Resumo: O presente artigo tem por finalidade expor e analisar o arcabouço normativo em que está inserido o direito de propriedade das comunidades remanescentes de quilombos. Analisaremos as disposições contidas na Constituição Federal de 1988, no Decreto nº 4.887/2003, na Convenção 169 da OIT e no Decreto nº 6.040/2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Palavras-chaves: Constitucional. Direito Fundamental. Propriedade. Território. Comunidades. Quilombolas.
O presente artigo tem por finalidade expor e analisar o arcabouço normativo em que está inserido o direito de propriedade das comunidades remanescentes de quilombos.
Analisaremos as disposições contidas na Constituição Federal de 1988, no Decreto nº 4.887/2003, na Convenção 169 da OIT e no Decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.
A República Federativa do Brasil tem como fundamento norteador do seu ordenamento jurídico o princípio da dignidade da pessoa humana (art. l º, III, CF/88). Tal posicionamento é defendido pela professora Flávia Piovesan[1], senão vejamos:
É no valor da dignidade da pessoa humana que a ordem jurídica encontra seu próprio sentido, sendo seu ponto de partida e seu ponto de chegada, na tarefa de interpretação normativa. Consagra-se, assim, dignidade da pessoa humana como verdadeiro superprincípio a orientar o Direito Internacional e o Interno. (grifo nosso).
Além disso, o art. 5º, XXII, §§ 1º e 2º estabelece:
Art. 5º (...)
XXII – é garantido o direito de propriedade;
(...)
§ 1º As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
§ 2º Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. (grifo nosso)
As comunidades remanescentes de quilombos fazem parte do patrimônio cultural brasileiro (art. 216, CF/88). Elas retratam e preservam a cultura afro-brasileira, remanescente do povo africano que colonizou este País, e, portanto, devem ser protegidas pelo Estado, de acordo com o art. 215, § 1º, da CF/88.
O art. 216, § 1º, da CF estabelece que o Poder Público deverá promover e proteger o patrimônio cultural brasileiro por meio de todas as formas de acautelamento e preservação existentes.
O art. 68 do ADCT garantiu aos remanescentes das comunidades dos quilombos o direito à propriedade de suas terras, determinando ao Estado a obrigação de emitir o título de propriedade respectivo:
Art. 68. Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.
Tal dispositivo foi regulamentado pela Lei nº 9.649, de 27 de maio de 1988 (art. 14, IV, c - redação dada pela MP nº 2.216-37, de 31 de agosto de 2001), que previa a competência do Ministério da Cultura para a delimitação das terras quilombolas, e pela Lei nº 7.668/88 (art. 2º, II e parágrafo único - redação dada pela MP nº 2.216-37, de 31 de agosto de 2001), que atribuía à Fundação Cultural Palmares a identificação dos remanescentes das comunidades dos quilombos, a realização do reconhecimento, da delimitação e da demarcação das terras por eles ocupadas, bem como proceder a correspondente titulação.
A Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, que dispôs sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios, estabeleceu novamente a competência do Ministério da Cultura para a “...delimitação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos, bem como determinação de suas demarcações, que serão homologadas mediante decreto;”, no art. 27, VI, c.
O Decreto nº 3.912, de 10 de setembro de 2001 regulamentou as leis acima mencionadas, mas, diante das críticas acerca da inconstitucionalidade dos critérios temporais adotados para definir as terras pertencentes aos remanescentes de quilombos, (tema que será analisado adiante), foi revogado.
Em 20 de novembro de 2003, foi publicado o Decreto nº 4.883, o qual transferiu do Ministério da Cultura para o Ministério do Desenvolvimento Agrário a competência firmada no art. 27, VI, c, da Lei nº 10.683/2003.
Na mesma data, foi publicado o Decreto nº 4.887, que revogou expressamente o Decreto nº 3.912/2001, passando a figurar como a norma regulamentadora das leis acima mencionadas.
O Decreto nº 4.887 consiste em grande avanço nos direitos dos quilombolas, uma vez que definiu um novo e moderno critério para identificar os remanescentes de quilombos: a auto-identificação.
Como explicitado inicialmente, coube ao INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA AGRÁRIA – INCRA, autarquia vinculada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, a atribuição de identificar, reconhecer, delimitar, demarcar e promover a desintrusão, a titulação e o registro dos territórios pertencentes aos remanescentes das comunidades quilombolas no País.
Para tanto, o INCRA editou a INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 16, de 24 de março de 2004, que foi revogada, com o fim de aperfeiçoar os procedimentos desenvolvidos pela autarquia, pela INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 20, de 19 de setembro de 2005. Atualmente, está em vigor a INSTRUÇÃO NORMATIVA Nº 57, de 20 de outubro de 2009.
Convém lembrar, ainda, a existência da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989), r
atificada pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002, e promulgada pelo Presidente da República, por meio do Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. O Governo brasileiro depositou o instrumento de ratificação junto ao Diretor Executivo da OIT em 25 de julho de 2002. A Convenção entrou em vigor no âmbito internacional, em 5 de setembro de 1991, e, no Brasil, em 25 de julho de 2003.
