidade com a Constituição Federal. Essa supremacia da Constituição, nos ensinamentos do ilustre doutrinador Luís Roberto Barroso (2012, p. 24),
“revela sua posição hierárquica mais elevada dentro do sistema, que se estrutura de forma escalonada, em diferentes níveis. É ela o fundamento de validade de todas as demais normas. Por força dessa supremacia, nenhuma lei ou ato normativo — na verdade, nenhum ato jurídico — poderá subsistir validamente se estiver em desconformidade com a Constituição”.
Nesse sentido, caso determinado dispositivo da legislação ordinária esteja em dissonância com a Carta Política, deve haver mecanismos que possibilitem expungir do ordenamento jurídico o referido ato jurídico, eis que desrespeita seu fundamento de validade. Um desses mecanismos, segundo o mesmo autor (2012, p. 24), é o controle de constitucionalidade, que é “provavelmente o mais importante, consistindo na verificação da compatibilidade entre uma lei e qualquer ato normativo infraconstitucional e a Constituição”.
Nesse momento, oportuna a transcrição da lição de Gilmar Mendes e Paulo Branco (2012, 71-72):
A concepção da Constituição como norma jurídica suprema criou as condições necessárias para que se admitisse aos juízes a função de controlar a legitimidade constitucional das leis. Somente há supremacia da Constituição quando se extraem consequências concretas para as normas com pretensão de validez opostas à Carta — isto é, quando se pode expulsar do ordenamento jurídico a norma editada em contradição com a Lei Maior. O controle jurisdicional de constitucionalidade foi o instrumento adotado para sancionar uma plena e efetiva supremacia da Constituição.
Percebe-se que só há que se falar em controle de constitucionalidade se há a supremacia da Constituição sobre as demais normas. Além disso, outra premissa básica para que se possa existir o referido controle é que a Constituição seja do tipo rígida, em que, segundo Alexandre de Moraes (2009, p. 10), as normas constitucionais só possam ser “alteradas por um processo legislativo mais solene e dificultoso do que o existente para a edição das demais espécies normativas (por exemplo: CF/88 – art. 60)”.
É nesse diapasão que Luís Roberto Barroso (2012, p. 25), de forma lapidar, ao tratar da rigidez constitucional, dispõe:
Se assim não fosse, inexistiria distinção formal entre a espécie normativa objeto de controle e aquela em face da qual se dá o controle. Se as leis infraconstitucionais fossem criadas da mesma maneira que as normas constitucionais, em caso de contrariedade ocorreria a revogação do ato anterior e não a inconstitucionalidade.
O controle de constitucionalidade, segundo o doutrinador Pedro Lenza (2013, p. 230), pode ser realizado em momentos distintos: ou antes de o “projeto de lei virar lei (controle prévio ou preventivo), impedindo a inserção no sistema normativo de normas que padeçam de vícios, ou já sobre a lei, geradora de efeitos potenciais ou efetivos (controle posterior ou repressivo)”.
Neste caso, em que o controle se dá sobre uma lei, segundo este mesmo autor (2013, p. 233/234), poderá ser político (“o controle é exercido por um órgão distinto dos três poderes”), jurisdicional (“realizado pelo Poder Judiciário, tanto através de um órgão (controle concentrado) como por qualquer juiz ou tribunal (controle difuso)”) ou híbrido (“mistura dos outros dois sistemas acima noticiados”). Ao presente estudo, porém, caberá a análise tão somente do controle posterior ou repressivo jurisdicional (em que pese haja algumas exceções em que o Poder Legislativo e o Poder Executivo possam exercê-lo).
2.1.1 Controle concentrado, por via principal, abstrato
Como visto, o Poder Judiciário pode exercer o controle de constitucionalidade através de um único órgão e, por isso, se diz “concentrado”. No caso do sistema jurídico brasileiro, tal incumbência é do Supremo Tribunal Federal, ao qual, nos termos do art. 102, CF, compete precipuamente a guarda da Constituição.
Tal forma de controle, no sistema judicial brasileiro, segundo Luís Roberto Barroso (2012, p. 62), é associado ao controle por via principal, sendo este denominado dessa forma, uma vez que, na doutrina do mesmo autor (2012, p. 207),
“o juízo de constitucionalidade é o próprio objeto da ação, a questão principal a ser enfrentada: cumpre ao tribunal manifestar-se especificamente acerca da validade de uma lei e, consequentemente, sobre sua permanência ou não no sistema. Simetricamente, se a hipótese for de omissão inconstitucional, o que se declara é a ilegitimidade da não edição da norma”.
Além disso, o controle por via principal, ainda em conformidade com a doutrina de Luís Roberto Barroso (2012, p. 62), “no Brasil, terá normalmente caráter abstrato, consistindo em um pronunciamento em tese”. Em que pese a referida associação entre este controle e o concentrado, o aludido autor (2012, p. 62) ressalta que não se confundem, muito embora decline que, “como regra, há no direito brasileiro coincidência” entre ambos.
