A pena é a reação do Estado contra o violador da norma penal. Possui finalidade retributiva, preventiva geral e específica, e ressocializadora.
Dentre os diversos princípios que se relacionam à pena, destaca-se o da humanidade, segundo o qual a pena não pode violar a integridade física e moral do condenado.
O princípio da humanidade ganha especial relevo, quando o apenado é indígena, ante a necessidade imposta pela Constituição Federal do respeito à alteridade, decorrente do fundamento pluralista de nossa sociedade (art. 1º, V, da CF/88) e da simples leitura do caput do art. 231 da Carta Magna:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Na legislação indigenista, chama atenção a previsão contida no art. 57 do estatuto do índio:
Art. 57. Será tolerada a aplicação, pelos grupos tribais, de acordo com as instituições próprias, de sanções penais ou disciplinares contra os seus membros, desde que não revistam caráter cruel ou infamante, proibida em qualquer caso a pena de morte.
Trata-se do instituto do foro étnico, pelo qual a própria comunidade indígena processo e julga os delitos cometidos por seus membros.
Nesse sentido, leciona a antropóloga Alcida Rita Ramos:
A vida comunitária de uma aldeia não está isenta de gerar conflitos, disputas, comportamentos anti-sociais diversos, em diferentes graus de gravidade e desaprovação. O grupo social reage a isso segundo padrões culturais reconhecidos por todos não só de uma dada aldeia mas da sociedade inteira. A definição do que é uma infração social varia de sociedade para sociedade. Enquanto em algumas o assassinato é severamente punido, em outras ele é considerado assunto particular das pessoas envolvidas; numas o adultério pode resultar em sanções sociais contra os adúlteros, noutras pode ficar apenas entre o marido, a mulher e o terceiro; a quebra de tabu do incesto pode levar os infratores a penas mais ou menos pesadas; a prática de feitiçaria pode ser apenas desaprovada verbalmente ou pode resultar na execução sumária do alegado feiticeiro. Porém cada sociedade tem seu elenco de ‘crimes’ que são da alçada do grupo e não apenas assuntos domésticos, e tem também um elenco de punições correspondentes a esses crimes[1].
Importante destacar que a norma encontrada no art. 57 do estatuto do índio tem respaldo no Direito Internacional.
Com efeito, a própria Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas[2] ao reforçar que “os povos indígenas são iguais a todos os demais povos e reconhecendo ao mesmo tempo o direito de todos os povos a serem diferentes, a se considerarem diferentes e a serem respeitados como tais” e reconhecendo a “necessidade urgente de respeitar e promover os direitos intrínsecos dos povos indígenas, que derivam de suas estruturas políticas, econômicas e sociais e de suas culturas, de suas tradições espirituais, de sua história e de sua concepção da vida, especialmente os direitos às suas terras, territórios e recursos” proclama:
Artigo 4 - Os povos indígenas, no exercício do seu direito à autodeterminação, têm direito à autonomia ou ao autogoverno nas questões relacionadas a seus assuntos internos e locais, assim como a disporem dos meios para financiar suas funções autônomas.
Artigo 5 - Os povos indígenas têm o direito de conservar e reforçar suas próprias instituições políticas, jurídicas, econômicas, sociais e culturais, mantendo ao mesmo tempo seu direito de participar plenamente, caso o desejem, da vida política, econômica, social e cultural do Estado.
Artigo 20 - 1. Os povos indígenas têm o direito de manter e desenvolver seus sistemas ou instituições políticas, econômicas e sociais, de que lhes seja assegurado o desfrute de seus próprios meios de subsistência e desenvolvimento e de dedicar-se livremente a todas as suas atividades econômicas, tradicionais e de outro tipo.
2. Os povos indígenas privados de seus meios de subsistência e desenvolvimento têm direito a uma reparação justa e eqüitativa.
Artigo 35 - Os povos indígenas têm o direito de determinar as responsabilidades dos indivíduos para com suas comunidades.
