De acordo com a doutrina, durante muitos anos o conceito de processo foi confundido com o de procedimento. Tal confusão só passou a ser solucionada com a teoria de Bülow, segundo a qual se percebeu que “há, no processo, uma força que motiva e justifica a prática dos atos do procedimento, interligando os sujeitos processuais. O processo, então, pode ser encarado pelo aspecto dos atos que lhe dão corpo e das relações entre eles e igualmente pelo aspecto das relações entre seus sujeitos[1]”.
De forma mais objetiva, HUMBERTO THEODORO JÚNIOR[2] ensina que “processo (...) é o método, isto é, o sistema de compor a lide em juízo através de uma relação jurídica vinculativa de direito público, enquanto procedimento é a forma material com que o processo se realiza em cada caso concreto”.
No passado, várias teorias buscaram definir a natureza jurídica do processo. Primeiramente, ressalte-se a teoria do processo como um contrato, que dominou o pensamento da França nos séculos XVIII e XIX e foi completamente superada. O processo foi considerado um contrato, pois, segundo seus defensores, as partes se submetiam voluntariamente ao processo e aos seus resultados, através de um verdadeiro negócio jurídico de direito privado.
Em seguida, Arnault de Guényvau criou a teoria do processo com um “quase-contrato”. Também superada, vez que insistia em enquadrar o processo dentro do direito privado e ignorava a lei como fonte do direito, a exemplo do que fazia o Código Napoleônico.
Em 1868, Bülow traz a concepção de que existem duas relações: a de direito material, que se discute no processo; e a de direito processual, que é o continente em que se coloca a discussão sobre aquela. Ainda, estabeleceu 03 distinções entre os dois planos de relações: a)- por seus sujeitos (autor, réu e Estado-Juiz); b)- por seu objeto (a prestação jurisdicional); c)- por seus pressupostos (os pressupostos processuais).
Contrapondo-se à concepção de Bülow, Goldschimdt cria uma idéia que pode ser resumida da seguinte forma: onde havia o direito, agora há meras “chances”, expressão utilizada pelo doutrinador para englobar todas as possibilidades, expectativas, perspectivas e ônus. O grande mérito desta teoria foi ter trazido para o direito as idéias de ônus, sujeição e da relação funcional do juiz com o Estado, de natureza administrativa, sem que haja obrigações de pessoa física do magistrado com as partes[3].
Por fim, no que tange às teorias acerca do processo, é a da relação processual que ensina que, através da relação jurídica, o direito regula não só os conflitos de interesses entre as pessoas, mas também a cooperação que estas devem desenvolver em benefício de determinado objetivo comum.
A teoria da relação processual, por outro lado, não implica que processo e relação processual sejam sinônimos. Os processualistas acima citados ensinam que[4]:
Poderes e faculdades são posições jurídicas ativas, correspondentes à permissão (pelo ordenamento) de certas atividades. O que os distingue é que, enquanto faculdade é a conduta permitida que se exaure na esfera jurídica do próprio agente, o poder se resolve numa atividade que virá a determinar modificações na esfera jurídica alheia (criando novas posições jurídicas).
(...)
Sujeição e deveres são posições jurídicas passivas. Dever, contraposto de poder, é a exigência de uma conduta; sujeição, a impossibilidade de evitar uma atividade alheia ou a situação criada por ela (ato de autoridade). Há também os ônus, que também são faculdades: “ônus é uma faculdade cujo exercício é necessário para a realização de um interesse”.
A teoria dominante afirma a existência de obrigações e direitos subjetivos de natureza processual. (...) A negação dessa existência funda-se na alegação de que, não havendo conflito de interesses entre quem pede o serviço jurisdicional (autor da demanda) e o Estado-juiz, o qual até tem interesse em prestá-lo, não se pode falar e direito do primeiro e obrigação do segundo (direito subjetivo é considerado, nessa linha de pensamento, uma posição de vantagem de uma pessoa sobre outra, ditada pela lei, e referente a um bem que é objeto de conflito de interesses); argumenta-se também que seria inconcebível um direito do Estado contra o próprio Estado, o que havia de ser reconhecido no caso da chamada ação pública – civil ou penal (Ministério Público). Os que dizem ser a ação um direito público subjetivo (e, por extensão, afirmam a existência de direitos e obrigações de natureza processual) partem, naturalmente, de concepções diferentes sobre o direito subjetivo: basta não ligá-lo necessariamente à ocorrência de um conflito de interesses, para que desapareça o óbice consistente na inexistência de conflito entre o autor e o Estado.
Em tempos mais recentes, Fazzalari repudiou a inserção da relação jurídica processual no conceito de processo. Fala do “módulo processual” representado pelo procedimento realizado em contraditório e propõe que, no lugar daquela, se passe a considerar como elemento do processo essa abertura à participação, que é constitucionalmente garantida. De acordo com esta concepção, o processo é o procedimento realizado mediante o desenvolvimento da relação entre seus sujeitos, presente o contraditório. Ao garantir a observância do contraditório a todos os “litigantes em processo judicial ou administrativo e aos acusados em geral”, está a Constituição (artigo 5º, inciso LV) formulando a exigência política de que a preparação de sentenças e demais provimentos estatais se faça mediante o desenvolvimento da relação jurídica processual[5].