Por tais expressões serem utilizadas normalmente como equivalentes, os autores Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2012, p. 819) dispõem:
O controle abstrato de constitucionalidade, exercido em tese, por um tribunal com competência específica e originária (não recursal) para sua realização, sem relação a um caso concreto, é designado por uma série de expressões, no mais das vezes utilizadas como sinônimos: controle concetrado, controle in abstracto, controle direto, controle por via de ação, controle por via principal, controle em tese.
Nesse sentido, quando o presente trabalho referir-se ao modelo de controle realizado numa ação própria, cujo objetivo único seja aferir se determinada norma está em desacordo ou não com a Constituição Federal, prescindindo de um caso em concreto, ou seja, uma averiguação em tese da inconstitucionalidade de algum dispositivo, exercido exclusivamente perante o Supremo Tribunal Federal, os termos “concentrado”, “via principal” e “abstrato” serão tidos como sinônimos.
Exemplos de ação própria que acarreta essa análise pelo STF são a ação direta de inconstitucionalidade, ação direta de constitucionalidade (ADI e ADC, respectivamente, com fundamento no art. 102, I, “a”, CF), ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO, com fulcro no art. 102, § 2º, CF), arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF, por força do art. 102, § 1º, CF).
Ao presente estudo importa saber, ainda, como evidencia Pedro Lenza (2013, p. 296), que “a decisão no controle concentrado produzirá efeitos contra todos, ou seja, erga omnes, e também efeito retroativo, ex tunc, retirando do ordenamento jurídico o ato normativo ou lei incompatível com a Constituição”. Além disso, por força do art. 102, § 2º, CF, nas ADIs e ADCs a decisão definitiva de mérito proferida pelo STF vincula os demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública em geral.
2.1.2 Controle difuso, por via incidental, concreto
Foi evidenciado acima que o controle difuso se dá por qualquer órgão do Poder Judiciário. Isso porque, diferentemente do que ocorre no controle abstrato, em que a questão principal, e única, da ação é aferir se determinada norma se encontra ou não em conformidade com a Constituição Federal, no difuso, ou por via incidental, a averiguação da inconstitucionalidade acaba decorrendo de um caso concreto.
Luís Roberto Barroso (2012, p. 61-62), ao tratar do tema, acentua que o “controle por via incidental – realizado na apreciação de um caso concreto – e o controle difuso – desempenhado por qualquer juiz ou tribunal no exercício regular de sua jurisdição” não se confundem. Em que pese isso, afirma que (2012, p. 61-62), no Brasil, “como regra, eles se superpõem, sendo que desde o início da República o controle incidental é exercido de modo difuso”.
Apesar de este autor afirmar que existe “uma hipótese de controle incidental concentrado” (2012, p. 62), quando o presente trabalho tratar do modelo de controle que pode ser efetuado por qualquer órgão do Poder Judiciário no âmbito de sua respectiva competência, em uma ação na qual, embora se averigue a constitucionalidade ou não de um dispositivo infraconstitucional, o objetivo principal seja resolver um litígio, ou seja, a análise da constitucionalidade decorre de um caso concreto, utilizará tais termos como sinônimos, eis que a referida exceção não será aqui detalhada.
Sendo a regra a coincidência de tais institutos, o controle difuso também é, segundo Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2012, p. 797), denominado de “incidental, incidenter tantum, por via de exceção, por via de defesa, concreto ou indireto”.
Importa ao presente estudo ressaltar, também, que a decisão no controle difuso produz, em regra, efeitos inter partes e ex tunc (é possível também o efeito ex nunc), conforme ensina Pedro Lenza (2013, p.244). Diferentemente do controle abstrato, por tal julgamento ser proferido num caso concreto, com efeitos somente para as partes envolvidas, não vincula os órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública em geral.
Saliente-se, de pronto, uma das principais diferenças entre o controle difuso e o concentrado: enquanto no primeiro, a decisão só atinge as partes envolvidas no litígio, no segundo, a decisão atinge a todos.
Entretanto, por força do art. 52, X, da CF, é possível ampliar a todos a decisão proferida no controle difuso: basta que o Senado Federal suspenda a “execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”;
Note-se que, muito embora o controle concreto possa ser efetuado por qualquer órgão do Poder Judiciário, desde que dentro de sua jurisdição, a referida suspensão só será possível quando o próprio STF por fim ao litígio.
Nesse momento, oportuna é a transcrição da doutrina de Luís Roberto Barroso (2012, pp. 155-156):
Também ao Supremo Tribunal Federal, como estudado, cabe declarar incidentalmente a inconstitucionalidade de uma lei. Poderá fazê-lo em causa de sua competência originária — e.g., um mandado de segurança contra ato do Presidente da República (CF, art. 102, I, d) —, ao julgar recurso ordinário — e. g., interposto contra a denegação de um habeas corpus pelo Superior Tribunal de Justiça (art. 102, II, a) — ou na apreciação de um recurso extraordinário. Por exemplo: o juiz de primeiro grau considerou legítima a cobrança de um tributo, mas o Tribunal Regional Federal, após incidente de inconstitucionalidade regularmente processado, determinou que a Fazenda Pública se abstivesse de cobrá-lo (art. 102, III, b).