Embora não tenha Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas a força cogente dos tratados e acordos internacionais, certamente serve de norte hermenêutico para a elaboração das legislações dos Estados-membros da ONU, bem como para a aplicação das decisões pelos Tribunais Internacionais.
Ainda, a fim de se legitimar a aplicação pelos povos indígenas do foro étnico, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, incorporada ao nosso ordenamento jurídico pelo Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, não deixa dúvidas:
Artigo 9º - 1. Na medida em que isso for compatível com o sistema jurídico nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, deverão ser respeitados os métodos aos quais os povos interessados recorrem tradicionalmente para a repressão dos delitos cometidos pelos seus membros.
2. As autoridades e os tribunais solicitados para se pronunciarem sobre questões penais deverão levar em conta os costumes dos povos mencionados a respeito do assunto.
Artigo 10 - 1. Quando sanções penais sejam impostas pela legislação geral a membros dos povos mencionados, deverão ser levadas em conta as suas características econômicas, sociais e culturais.
2. Dever-se-á dar preferência a tipos de punição outros que o encarceramento.
Portanto, não há dúvidas acerca do cabimento e compatibilidade do julgamento tribal ou foro étnico com o Direito Pátrio, desde que a sanção imposta não se revista de caráter cruel ou infamante, e seja compatível com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos.
A antropóloga Alcia Rita Ramos cita outros exemplos de punições em sociedades indígenas:
Quando uma ação criminosa é consumada, aplica-se, então, a punição correspondente: ostracismo, expulsão ou mesmo morte. Um casamento escandaloso, condenado como impróprio pelo grupo, pode levar o casal a sair da aldeia, permanentemente ou temporariamente; pode também isolá-lo em ostracismo coletivo, quando todos se recusam a falar, olhar ou ter algo a ver com os infratores, como se eles não existissem. Se esse ostracismo se prolonga, o casal acaba por se mudar para outra aldeia, o que equivale, na prática, à expulsão tácita. Um assassinato ou morte por feitiçaria pode resultar na expulsão ou na execução do assassino ou feiticeiro, podendo também deflagrar uma vendeta entre as aldeias principalmente se as relações entre elas já estavam abaladas[3].
Questão bastante interessante é a da efetiva aplicabilidade desse instituto e o seu reconhecimento pelo Estado detentor do jus puniendi.
Inicialmente, cumpre registrar que muitos dos pequenos delitos cometidos por índios contra índios, no interior de terras indígenas, sequer chega ao conhecimento da sociedade envolvente. Esses crimes são solucionados internamente pela própria comunidade, a qual, em reunião com seus caciques e lideranças e demais membros dessa sociedade, decidem o destino do autor do delito.
Contudo, algumas vezes os crimes cometidos por indígenas, ainda que cometidos contra seus próprios membros, em face de sua gravidade, chegam ao conhecimento do Estado e são processados perante o Poder Judiciário.
Temos dois casos bem interessantes sobre o reconhecimento do foro étnico pelo Judiciário Brasileiro, ambos no Estado de Roraima.
No primeiro, o indígena de prenome Basílio foi absolvido foi absolvido pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri Popular da Justiça Federal em Roraima, presidido pelo juiz federal Helder Girão Barreto[4], sob a tese de causa supralegal de culpabilidade, hipótese na qual haveria um bis in idem, ou seja uma dupla punição para o mesmo fato.