Foi recepcionada pelo ordenamento jurídico brasileiro como lei ordinária, de acordo com o art. 5º, § 2º, da Constituição Federal de 1988.
O Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004, no seu art. 1º, estabelece:
A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho - OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, adotada em Genebra, em 27 de junho de 1989, apensa por cópia ao presente Decreto, será executada e cumprida tão inteiramente como nela se contém. (grifo nosso)
Vale destacar o que determina a
Convenção nº 169 da OIT:
Artigo 1º
1. A presente convenção aplica-se:
a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial;
Artigo 2º
1. Os governos deverão assumir a responsabilidade de desenvolver, com a participação dos povos interessados, uma ação coordenada e sistemática com vistas a proteger os direitos desses povos e a garantir o respeito pela sua integridade.
Artigo 6o
1. Ao aplicar as disposições da presente Convenção, os governos deverão:
a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes;
Artigo 14
1.
1. Dever-se-á reconhecer aos povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dada especial atenção à situação dos povos nômades e dos agricultores itinerantes.
2. Os governos deverão adotar as medidas que sejam necessárias para determinar as terras que os povos interessados ocupam tradicionalmente e garantir a proteção efetiva dos seus direitos de propriedade e posse.
3. Deverão ser instituídos procedimentos adequados no âmbito do sistema jurídico nacional para solucionar as reivindicações de terras formuladas pelos povos interessados. (grifo nosso)
Trata-se, portanto, de imposição ao Estado brasileiro da obrigação de concretizar o direito de propriedade dos quilombolas, direito este classificado como fundamental, de acordo com o então Procurador-Geral da República, Dr. Cláudio Fonteles, no Parecer nº nº 3.333/CF lançado nos autos da ADI nº 3.239-6/600-DF[2]:
Mister se faz ressaltar, antes de tudo, que o art. 68 do ADCT requer cuidadosa interpretação, de modo a ampliar ao máximo o seu âmbito normativo. Isso porque trata a disposição constitucional de verdadeiro direito fundamental, consubstanciado no direito subjetivo das comunidades remanescentes de quilombos a uma prestação positiva por parte do Estado. Assim, deve-se reconhecer que o art. 68 do ADCT abriga uma norma jusfundamental; sua interpretação deve emprestar-lhe a máxima eficiência. (grifo nosso)
Em 2007, foi publicado o Decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que instituiu a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Vejamos alguns dispositivos relevantes de tal Decreto, que retratou o verdadeiro e atual significado do que seja território quilombola:
Art. 3o Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por:
I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;
II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e demais regulamentações; e
III - Desenvolvimento Sustentável: o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras. (grifo nosso)
(...)
ANEXO
(...)
Art. 3o São objetivos específicos da PNPCT:
I - garantir aos povos e comunidades tradicionais seus territórios, e o acesso aos recursos naturais que tradicionalmente utilizam para sua reprodução física, cultural e econômica;
(...) (grifo nosso)
Diante de todas as normas citadas, é possível concluir que o Estado Brasileiro tem o dever regularizar a propriedade dos territórios das comunidades remanescentes de quilombo, posto que se trata de direito fundamental à propriedade, para a preservação de um povo, de uma cultura, de uma história.
O art. 68 do ADCT garantiu às comunidades quilombolas o direito às terras por eles ocupadas mais àquelas necessárias ao desenvolvimento físico e cultural do grupo étnico-racial.
Devemos destacar, por fim, que o território tem significado bastante especial para as comunidades tradicionais, especialmente para as comunidades quilombolas e indígenas. O espaço físico onde vivem e desenvolvem seus costumes e suas manifestações culturais tem forte influência para a identidade do grupo.
Assim, não se pode retirar-lhes o espaço físico tradicional e colocá-los em outro lugar qualquer, pois este novo ambiente não terá a mesma expressividade para aquele povo; dele não se ressalta história nem memória.
[1] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos, O Princípio da dignidade da pessoa humana e a Constituição de 1988. In: (Neo)constitucionalismo: ontem os Códigos, hoje as Constituições. Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica. Nº 2. Porto Alegre: IHJ, 2004, p. 92-93.
[2] Tramita perante o Supremo Tribunal Federal – STF a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.239-6/600-DF, intentada pelo então Partido da Frente Liberal – PFL (atual Democratas – DEM), requerendo a declaração de inconstitucionalidade do Decreto n° 4.887/2003. O STF não concedeu medida liminar para suspender os efeitos da norma, razão pela qual, enquanto não for julgado o mérito da ação, o Decreto é constitucional.
Procuradora Federal. Chefe da Seção de Cobrança e Recuperação de Créditos da Procuradoria Seccional Federal em Mossoró/RN, órgão da Advocacia-Geral da União. Graduada em Direito pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Pós-graduada em Direito Processual Penal pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR.<br>
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: HENRIQUE, Anne Cristiny dos Reis. Territórios Quilombolas: direito fundamental à propriedade Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 19 jul 2014, 05:45. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos/40205/territorios-quilombolas-direito-fundamental-a-propriedade. Acesso em: 23 dez 2024.
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