Em qualquer dessas hipóteses — dentre as quais a mais corriqueira é a do recurso extraordinário —, o Supremo Tribunal Federal, em decisão do Pleno, por maioria absoluta, poderá declarar incidentalmente a inconstitucionalidade de uma lei. Nesse caso, a tradição brasileira, iniciada com a Constituição de 1934, prevê a comunicação da decisão ao Senado Federal, que poderá suspender, no todo ou em parte, a execução da lei declarada inconstitucional. Na Constituição de 1988, a providência consta do inciso X do art. 52.
Percebe-se, pelo exposto, que é faculdade do Senado Federal proceder à aludida suspensão. Nesse mesmo sentido, Pedro Lenza (2013, p. 246) afirma que “o Senado Federal não está obrigado a suspender a execução de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”.
Muito embora a redação deste dispositivo seja clara ao dispor que “compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”, alguns estudiosos, como se verá adiante, já se manifestaram no sentido de que ao Senado caberia apenas publicar o que fora decidido pelo STF. Tendo esta decisão do Supremo, no entender dessa doutrina, efeitos erga omnes de imediato, independentemente de o Senado Federal “publicar” ou não o acórdão da Corte Excelsa.
Desse entendimento que surge a teoria da abstrativização do controle difuso, professando o entendimento de que a decisão do Supremo que declara uma lei inconstitucional, mesmo que incidentalmente, deve atingir a todos.
3. Abstrativização do Controle Difuso
Foi exposto que, no controle difuso, o Poder Judiciário - quaisquer de seus órgãos no âmbito de sua competência - afere a constitucionalidade ou não de determinado dispositivo infraconstitucional em um caso concreto. Tal decisão, em regra, acarreta efeitos inter partes e ex tunc.
Além disso, é possível, caso tenha sido o STF que tenha declarado a lei inconstitucional, estender os efeitos desse acórdão a todos, desde que o Senado Federal suspenda a execução, no todo ou em parte, dessa lei (art. 52, X, da CF).
Por sua vez, no controle abstrato, o Poder Judiciário – mais especificamente o Supremo – analisará se determinada norma infraconstitucional contraria ou não a Constituição Federal, sem se utilizar de um caso concreto, ou seja, uma averiguação em tese. Tal decisão acarreta efeitos erga omnes e ex tunc.
Percebe-se que a principal diferença entre ambas é que, enquanto no controle abstrato a decisão do Supremo produz efeitos sobre todos, no controle difuso, para que isso ocorra (atingir a todos), haveria a necessidade de o Senado suspender, no todo ou em parte, a lei declarada inconstitucional pela Excelsa Corte.
Nesse momento, mister se faz transcrever a explicação do autor Luís Roberto Barroso acerca do tema (2012, p. 156):
A razão histórica — e técnica — da intervenção do Senado é singelamente identificável. No direito norte-americano, de onde se transplantara o modelo de controle incidental e difuso, as decisões dos tribunais são vinculantes para os demais órgãos judiciais sujeitos à sua competência revisional. Isso é válido inclusive, e especialmente, para os julgados da Suprema Corte. Desse modo, o juízo de inconstitucionalidade por ela formulado, embora relativo a um caso concreto, produz efeitos gerais. Não assim, porém, no caso brasileiro, onde a tradição romano-germânica vigorante não atribui eficácia vinculante às decisões judiciais, nem mesmo às do Supremo Tribunal. Desse modo, a outorga ao Senado Federal de competência para suspender a execução da lei inconstitucional teve por motivação atribuir eficácia geral, em face de todos, erga omnes, à decisão proferida no caso concreto, cujos efeitos se irradiam, ordinariamente, apenas em relação às partes do processo.
Ora, o que, então, a teoria da abstrativização do controle difuso pretende? Em breve síntese, que a decisão do STF que declare a inconstitucionalidade de um dispositivo infraconstitucional num caso concreto (controle difuso), tenha os mesmos efeitos do controle abstrato, inclusive o erga omnes.
Entretanto, como entender dessa forma se o próprio texto da Carta Política não deixa dúvidas de que “compete privativamente ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal”?
A explicação proposta pela referida teoria se encontra no que se convencionou chamar de mutação constitucional. Tratando deste tema, Gilmar Mendes e Paulo Branco (2012, p. 201) ensinam:
Ocorre que, por vezes, em virtude de uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma, ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem que as suas palavras hajam sofrido modificação alguma. O texto é o mesmo, mas o sentido que lhe é atribuído é outro. Como a norma não se confunde com o texto, repara-se, aí, uma mudança da norma, mantido o texto. Quando isso ocorre no âmbito constitucional, fala-se em mutação constitucional.