Pois bem; após cometer o crime, o acusado foi preso e julgado pela própria Comunidade Indígena à qual pertencia, recebendo as seguintes penas: cavar a cova e enterrar o corpo da vítima; e, ficar em degredo de sua comunidade e de sua família pelo tempo que a comunidade achasse conveniente. No dia do julgamento o acusado estava há quase catorze anos sem poder retornar ao convívio da Comunidade Indígena do Maturuca. Ao ser interrogado em plenário o acusado declarou: quando um índio comete um crime é costume ele ser julgado pelos próprios companheiros Tuxauas; e que isso é um costume que vem antes do tempo dos seus avós. As testemunhas confirmaram os fatos. Em plenário, foi ouvida a antropóloga Alesandra Albert, que assegurou que na tradição da etnia Macuxi um índio que mata outro é submetido a um Conselho, escolhido pela própria comunidade e reconhecido como detentor de autoridade; que a maior pena aplicada pelo Conselho é o banimento; que tanto o julgamento quanto a pena são modos como eles encaram a Justiça; e, conclui; para a pessoa que sofreu banimento o julgamento e a pena têm o sentido da perda da convivência e da diminuição do conceito perante a Comunidade, coisas que são muito importantes.
Já o segundo e recente caso, sentenciado neste ano de 2014[5], enveredou por uma justificativa diferente, a da subsidiariedade do jus puniendi estatal, o qual ocorrerá somente na ausência do julgamento tribal.
O caso está relatado nos autos do processo nº 0000302-88.2010.8.23.0090 em trâmite na Justiça Federal de Roraima e foi sentenciado pelo juiz federal Aluizio Ferreira Vieira. Ao réu de prenome Denilson foi imputado o crime de homicídio qualificado, por ter ceifado a vida do próprio irmão, no interior da Terra Indígena Manoá/Pium, na data de 20 de junho de 2009. Passo a transcrever os excertos relevantes da sentença:
Após o ocorrido, reuniram-se Tuxauas e membros do conselho da comunidade indígena do Manoá no dia 26/06/2009, conforme consta às fls. 68/73, para deliberar eventual punição ao índio Denilson. Após oitiva do acusado e de seus pais e outras pessoas concluíram pela imposição de várias sanções, entre às quais, a construção de uma casa para a esposa da vítima, a proibição de ausentar-se da comunidade do Manoá sem permissão dos tuxauas.
Contudo, no dia 6 de abril do ano corrente, reuniram-se novamente as lideranças indígenas, Tuxauas de várias comunidades, entre elas, Anauá, Manoá, Wai Wai, e servidores da Funai, estes últimos apenas presenciaram a reunião com o fito de "...de apoiar na orientação no decorrer do procedimento, porém a decisão será das lideranças indígenas de ambas as regiões..." (fl. 185). Após oitiva das autoridades indígenas, foi imposta ao indígena DENILSON as seguintes penalidades, conforme consta na ata de fls. 185/187:
1. "O índio Denilson deverá sair da Comunidade do Manoá e cumprir pena na Região Wai Wai por mais 5 (cinco) anos, com possibilidade de redução conforme seu comportamento;
2. Cumprir o Regimento Interno do Povo Wai Wai, respeitando a convivência, o costume, a tradição e moradia junto aopovo Wai Wai;
3. Participar de trabalho comunitário;
4. Participar de reuniões e demais eventos desenvolvido pela comunidade;
5. Não comercializar nenhum tipo de produto, peixe ou coisas existentes na comunidade sem permissão da comunidade juntamente com tuxaua;
6. Não desautorizar o tuxaua, cometendo coisas às escondidas sem conhecimento do tuxaua;
7. Ter terra para trabalhar, sempre com conhecimento e na companhia do tuxaua;
8. Aprender a cultura e a língua Wai Wai.
9. Se não cumprir o regimento será feita outra reunião e tomar outra decisão.
Cabe acentuar que todo o procedimento supramencionado foi realizado sem mencionar em momento algum a legislação estatal, tendo apenas como norte a autoridade que seus usos e costumes lhes confere.
Nesse meio tempo, o representante do Estado, o Órgão Ministerial ofereceu denúncia no mês de fevereiro de 2012, a qual foi recebida por esse Juízo em 1º de março do mesmo ano.
Vê-se, portanto, a potencial condenação e execução de pena por mais de 2 (dois) entes, em tese, titulares do direito de punir o mesmo fato. Insta observar que não se trata de bis in idem, pois os entes detentores do direito de punir são distintos
e não apenas o Estado, mas de instituto novo, que poderíamos denominar de "Duplo Jus Puniendi".