Pois bem. Feitas estas considerações acerca da distinção entre processo e procedimento, insta abordar a polêmica existente entre a chamada “jurisdição voluntária”. De acordo com Leonardo Greco, citado por DIDIER JR.[6], “jurisdição voluntária é uma modalidade de atividade estatal ou judicial em que o órgão que a exerce tutela assistencialmente interesses particulares, concorrendo com o seu conhecimento ou com a sua vontade para o nascimento, a validade ou a eficácia de um ato da vida privada, para a formação, o desenvolvimento, a documentação ou a extinção de uma relação jurídica ou para a eficácia de uma situação fática ou jurídica”.
Conforme exposto pelo processualista, na jurisdição voluntária há a tutela pelo Estado de interesses particulares, o que leva muitos doutrinadores a não a considerarem como jurisdição, mas sim administração pública de interesses privados pelo Judiciário (p. ex., este é o entendimento de José Frederico Marques, para quem a jurisdição voluntária seria materialmente administrativa e subjetivamente judiciária).
Ainda, para o processualista, a jurisdição voluntária não seria jurisdição nem voluntária: não seria aquela, pois não há lide a ser resolvida. Ainda, não haveria a substitutividade inerente à relação processual, pois na jurisdição voluntária o Magistrado se insere entre os participantes de um negócio jurídico, não os substituindo.
Porque não há lide, não há partes, mas sim interessados; porque não há jurisdição, não seria correto falar em ação nem em processo, institutos correlatos à jurisdição: só haveria requerimento e procedimento. Por fim, por não haver jurisdição não há coisa julgada, mas mera preclusão (e isto com base no artigo 1.111 do CPC que dispõe: “A sentença poderá ser modificada, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, se ocorrerem circunstâncias supervenientes”).
Em sentido oposto, Leonardo Greco, Ovídio Baptista e Calmon de Passos são adeptos da concepção de que a jurisdição voluntária é atividade jurisdicional. O primeiro argumento de contraposição é a existência de lide, a qual não é pressuposta pela jurisdição voluntária, ou seja, a lide não precisa vir afirmada na petição inicial.
Leonardo Greco, citado novamente por Didier Jr.[7], ensina ainda:
Ocorre que a função jurisdicional não se resume a solucionar litígios reais ou potenciais. Também tutelar interesses dos particulares, ainda que não haja litígio, é função tipicamente jurisdicional, desde que exercida por órgãos e funcionários revestidos das garantias necessárias a exercer essa tutela com absoluta independência e impessoalidade, exclusivamente no interesse dos seus destinatários.
Para Giovanni Verde[8], a jurisdição voluntária se consubstancia em atividade jurisdicional em virtude de seu aspecto subjetivo: a jurisdição é exercida por juízes, que aplicam o direito objetivo em última instância, dão a última palavra sobre a questão, proferindo decisão que não pode ser controlada por nenhuma outra função estatal. A jurisdição voluntária é, também, inevitável.
Outro argumento levantado por Greco é o de que a jurisdição voluntária se exerce por meio de formas processuais (petição inicial, sentença, etc), sendo descabido conceber a inexistência de relação jurídica entre os interessados e o Juiz.
Talvez a grande diferença entre as jurisdições voluntária e contenciosa é o conflito de interesses envolvido. Naquela, o juiz atua para atender interesse privado, como terceiro imparcial, enquanto nesta é exercida por autoridade imparcial e desinteressada, agindo a administração em seu próprio interesse, o do Estado, da coletividade como um todo, não somente no interesse dos particulares que figuram como destinatários diretos da sua atuação.
Interessante discussão que se trava no que tange às espécies de jurisdição diz respeito à coisa julgada material. Em virtude da divergência quanto às suas naturezas, prevalece o entendimento de que tanto na contenciosa como na voluntária há formação de coisa julgada material.
O artigo 1.111 do CPC ratifica a existência da coisa julgada em ambas as jurisdições: “a sentença poderá ser modificada, sem prejuízo dos efeitos já produzidos, se ocorrerem circunstâncias supervenientes”. Fazendo um paralelo com a regra prevista na jurisdição contenciosa, a decisão transitada em julgado na jurisdição voluntária também se submete ao previsto no artigo 471, inciso I, do CPC:
Art. 471. Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo:
I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença;
Desta forma, ainda que haja divergência quanto à natureza da jurisdição voluntária – extrajudicial ou não -, inegável o fato de que ambas as modalidades se sujeitam à eficácia da coisa julgada material.
[1] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pelegrini. DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria Geral do Processo. 27ª edição. P. 301.
[2] Curso de Direito Processual Civil. Volume I. 52ª Edição. P. 59.
[3] CINTRA. GRINOVER. DINAMARCO. Idem. P. 305-306.
[4] Idem. P. 307.
[5] Idem. P. 309.
[6] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 1. 11ª edição. P. 95.
[7] P. 100.
[8] Idem. P. 100.
Procurador Federal, membro da Advocacia-Geral da União. Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG.
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: ARANDA, Alexandre Lundgren Rodrigues. Do processo e do procedimento Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jul 2014, 05:00. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40177/do-processo-e-do-procedimento. Acesso em: 23 dez 2024.
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