No entender de alguns doutrinadores, portanto, observar a literalidade do art. 52, X, da CF, olvidando-se do atual cenário jurídico e das inovações legislativas, a exemplo do controle abstrato, seria uma análise obsoleta, senão veja-se o que aduz Luís Roberto Barroso (2012, p. 157):
A verdade é que, com a criação da ação genérica de inconstitucionalidade, pela EC n. 16/65, e com o contorno dado à ação direta pela Constituição de 1988, essa competência atribuída ao Senado tornou-se um anacronismo. Uma decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, seja em controle incidental ou em ação direta, deve ter o mesmo alcance e produzir os mesmos efeitos. Respeitada a razão histórica da previsão constitucional, quando de sua instituição em 1934, já não há lógica razoável em sua manutenção. Também não parece razoável e lógica, com a vênia devida aos ilustres autores que professam entendimento diverso, a negativa de efeitos retroativos à decisão plenária do Supremo Tribunal Federal que reconheça a inconstitucionalidade de uma lei. Seria uma demasia, uma violação ao princípio da economia processual, obrigar um dos legitimados do art. 103 a propor ação direta para produzir uma decisão que já se sabe qual é!
Nesse mesmo sentido, Gilmar Mendes e Paulo Branco (2012, pp. 1551-1552):
A exigência de que a eficácia geral da declaração de inconstitucionalidade proferida pelo Supremo Tribunal Federal em casos concretos dependa de decisão do Senado Federal, introduzida entre nós com a Constituição de 1934 e preservada na Constituição de 1988 (art. 52, X), perdeu parte do seu significado com a ampliação do controle abstrato de normas, sofrendo mesmo um processo de obsolescência. A amplitude conferida ao controle abstrato de normas e a possibilidade de que se suspenda, liminarmente, a eficácia de leis ou atos normativos, com eficácia geral, contribuíram, certamente, para que se mitigasse a crença na própria justificativa desse instituto, que se inspirava diretamente numa concepção de separação de Poderes — hoje necessária e inevitavelmente ultrapassada. Se o Supremo Tribunal pode, em ação direta de inconstitucionalidade, suspender, liminarmente, a eficácia de uma lei, até mesmo de emenda constitucional, por que haveria a declaração de inconstitucionalidade, proferida no controle incidental, valer tão somente para as partes?
A única resposta plausível nos leva a acreditar que o instituto da suspensão pelo Senado assenta-se hoje em razão exclusivamente histórica.
Em que pese a força de tais argumentos, a doutrina e a jurisprudência majoritárias não compactuam com tal entendimento. Para corroborar o afirmado, passa-se à análise, doravante, de alguns pontos atinentes ao tema expostos no julgamento da reclamação 4335/AC pelo STF. Isso porque, recrudescendo o estudo da questão em voga, essa ação traz o entendimento atual da Suprema Corte sobre o assunto.
4. O Supremo e a Teoria da abstrativização do controle difuso
Para entender o porquê de o STF ter apreciado a questão recentemente na reclamação 4335/AC, necessário se faz ter conhecimento do seguinte, conforme expõe o professor e Juiz Federal, Márcio André Lopes Cavalcante (2014, p. 3): “Em 23/02/2006, o STF, ao julgar um habeas corpus impetrado em favor de um único preso, declarou inconstitucional esse § 1º do art. 2º da Lei n.° 8.072/90 (em sua redação original), que proibia a progressão”. A redação original desse parágrafo era a seguinte: a pena por crime previsto neste artigo será cumprida integralmente em regime fechado. Por sua vez, conforme ressalta o mesmo professor, a “decisão foi tomada pelo Plenário do STF, no entanto, como já dito, em um processo individual, o HC 82.959/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 23/02/2006.”.
Ora, vê-se que o referido dispositivo normativo foi declarado inconstitucional num caso concreto, ou seja, através do controle difuso. Diante disso, com fundamento no até agora exposto, tal decisão só tem efeito inter partes, a não ser que o Senado Federal suspenda a execução desse parágrafo.
Não por outra razão que, ainda com o comentário da questão em voga pelo Juiz Federal e professor Márcio André Lopes Cavalcante (2014, p.4):
Em abril de 2006, ou seja, após a decisão do STF declarando inconstitucional o § 1º do art. 2º da Lei n.° 8.072/90 (HC 82959/SP), o juiz da vara de execuções penais de Rio Branco (AC) indeferiu o pedido de progressão de regime em favor de um condenado, argumentando que a Lei de Crimes Hediondos proibia e que a decisão do STF no HC 82959/SP somente teria eficácia erga omnes se o Senado Federal suspendesse a execução do dispositivo da Lei de Crimes Hediondos.
Em que pese isso, o aludido professor expõe (2014, p. 4) que:
O réu, assistido pela Defensoria Pública, formulou reclamação no STF alegando que o entendimento do juiz de 1ª instância ofendeu a autoridade da decisão do STF no HC 82959/SP. Segundo argumentou o condenado, o Supremo já havia definido que o dispositivo era inconstitucional. Logo, ninguém mais poderia discordar, mesmo que a decisão tenha sido tomada em sede de controle difuso.
Evidencia-se, aqui, que a defesa do réu perfilhou o entendimento da teoria da abstrativização do controle difuso. Isso porque se manifestou no sentido de que a decisão do STF no caso concreto, HC 82959/SP, que declarou inconstitucional o § 1º do art. 2º da Lei n.° 8.072/90, teria efeitos sobre todos e, além disso, vincularia os demais órgãos do Poder Judiciário e a Administração Pública, ou seja, os mesmos efeitos da decisão proferida no controle abstrato.