(...)
Uma vez acolhido o pensamento da ausência in casu ao direito de punir estatal, haja vista o caso sob análise encaixar-se perfeitamente ao previsto no art. 57, do Estatuto do Índio, advém a problemática da possibilidade de absolvição do acusado à luz das institutos jurídicos penais e processuais penais, já referidas nesse ato judicial.
Para o deslinde do imbróglio, é importante definir algumas premissas:
a) Nos casos em que autor e vítima são índios; fato ocorre em terra indígena, e não há julgamento do fato pela comunidade indígena, o Estado deterá o direito de punir e atuará apenas de forma subsidiária. Logo, serão aplicáveis todas as regras penais e processuais penais.
b) Nos casos em que autor e vítima são índios; o fato ocorre em terra indígena, e há julgamento do fato pela comunidade indígena, o Estado não terá o direito de punir. Assim, torna-se evidente a impossibilidade de se aplicar regras estatais procedimentais a fatos tais que não podem ser julgados pelo Estado.
In casu, o acusado índio Denilson foi julgado pelo Conselho das Comunidades Indígenas antes mesmo do início da instrução criminal, o que acarretaria, em tese, a absolvição sumária.
Contudo, é de comezinho conhecimento penal que absolvição sumária pressupõe análise de mérito, nos termos do art. 397, do CPP, e este representante do Estado-juiz não tem poder para tal, pois o Estado não detém o direito de punir nesse caso concreto.
Em outras palavras, o Estado deve apenas pronunciar a sua ausência de poder de punir, uma vez que o acusado já foi julgado e condenado por quem detém o direito.
(...)
Ante ao exposto, deixo de apreciar o mérito da denúncia do Órgão Ministerial, representante do Estado, para DECLARAR A AUSÊNCIA IN CASU DO DIREITO DE PUNIR ESTATAL, em face do julgamento do fato por comunidade indígena, relativo ao acusado DENILSON (...)
As decisões acima relatadas deixam claro um início de respeito ao modo pelo qual as comunidades indígenas resolvem os seus próprios litígios e aplicam as sanções correspondentes aos autores dos ilícitos, decisões essas que deveriam ser replicadas por todo o Judiciário Brasileiro, como reflexo do neoconstitucionalismo, ou seja, da efetivação dos direitos fundamentais das populações indígenas.
Assevere-se que a observância do foro étnico não fragiliza o Estado, ao contrário, reforça o fundamento pluralista, os direitos humanos elencados na Constituição Federal, o princípio da celeridade, na medida em que é desnecessário processar e julgar os autores de tais delitos, bem como coloca o Estado Brasileiro no papel de vanguarda quanto ao respeito às premissas elencadas na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Por fim, e o mais importante: preserva e confere eficácia ao direito à diferença, garante a sobrevivência física e cultural dos índios, evita a perda da identidade étnica e cultural, reafirmando o princípio da humanização da pena.
[1] RAMOS, Alcida Rita. Sociedades Indígenas. São Paulo: Ática S.A., 1994, p. 61.
[2] Aprovada Assembléia Geral em 13 de setembro de 2007.
[3] Ibid. pp. 64.
[4] BARRETO, Helder Girão. Direitos Indígenas e Vetores Constitucionais. 1 ed. Curitiba: Juruá, 2011, p. 119/120.
[5] A sentença data de 04 de fevereiro de 2014.
Procurador Federal e Coordenador de Assuntos Contenciosos da Procuradoria Federal Especializada junto à FUNAI. Ex-Procurador do Estado da Paraíba. Pós-Graduado em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Católica Dom Bosco - UCDB<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: CAVALCANTI, Lívio Coêlho. Foro étnico Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 08 jul 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40107/foro-etnico. Acesso em: 23 dez 2024.
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