É de bom alvitre salientar, porém, o seguinte: enquanto a Constituição Federal estatui expressamente que, no caso de averiguação de constitucionalidade em tese, a exemplo das ações diretas de inconstitucionalidade e as de constitucionalidade, as decisões definitivas de mérito proferidas pelo STF “produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário” e à Administração Pública em geral (com supedâneo no art. 102, § 2º, CF); na averiguação incidental, quando o Supremo declara inconstitucional determinado dispositivo normativo, como visto, só há efeitos inter partes, a não ser que o Senado Federal suspenda a execução do referido dispositivo (com fulcro no art. 52, X, CF).
Antes de analisar o entendimento do Supremo sobre o assunto, contudo, deve-se salientar que foi editada a Súmula Vinculante 26 pelo STF com a seguinte redação:
STF Súmula Vinculante nº 26 - PSV 30 - DJe nº 35/2010 - Tribunal Pleno de 16/12/2009 - DJe nº 238, p. 1, em 23/12/2009 - DOU de 23/12/2009, p. 1
Progressão de Regime no Cumprimento de Pena por Crime Hediondo - Inconstitucionalidade - Requisitos do Benefício - Exame Criminológico
Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da Lei n. 8.072, de 25 de julho de 1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico.
O professor Márcio André Lopes Cavalcante (2014, p.5) ressalta ainda que a referida súmula foi editada “em 2009, ou seja, após a decisão no HC 82.959/SP e depois de a reclamação ter sido ajuizada (mas antes de ser julgada)”. A importância de se evidenciar esse ponto é simples. Ora, a defesa ajuizou a reclamação por entender que a decisão do supremo no HC 82.959/SP deveria ter efeitos sobre todos e vincular os demais órgãos do Poder Judiciário, inclusive o juízo do Acre, ou seja, a análise da questão se limitaria praticamente à aceitação ou não da teoria da abstrativização do controle difuso. Entretanto, a partir do momento em que foi editada a súmula vinculante no período compreendido após o ajuizamento da ação e antes do julgamento desta, haveria outra análise possível: com fundamento na aludida súmula, mesmo editada após a reclamação, poderia o STF cassar a decisão reclamada? Em que pese ser uma questão que mereça análise, caberá ao presente estudo salientar os pontos do julgamento atinentes à aplicação ou não da teoria da abstrativização do controle difuso.
Pois bem. Viu-se, doutrinariamente, que o Ministro Gilmar Mendes perfilha o entendimento da teoria da abstrativização do controle difuso. É nesse sentido que, ao proferir seu voto, na reclamação 4335/AC, como relator, ele desenvolve esse entendimento.
Para fundamentar o porquê da mutação constitucional do art. 52, X, da CF, esse Ministro (2007, p. 56-57) tece algumas considerações, merecendo destaque as que se seguem:
Em verdade, a aplicação que o Supremo Tribunal Federal vem conferindo ao disposto no art. 52, X, da CF indica que o referido instituto mereceu uma significativa reinterpretação a partir da Constituição de 1988.
É possível que a configuração emprestada ao controle abstrato pela nova Constituição, com ênfase no modelo abstrato, tenha sido decisiva para a mudança verificada, uma vez que as decisões com eficácia erga omnes passaram a se generalizar.
A multiplicação de processos idênticos no sistema difuso – notória após 1988 - deve ter contribuído, igualmente, para que a Corte percebesse a necessidade de atualização do aludido instituto. Nesse contexto, assume relevo a decisão que afirmou a dispensabilidade de se submeter a questão constitucional ao Plenário de qualquer Tribunal se o Supremo Tribunal já se tiver manifestado pela inconstitucionalidade do diploma. Tal como observado, essa decisão acaba por conferir uma eficácia mais ampla - talvez até mesmo um certo efeito vinculante - à decisão do Plenário do Supremo Tribunal no controle incidental. Essa orientação está devidamente incorporada ao direito positivo (CPC, art. 481, parágrafo único, parte final, na redação da Lei n. 9756, de 1998). No mesmo contexto situa-se a decisão que outorgou ao relator a possibilidade de decidir, monocraticamente, os recursos extraordinários vinculados às questões já resolvidas pelo Plenário do Tribunal (CPC, art. 557, § 1o A).
Nesse ponto, esclareça-se que a referida decisão proferida em controle incidental (“RE 190.728, Relator para o acórdão Min. Ilmar Galvão, DJ de 30.5.1997”, conforme se visualiza na nota de rodapé 31, página 31, no voto do Ministro Gilmar Mendes), que entendeu por isentar o órgão fracionário de outros Tribunais “do dever de submeter a declaração de inconstitucionalidade ao plenário ou ao órgão especial” , vai de encontro ao que propõe o art. 97, da Carta Política. Isso porque, por força desse dispositivo, que é a regra, os tribunais só poderão declarar a inconstitucionalidade de determinado dispositivo normativo do Poder Público pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial, reconhecendo o STF, portanto, “efeito jurídico transcendente à sua decisão”. Tais argumentos foram expendidos pelo Ministro Gilmar Mendes com o fito de evidenciar que há casos em que as decisões do Supremo transcendem os limites da lide, bem como a existência de inovações legislativas recentes que dão substrato a isso. Havendo, portanto, necessidade de se reinterpretar o art. 52, X, da Carta Magna.
Salientem-se, ainda, os seguintes trechos desse voto (2007, p. 58-59):
Assim, parece legítimo entender que, hodiernamente, a fórmula relativa à suspensão de execução da lei pelo Senado Federal há de ter simples efeito de publicidade. Desta forma, se o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle incidental, chegar à conclusão, de modo definitivo, de que a lei é inconstitucional, essa decisão terá efeitos gerais, fazendo-se a comunicação ao Senado Federal para que este publique a decisão no Diário do Congresso. Tal como assente, não é (mais) a decisão do Senado que confere eficácia geral ao julgamento do Supremo. A própria decisão da Corte contém essa força normativa. Parece evidente ser essa a orientação implícita nas diversas decisões judiciais e legislativas acima referidas.
(...)
Com efeito, verifica-se que a recusa do Juiz de Direito da Vara de Execuções da Comarca de Rio Branco, no Estado do Acre, em conceder o benefício da progressão de regime, nos casos de crimes hediondos, desrespeita a eficácia erga omnes que deve ser atribuída à decisão deste Supremo Tribunal Federal, no HC 82.959, que declarou a inconstitucionalidade do artigo 2o, § 1o, da Lei n. 8.072/1990.
No que toca à transcendência dos limites da lide, há que se salientar a seguinte passagem do voto do Ministro Teori Zavascki (2014, p. 2-3):
Não se pode deixar de ter presente, como cenário de fundo indispensável à discussão aqui travada, a evolução do direito brasileiro em direção a um sistema de valorização dos precedentes judiciais emanados dos tribunais superiores, aos quais se atribui, cada vez com mais intensidade, força persuasiva e expansiva em relação aos demais processos análogos. Nesse ponto, o Brasil está acompanhando um movimento semelhante ao que também ocorre em diversos outros países que adotam o sistema da civil law, que vêm se aproximando, paulatinamente, do que se poderia denominar de cultura do stare decisis, própria do sistema da common law.
Acompanhando o relator, merecem destaques as seguintes passagens do voto do Ministro Eros Grau (2007, p. 14 e p.19):
Obsoleto o texto que afirma ser da competência privativa do Senado Federal a suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, nele se há de ler, por força da mutação constitucional, que compete ao Senado Federal dar publicidade à suspensão da execução, operada pelo Supremo Tribunal Federal, de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo.
(...)
A resposta é óbvia, conduzindo inarredavelmente à reiteração do entendimento adotado pelo Relator, no sentido de que ao Senado Federal, no quadro da mutação constitucional declarada em seu voto --- voto dele, Relator --- e neste meu voto reafirmada, está atribuída competência apenas para dar publicidade à suspensão da execução de lei declarada inconstitucional, no todo ou em parte, por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. A própria decisão do Supremo contém força normativa bastante para suspender a execução da lei declarada inconstitucional.
Entretanto, divergindo das explanações supracitadas, alguns Ministros do Supremo se manifestaram no sentido de não ter ocorrido a mutação constitucional, a exemplo de Ricardo Lewandowski. Para este (2013, p. 8), conforme se vislumbra em seu voto, o art. 52, X, da CF, não se trata de “mera reminiscência histórica”.
Para fundamentar seu posicionamento, esse Ministro ressalta que o Senado Federal não vem se olvidando de sua competência constitucional de suspender a execução da lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do STF, conforme se depreende das seguintes passagens de seu voto (2013, p 8):
É que, primeiro, constato que a Câmara Alta, não tem descuidado do cumprimento dessa relevante competência que os constituintes brasileiros lhe tem atribuído, de forma reiterada, desde o advento da Carta de 1934.
Nesse sentido, assinalo que, entre 7 de fevereiro de 2007 e 16 de junho de 2010, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal pautou, para deliberação dos Senadores, nada menos que 53 ofícios encaminhados por esta Corte, solicitando a promulgação de projeto de resolução para suspender a execução de dispositivos declarados inconstitucionais em sede de controle difuso.
Outro argumento declinado é o de que entender pela mutação (ao Senado Federal somente caberia a publicação da decisão do STF e não mais a suspensão da execução do dispositivo declarado inconstitucional) enfraqueceria a separação dos poderes, haja vista a diminuição da competência constitucional desta Casa Legislativa.
Nesse momento, oportuno trazer à baila os seguintes trechos de seu voto (2013, p. 9/11):
Tal interpretação, contudo, a meu ver, levaria a um significativo aviltamento da tradicional competência daquela Casa Legislativa no tocante ao controle de constitucionalidade, reduzindo o seu papel a mero órgão de divulgação das decisões do Supremo Tribunal Federal nesse campo. Com efeito, a prevalecer tal entendimento, a Câmara Alta sofreria verdadeira capitis diminutio no tocante a uma competência que os constituintes de 1988 lhe outorgaram de forma expressa.
(...)
Suprimir competências de um Poder de Estado, por via de exegese constitucional, a meu sentir, colocaria em risco a própria lógica do sistema de freios e contrapesos, como ressalta Jellinek.
(...)
Não há, penso eu, com o devido respeito pelas opiniões divergentes,como cogitar-se de mutação constitucional na espécie, diante dos limites formais e materiais que a própria Lei Maior estabelece quanto ao tema, a começar pelo que se contém no art. 60, § 4º, III, o qual erige a separação dos poderes à dignidade de “cláusula pétrea”, que sequer pode ser alterada por meio de emenda constitucional.
(...)
Mas o que se propõe aqui é algo inteiramente diferente. Almeja-se, na verdade, deslocar uma competência atribuída pelos constituintes a determinado Poder para outro. Não me parece, contudo, seja possível materializar-se tal desiderato, mesmo porque os próprios teóricos da mutação constitucional reconhecem que esse fenômeno possui limites.
Ressalte-se, neste ponto, que Gilmar Mendes e Paulo Branco (2012, p. 201) ensinam que o instituto da mutação constitucional possui, de fato, limites a serem respeitados. Não por outra razão que afirmam que a nova interpretação terá que “encontrar apoio no teor das palavras empregadas pelo constituinte e não deve violentar os princípios estruturantes da Lei Maior; do contrário, haverá apenas uma interpretação inconstitucional”.
A grande questão é que, embora para o Ministro Gilmar Mendes, como se viu, a mutação constitucional do art. 52, X, da CF, se amolda ao restante do ordenamento jurídico, para o Ministro Ricardo Lewandowski interpretar dessa forma atentaria contra a harmonia e a separação entre os poderes, princípio fundamental da Carta Política de 1988.
Merecem destaques, ainda, as seguintes análises tomadas por este Ministro (2013, p. 12) no que toca à hermenêutica constitucional no caso em voga:
O festejado Konrad Hesse, em primorosa obra sobre o tema, também faz alusão aos limites da interpretação constitucional, ao consignar que
“(...) uma mudança das relações fáticas pode – ou deve – provocar mudanças na interpretação da Constituição. Ao mesmo tempo, o sentido da proposição jurídica estabelece o limite da interpretação e, por conseguinte, o limite de qualquer mutação normativa. A finalidade (Telos) de uma proposição constitucional e sua nítida vontade normativa não devem ser sacrificadas em virtude de uma mudança da situação. Se o sentido de uma proposição normativa não pode mais ser realizado, a revisão constitucional afigura-se inevitável. Do contrário, ter-se-ia a supressão da tensão entre norma e realidade com a supressão do próprio direito” (grifos no voto).
Para o autor alemão, duas são, portanto, as formas de mutação constitucional: a primeira consiste na revisão do texto magno, quando a “reforma constitucional expressa a ideia de que, efetiva ou aparentemente, atribui-se maior valor às exigências de índole fática do que à ordem normativa vigente”; a segunda corresponde à interpretação que encontra limites na teleologia da norma. Em outras palavras, na impossibilidade de conciliação das exigências de ordem fática com o sentido íntimo da norma, devem os impasses ser resolvidos por meio de emendas à Constituição, por absoluta inadequação das técnicas puramente hermenêuticas.
(...)
Com efeito, se o dispositivo em questão assinala, com todas as letras, que compete ao Senado Federal a suspensão de norma declarada inconstitucional por esta Corte, assim o é, literalmente. Ainda que se possa, no mérito, discordar do que nele se contém, o preceito em tela constitui o Direito posto, e que não admite, dada a taxatividade com que está vazado, maiores questionamentos.
O renomado mestre José Afonso da Silva, emitindo juízo de valor sobre referido preceito constitucional, assim se manifesta:
“Seria mais prático e expedito que se desse à decisão definitiva do STF o efeito erga omnes a contar de sua publicação, também nos casos de recurso extraordinário (art. 102, III), que é o ponto final do controle de constitucionalidade incidenter tantum. Assim, porém, não quis o constituinte, de sorte que a interferência do Senado é de rigor.
(...)
A suspensão é ato político; por isso cabe ao Senado o juízo de conveniência e a oportunidade para fazê-lo” (grifos no voto).
Deve-se acrescentar a tais argumentos, o do Ministro Sepúlveda Pertence (2007, pp. 4-5), que, além de também entender pela não ocorrência da mutação constitucional do art. 52, X, CF, em que pese reconheça a obsolescência deste dispositivo, salienta que a edição da súmula vinculante seria suficiente para suprir a não aplicação da teoria da abstrativização do controle difuso:
Não há dúvida de que, no mundo dos fatos, se torna cada vez mais obsoleto – concordo - esse mecanismo; mas, hoje, combatê-lo, por isso que tenho chamado - com a permissão generosa dos dois Colegas - de projeto de decreto de mutação constitucional, já não é nem mais necessário.
A Emenda Constitucional 45 dotou o Supremo Tribunal de um poder que, praticamente, sem reduzir o Senado a um órgão de mera publicidade de nossas decisões, dispensa essa intervenção. Refiro-me, é claro, ao instituto da súmula vinculante, que a Emenda Constitucional 45, de 2005, veio a adotar depois de mais de uma década de tormentosa discussão.
Interessante relembrar que essa hipótese ocorreu no caso em tela, como visto anteriormente, já que, enquanto após a decisão do STF no HC 82.959/SP declarando inconstitucional um dispositivo normativo (caso em concreto) haveria efeito apenas inter partes (até a suspensão da execução dele pelo Senado Federal), com a edição em 2009 da Súmula Vinculante 26 pelo STF, haveria efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública em geral.
Também se manifestaram contrários à mutação constitucional do art. 52, X, da Carta Magna, os Ministros Joaquim Barbosa e Marco Aurélio. Por sua vez, os Ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello e Teori Zavascki proferiram seus votos sem se posicionar de forma expressa sobre a aceitação ou não da mutação constitucional, decidindo que “a reclamação deveria ser conhecida porque houve ofensa à SV 26-STF”, conforme expõe o professor Márcio André Lopes Cavalcante (2014, p. 5).
O não posicionamento expresso sobre a aceitação ou não da mutação constitucional no caso em voga fica evidente no voto do Ministro Teori Zavascki (2014, p. 2):
No meu entender, a ocorrência, ou não, da mutação do sentido e do alcance do dispositivo constitucional em causa (art. 52, X) não é, por si só, fator determinante do não-conhecimento ou da improcedência da reclamação. Realmente, ainda que se reconheça que a resolução do Senado permanece tendo, como teve desde a sua origem, a aptidão para conferir eficácia erga omnes às decisões do STF que, em controle difuso, declaram a inconstitucionalidade de preceitos normativos – tese adotada, com razão, pelos votos divergentes –, isso não significa que tal aptidão expansiva das decisões só ocorra quando e se houver a intervenção do Senado – e, nesse aspecto, têm razão o voto do relator. Por outro lado, ainda que outras decisões do Supremo, além das indicadas no art. 52, X da Carta Constitucional, tenham força expansiva, isso não significa, por si só, que seu cumprimento possa ser exigido diretamente do Tribunal, por via de reclamação.
O que se percebe, da análise dos votos desses Ministros, em realidade, é que não se refutaram, ou ao menos não se demonstraram ter força para tanto, os argumentos que salientam o anacronismo do art. 52, X, da CF. Ocorre, entretanto, que a plausibilidade de tais argumentos não se mostrou suficiente para que o STF pudesse se valer da mutação constitucional (apenas os Ministros Gilmar Mendes e Eros Grau proferiram voto nesse sentido), eis que não só a harmonia entre os poderes restaria prejudicada (ocorrendo, diferentemente, uma mutação inconstitucional), bem como há a possibilidade de o referido dispositivo, já que alheio a seu tempo, ser modificado pelo Poder Constituinte Derivado.
5. Conclusão
Dúvidas não há de que o dispositivo expresso no art. 52, X, da Constituição Federal trata de competência do Poder Legislativo, mais especificamente do Senado Federal. Entender, portanto, que há mutação constitucional no referido artigo, acarreta uma crise entre os poderes, haja vista que o STF, interpretando que ao Senado Federal caberia a mera publicação do que fora decidido pelo Supremo, diminui a competência da aludida Corte Legislativa, desequilibrando a separação dos poderes e, porque não, desrespeitando a cláusula pétrea insculpida no art. 60, § 4º, III, da Carta Magna.
Ora, o que se percebe, em verdade, da análise da Reclamação 4335 (ver direito o número), é que o Pretório Excelso já entende que está fora de contexto, no atual cenário do ordenamento jurídico, a supracitada norma. Não só as decisões dos Tribunais são cada vez mais aceitas e consideradas, “stare decisis”, havendo uma aproximação do “civil law” e do “common law” no Direito Brasileiro, bem como houve uma intensa proliferação de dispositivos legais (inovações legislativas) no sentido de garantir, nos termos do voto do Ministro Teori Zavascki, às decisões do Supremo eficácia expansiva.
Como visto nas transcrições das doutrinas dos Ministros Gilmar Mendes e Luís Barroso, não há, ou pelo menos não deveria haver, a rigor, diferença entre uma norma ser declarada inconstitucional em sede de controle concentrado ou difuso, já que, em ambas, o Supremo, alfim, entendeu que determinado dispositivo legal não encontra guarida constitucional.
Em que pesem tais considerações, no intuito de preservar a harmonia entre os poderes, denota-se que a Corte Suprema, sob pena de invadir a esfera de competência de outro poder, espera do Poder Legislativo a iniciativa de alterar o inciso X, art. 52, da Carta Política.
Isso posto, depreende-se que a Teoria da Abstrativização do Controle Difuso, que tem como grande expoente, tanto na doutrina como no Supremo, o Ministro Gilmar Mendes, embora esteja em consonância com a evolução legislativa e jurídica pátria, encontra como óbice para que seja implementada o desrespeito do art. 2º, CF, uma vez que a harmonia entre os poderes ficaria prejudicada.
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Servidor Público Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: UEDSON BEZERRA COSTA UCHôA, . Abstrativização do controle difuso e o desequilíbrio entre os poderes Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jul 2014, 05:15. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40100/abstrativizacao-do-controle-difuso-e-o-desequilibrio-entre-os-poderes. Acesso em: 23 dez 2024.
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